Apesar de avanços legais, cidadãos com deficiência enfrentam exclusão social, laboral e estrutural

SOCIEDADE
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  • Deficientes continuam à margem de oportunidades em Moçambique

Na penumbra de uma sala de aulas superlotada, António João, albino com deficiência visual, dependia dos colegas para ter acesso ao que os manuais escondiam. Mesmo sem livros adaptados, com sacrifício conseguiu concluir o ensino secundário, mas a vitória teve gosto amargo: sem oportunidades de emprego, carrega o peso do estigma e de uma sociedade que insiste em vê-lo como incapaz. A sua história é apenas uma entre milhares que revelam como, apesar da nova Lei da Pessoa com Deficiência, aprovada em 2024, a inclusão em Moçambique ainda não passou do discurso para a prática. Representantes da sociedade civil, psicólogos e sociólogos alertam que a exclusão é profunda, cultural e estrutural, e que a aplicação prática das políticas públicas ainda está muito aquém das necessidades.

Elísio Nuvunga

De acordo com dados do Ministério de Género, Criança e Acção Social, cerca de 727.600 cidadãos, equivalentes a 2,6% da população, convivem com algum tipo de deficiência. Deste universo, 15,8% têm membros inferiores amputados, 7,2% membros superiores amputados, 6% vivem com paralisia, 8,9% apresentam deficiência auditiva ou visual e 7,4% enfrentam perturbações mentais. Além disso, 10,8% têm deficiência visual, mesmo usando óculos, 5,2% não conseguem ouvir mesmo com aparelho auditivo, 15,3% apresentam dificuldades de locomoção e 4,5% têm problemas de memória.

Apesar da recente aprovação da Lei da Pessoa com Deficiência, em 2024, no País, milhares de cidadãos continuam a viver à margem, limitados não apenas pelas suas condições físicas ou sensoriais, mas também por um sistema social e institucional que pouco responde às suas necessidades.

A falta de acessibilidade, o preconceito e a ausência de políticas públicas eficazes transformam a inclusão em mera retórica. Entre ruas sem rampas, escolas sem materiais adaptados, hospitais despreparados e um mercado de trabalho fechado, a vida de muitos deficientes é marcada por barreiras invisíveis, mas profundas, que não limitam somente a educação, como também as oportunidades.

Relatos de vida, como o de um albino com problemas de visão, um jovem sem um braço e uma estudante em cadeira de rodas, revelam as barreiras que ainda persistem e expõem a urgência de transformar discursos de inclusão em prática.

O acesso ao emprego é uma das principais preocupações para maior parte das pessoas com deficiência na sua fase adulta, em que enfrentam barreiras de aceitação no mercado de trabalho.

A exclusão ganha rosto em relatos como o de António João, albino com problemas de visão, que nunca teve livros “adaptados”, mas mesmo assim nunca desistiu, tendo conseguido concluir o ensino médio. Actualmente com 27 anos, nunca teve oportunidade de emprego porque é, segundo as suas palavras, encarado pela sociedade como um incapaz, ignorando o seu potencial e as suas competências.

“Sempre dependi de colegas para ler os manuais. Consegui terminar o secundário, mas cheguei ao limite. O que mais dói é sentir que a sociedade nos olha como incapazes. Quando tentei arranjar emprego, muitas empresas não me aceitaram por causa da minha condição. Sentir que a minha competência é sempre ignorada é muito frustrante”, desabafou.

Maria de Fátima, 34 anos, perdeu o membro inferior esquerdo num acidente e teve de abandonar a profissão de costureira e desde lá ainda não conseguiu se adaptar à nova condição, antes pelo contrário: sente na pele e na alma a dor da exclusão.

“Não é fácil ser deficiente em Moçambique. Não interessa a condição ou a gravidade. Muitos clientes não confiam quando me vêem sem outro pé. Mas, quando recebem a roupa pronta, reconhecem o meu valor, embora alguns permaneçam com alguma dúvida se sou realmente eu quem fez o trabalho”, desabafa.

Quando o infortúnio lhe bateu à porta, Fátima era cheia de sonhos. Com formação concluída, sonhava em um dia trocar as fitas e tecidos por um emprego formal ou conseguir enquadramento num grande atelier. Mas, com o tempo, perdeu a esperança de ser contratada formalmente e explica.

“Antes de me tornar deficiente, eu via pessoas com deficiência sendo rejeitadas em várias oportunidades. Depois disso, percebi que não valia a pena insistir. Hoje, prefiro concentrar as minhas energias no meu negócio próprio, apesar de tudo o que contei (preconceito)”, sublinha.

“Mesmo tendo conhecimento e formação, não é fácil ser aceito em empresas”

Carlos Macamo, 22 anos, ficou paraplégico após contrair poliomielite e depende de cadeira de rodas para se deslocar. A mobilidade reduzida torna o acesso a escolas e espaços de trabalho um desafio diário. Além disso, enfrenta grandes dificuldades com o transporte público, que é praticamente inacessível para cadeirantes, limitando ainda mais as suas oportunidades.

“Toda a vez em que preciso de me deslocar, dependo de terceiros ou simplesmente desisto. Isso afecta a minha vida escolar, social e profissional”, conta Carlos.

Formado como técnico informático, possui competências que o qualificam para o mercado de trabalho, mas ainda assim enfrenta barreiras de inclusão.

“Mesmo tendo conhecimento e formação, não é fácil ser aceito em empresas. Muitos empregadores ainda olham para a deficiência antes de ver a competência”, relata.

Apesar desses obstáculos, Carlos mantém o sonho de ser advogado e lutar pelos direitos das pessoas com deficiência, transformando a sua experiência em motivação para promover inclusão e igualdade.

Fórum das Associações Moçambicanas de Pessoas com Deficiência

Segundo Timóteo Bene, representante do Fórum das Associações Moçambicanas de Pessoas com Deficiência (FAMOD), as limitações das pessoas das pessoas com deficiência não começa na fase da busca de emprego. Apesar de já haver um quadro regulador progressista e haver muita informação, persistem casos de crianças privadas de ter acesso à educação por causa da sua condição física.

“Um número significativo de crianças com deficiência ainda está fora da escola, comprometendo suas capacidades e oportunidades de desenvolvimento e bem-estar”, revela, acrescentando que mesmo as que conseguem estudar, enfrentam dificuldades.

“Os professores não estão devidamente capacitados para lidar com as necessidades específicas de aprendizagem e comunicação. As escolas não têm condições estruturais de acessibilidade, nem materiais adaptados”, acrescenta Bene.

Na saúde, a exclusão repete-se. Estudos do FAMOD mostram que mulheres com deficiência encontram enormes barreiras para aceder a serviços de saúde sexual e reprodutiva. “As campanhas e outras actividades comunitárias realizadas neste âmbito não alcançam efectivamente a este grupo social, em parte devido aos mecanismos de comunicação adoptados”, denuncia Bene.

Outro desafio é o acesso ao mercado de trabalho. A ausência de políticas afirmativas que incentivem a contratação faz com que muitas pessoas com deficiência sejam empurradas para o desemprego ou para actividades informais de sobrevivência.

“No mundo digital, a exclusão é ainda mais evidente. Plataformas de educação, comércio e finanças são desenvolvidas sem respeitar padrões mínimos de acessibilidade”, alerta o representante da FAMOD.

O peso psicológico da exclusão

O psicólogo Bóia Efraime Jr. explica que a exclusão social não é apenas uma barreira física, mas também emocional que acompanha a pessoa por toda vida e pode condicionar a forma como se vê e se insere no mundo.

“Negar acesso e visibilidade é uma violação grave dos direitos. Esta discriminação remete os cidadãos com deficiência à invisibilidade, reduzindo o seu potencial de acção e deixando sequelas na saúde mental e bem-estar”, destacou.

Segundo ele, muitos desenvolvem quadros de depressão, ansiedade, angústia e baixa auto-estima. Para Bóia, a saída passa pela inclusão social significativa.

“É preciso criar espaços de participação, investir em infra-estrutura acessível, apostar em campanhas contínuas de sensibilização e garantir serviços de saúde mental inclusivos, com psicólogos formados para atender às necessidades específicas de deficiência.”

A leitura sociológica

Para o sociólogo Lénio Lisboa, a exclusão das pessoas com deficiência em Moçambique vai muito além da falta de rampas em edifícios públicos ou da ausência de materiais escolares adaptados. A raiz do problema, defende, está na forma como a sociedade encara a deficiência, reduzindo o indivíduo à sua limitação e apagando todas as outras capacidades.

“Goffman ensina-nos que a deficiência funciona como estigma: reduz o indivíduo a uma característica, apagando todas as suas outras capacidades. Em Moçambique, isso vê-se em famílias que escondem filhos por vergonha, em escolas que subestimam os alunos e em empresas que olham para a deficiência antes de olhar para a competência”, explica.

Lisboa observa ainda que a exclusão se intensifica quando se cruza com a pobreza. As famílias mais vulneráveis raramente têm condições para garantir transporte, acompanhamento médico ou material adequado para crianças com deficiência. Esse cenário cria um ciclo de dependência difícil de quebrar.

“Uma família pobre com uma criança com deficiência dificilmente garante transporte, material adaptado ou acompanhamento médico. O ciclo é duro: sem educação nem emprego, esse indivíduo cresce dependente, reforçando o estigma”, sublinha.

O académico defende que é urgente mudar a lógica com que o Estado e a sociedade abordam o tema. A inclusão, afirma, não pode continuar a ser tratada como um acto de compaixão, mas sim como uma questão de direito e justiça social.

“Não é caridade, é direito. Uma criança surda em Nampula não pode continuar a ser apenas ‘decorativa’ na sala de aula. Um jovem cadeirante formado em informática pode contribuir tanto quanto qualquer outro — desde que a empresa tenha rampa e casa de banho acessível”, descreve.

Caminho a seguir

A FAMOD defende que a aprovação urgente do regulamento da Lei da Pessoa com Deficiência é essencial.

“Sem isso, os direitos continuam apenas no papel. É fundamental adoptar padrões de acessibilidade em todos os sectores e garantir a consulta contínua às pessoas com deficiência”, reforça Timóteo Bene.

Especialistas são unânimes: é preciso mudar a mentalidade cultural e investir em políticas públicas inclusivas, com orçamento e fiscalização. Só assim será possível transformar as leis em realidade e garantir dignidade a milhares de cidadãos que hoje continuam à margem.

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