No dia em que o Conselho Constitucional não devia ter se pronunciado para não se pronunciar

DESTAQUE POLÍTICA
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  • Conselho Constitucional endossa acumulação de cargos pelo Presidente da República
  • CC recorreu à história para lembrar que a Frelimo e Estado são irmãos siameses
  • É igual a dizer que “porque sempre se conduziu sem carta, agora é direito histórico fazê-lo”

Num exercício de ginástica liguístico-jurídica que deixaria um contorcionista profissional com inveja, o Conselho Constitucional (CC) decidiu que qualquer um que é Presidente da República, acumule o cargo com a liderança do seu partido, contrariando o articulado do número 148 da Constituição. A decisão, escancarada no Acórdão n.º 6-CC-2025, enterra a denúncia de inconstitucionalidade apresentada por 14 cidadãos com um argumento digno de nota: a “herança histórica” rasga uma Lei Mãe e torna tudo possível.

Evidências

O artigo 148 da Constituição é claro como água: o Presidente não pode exercer “qualquer outra função pública” e, muito menos, “funções privadas”. Mas, aparentemente, há um terceiro tipo de função que os constituintes, distraídos, esqueceram de mencionar: a “função política”.

Esta categoria sui generis, agora descoberta pelo Conselho Constitucional, surge como um salvo-conduto para justificar o injustificável. É como dizer que, porque sempre se conduziu sem carta, agora é direito histórico fazê-lo.

A peça central do acórdão é uma viagem no tempo. O CC, num papel que mais parece de historiador oficial do que de juiz constitucional, remonta a 1962 para lembrar a todos que a FRELIMO e o Estado são como irmãos siameses. A narrativa é clara: se sempre foi assim, por que mudar agora?

A narrativa do Acórdão traça o percurso do movimento de libertação, desde a sua fundação a 25 de Junho de 1962, até à sua transformação em partido político, ressaltando o seu papel como “força dirigente do Estado e da sociedade”, tal como estabelecido na Constituição de 1975.

Esta retrospectiva histórica, embora factualmente correcta, serve a um propósito muito específico: contextualizar a acumulação de funções como uma herança histórica, e não como uma aberração jurídica.

A mensagem é clara: a realidade de um Presidente-Líder do partido no poder não é um fenómeno recente, mas sim uma continuidade de um modelo que, de certa forma, fundou a própria nação.

A decisão sugere, com fina ironia, que a Constituição de 1990 – que instituiu o multipartidarismo e separou formalmente o Estado do partido – foi apenas um hobby passageiro. A “reminiscência histórica” é agora lei.

O que o acórdão não explica é como é que um Presidente, que deve isenção e imparcialidade a todos os moçambicanos, consegue vestir duas camisolas ao mesmo tempo: a de Chefe de Estado e a de líder de um partido que compete eleitoralmente contra outros.

Um argumento é tão criativo que não esvazia o debate

O cerne do argumento do Conselho Constitucional é que o cargo de Presidente de um partido político não se enquadra nas definições de “função pública” ou “função privada”, mas sim trata-se de uma “função política,

Apresentada no ano passado, a queixa inicialmente era contra o então Chefe de Estado, Filipe Nyusi, mas em Janeiro, quando a nova administração tomou posse, o grupo de 14 cidadãos teve o cuidado de voltar ao CC para actualizar o nome do recorrido, passando a ser o novo incumbente, no caso Daniel Chapo.

A contestação apresentada pela defesa de Daniel Francisco Chapo, citada no Acórdão, reforça esta ideia ao argumentar que a liderança partidária é, na realidade, uma “função política”, uma categoria distinta das demais.

O argumento é tão criativo quanto perigoso, pois o que fica claro é que a decisão não é uma mera interpretação constitucional; é uma consagração do status quo. O CC não só ignorou o espírito da lei, que visa garantir a separação de poderes e a independência do Presidente, como o enterrou com honras de “herança histórica”.

No fim, depois de tanto linguajar difícil, o Conselho Constitucional conclui o acórdão, sem se pronunciar, encerrando a crónica de um dia em que nem sequer devia ter se pronunciado.

Com esta decisão, o Conselho Constitucional não resolveu um dilema jurídico; apenas lavou as mãos e entregou a toalha ao poder político. O debate sobre a acumulação de cargos pode ter encontrado um “ponto final jurídico”, mas a pergunta que fica é: será que a Constituição ainda cabe num livro, ou já foi substituída por uma nota histórica?

Juristas arasam acórdão do CC que consideram ser uma interpretação contra legem

Para juristas ouvidos pelo Evidências, o recente Acórdão do CC, mais do que encerrar, acendeu um intenso debate jurídico e político no País, tendo como base o que consideram uma interpretação “contra legem” da Constituição.

De acordo com um jurista, a letra da lei é clara ao proibir o exercício de qualquer outra função pública durante o mandato presidencial – categoria onde se enquadraria a liderança de um partido político, tendo em conta o papel público-constitucional que os partidos desempenham.

Vários juristas sublinham que o acórdão fragiliza três pilares fundamentais da democracia constitucional:⁠ ⁠Separação de poderes – ao permitir acumulação de funções, reduz-se a imparcialidade esperada de um Chefe de Estado;⁠ ⁠Imparcialidade presidencial – essencial para que o Presidente represente todos os cidadãos e não apenas uma parte política e;⁠ ⁠Força normativa da Constituição – um precedente de leitura contra o texto expresso pode minar a credibilidade do sistema jurídico.

“O Conselho Constitucional optou por uma hermenêutica forçada em nome da chamada ‘harmonia sistemática’, mas sem explicar como esta se compactibiliza com os princípios basilares da Constituição”, lê-se numa das análises.

O caso moçambicano também ganha relevância no debate comparado. Em países como Portugal e Brasil, a Constituição proíbe explicitamente que o Presidente exerça qualquer outra função pública, incluindo a liderança partidária.

Na África do Sul e Cabo Verde, a separação entre funções presidenciais e partidárias é igualmente clara, contribuindo para maior equilíbrio institucional.

“Se Moçambique seguir o caminho contrário, arrisca-se a consolidar um modelo de partidarização do Estado e de erosão da accountability democrática, como já se mostra evidente, por exemplo, o partido que suporta o governo não sabe o que é prestação de contas”, sublinha..

Além da dimensão jurídica, a decisão tem impacto direto na consolidação democrática. Analistas recordam que a separação entre Estado e partido é uma das principais barreiras contra o chamado “autoritarismo competitivo”, tendência em que eleições existem, mas o jogo político é desequilibrado.

Entre os riscos apontados estão: ⁠Partidarização do Estado;⁠  ⁠Concentração de poder na figura presidencial; ⁠Enfraquecimento das instituições; ⁠Redução da transparência e da responsabilização democrática

Caminhos alternativos

Apesar da decisão, estudiosos sugerem que existem soluções constitucionais mais adequadas. Entre elas: ⁠Suspensão temporária das funções partidárias enquanto durar o mandato presidencial; ⁠Delegação de responsabilidades executivas no partido a outros dirigentes; ⁠Exercício sequencial das funções, evitando acumulação.

O Acórdão n.º 6/CC/2025 é visto por muitos como um retrocesso na cultura constitucional moçambicana, ao abrir um precedente que enfraquece a separação entre Estado e partidos. Para os críticos, trata-se de um alerta: a interpretação da Constituição não pode ser usada para flexibilizar princípios democráticos, sob pena de comprometer os alicerces do Estado de Direito.

“O futuro da democracia em Moçambique dependerá da capacidade de reforçar a independência judicial, a formação em hermenêutica constitucional e a construção de uma cultura que coloque a Constituição acima de conveniências políticas”, conclui a análise.

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