“Não temos a soberania acautelada” – Sérgio Chichava denuncia falhas estruturais e sabotagens às FADM

DESTAQUE POLÍTICA
Share this
  • Em análise aos oitos de insurgência em Cabo Delgado
  • Analista acusa o Estado de manter Forças Armadas desorganizadas, descredibilizadas e incapazes de conquistar a confiança das populações locais

 O investigador Sérgio Chichava, uma das vozes mais consistentes no estudo do conflito em Cabo Delgado, traça um retrato severo da situação actual, num contexto que coincide com oito anos depois do início da insurgência. Ele aponta que Moçambique continua sem capacidade própria de defesa e mergulhado numa dependência crónica de forças externas. Numa entrevista incisiva, Chichava alerta que “não temos a soberania acautelada” e acusa o Estado de manter Forças Armadas desorganizadas, descredibilizadas e incapazes de conquistar a confiança das populações locais, um cenário que, segundo afirma, torna impossível vencer o inimigo. Entre críticas, ataca a ausência de estratégia nacional, a corrupção na logística e a exclusão social que alimenta o recrutamento terrorista, defendendo que o problema de Cabo Delgado não se resolverá enquanto o Estado for percebido como opressor e não como protector dos cidadãos. Numa outra temática, relativa à política doméstica, aponta para falta de um interesse genuíno de reconciliação nacional, manifesta na falta de “inclusão daqueles que são vistos como capazes de pôr em perigo o Partido no poder, pôr em perigo em termos de competição política, não em outros termos”.

 Evidências

 Moçambique acaba de relançar as bases para mais um processo de diálogo político. Chama-se Nacional Inclusivo. Assemelha-se no espírito e na letra aos outros e visa resolver o mesmo problema. A pergunta que se impõe é: estamos, de facto, num bom caminho?

– Primeiro, é preciso dizer que o diálogo é necessário para criar condições de paz e confiança. Contudo, esse diálogo está ferido por várias incongruências, algumas pequenas, outras profundas. Sabemos onde estamos: este processo de diálogo surgiu em resposta ao que aconteceu nas últimas eleições. Um dos protagonistas está a ser excluído desse diálogo. Isso lança uma sombra sobre o resultado, porque, como se costuma dizer, nós, moçambicanos, somos “experts” em dialogar e criar comissões que acabam por não produzir nada de concreto.

Mesmo em matéria de descentralização, houve uma comissão técnica criada para apresentar propostas ao Governo, e não deu em nada. Por isso mantenho um profundo cepticismo. Esperemos para ver o que daqui resultará, mas partimos de um mau pressuposto quando Venâncio Mondlane não é tratado como um protagonista sério. Chegámos a esta situação porque ele foi quem mais contestou as eleições.

Oficialmente, foi o grande perdedor. Mas os resultados que sustentam essa derrota não são confiáveis, como bem sabemos, pelo que é difícil prever as consequências. No entanto, há algo que devemos ter em mente: é preciso ser pragmático. Precisamos de eleições transparentes, verdadeiras e livres, em que o vencedor não seja definido antes de o jogo começar, e em que os resultados sejam aceites pelos perdedores. Essa é a virtude de um processo credível.

Isto significa que não será necessário recorrer, sempre que houver eleições, a comissões de diálogo e acordos pós-eleitorais. Porque tem de ser sempre assim? Moçambique especializou-se nisso: depois de cada eleição, os derrotados contestam e os vencedores vêem a sua legitimidade posta em causa, o que leva a novos acordos e comissões de reconciliação. Na prática, isso revela eleições que não são transparentes.

A verdadeira lição que devia emergir deste processo é a criação de condições para eleições justas, transparentes e livres. Para tal, é preciso instituir órgãos reconhecidos por todos os protagonistas: um STAE que funcione e um Conselho Constitucional mais profissional e credível para todos os actores políticos. Hoje, muita gente pensa que essas instituições servem para favorecer o partido no poder.

Enquanto isso não mudar, depois das eleições continuaremos a recorrer a novos diálogos e comissões, e o ciclo de contestação e instabilidade persistirá. Então, ou conseguimos alterar profundamente as regras do jogo, ou estaremos condenados a repetir os mesmos padrões: diálogo formal, desacreditação e, em última instância, conflito.

Estava a referir-se à exclusão de um dos protagonistas relevantes. Não será necessário olharmos para todos os envolvidos no diálogo com a mesma proporção de relevância? O Doutor Chichava, no contexto desse mesmo diálogo, não se encontra no mesmo patamar que Venâncio Mondlane? Há um que se impõe como protagonista e outro que, inevitavelmente, ocupa uma posição secundária.

– Não se trata de ser mais moçambicano do que o outro. Trata-se, sim, de quem arrasta multidões, de quem possui peso político. Eu, por exemplo, não tenho qualquer peso político. E, à excepção da Frelimo, nenhum outro actor possui hoje um peso superior ao de Venâncio Mondlane. Ele é incontornável. Podemos tentar tapar o sol com a peneira, mas não conseguimos apagá-lo: não é mais moçambicano do que os outros, mas movimenta uma parte decisiva do eleitorado.

Nesse sentido, ele é um actor inevitável. Muitos dos que se sentam naquela mesa de diálogo são meros figurantes, sem densidade política. A questão não está em medir nacionalidade, mas sim influência, quem tem voz, quem é ouvido e reconhecido por uma fatia expressiva do povo. Neste momento, não há outro político de oposição com esse alcance. Venâncio é carismático, mobiliza movimentos, desperta massas, e fá-lo estando fora do poder.

É importante recordar que, ainda durante o mandato de Nyusi, mesmo no último mês, Venâncio continuava a ser rejeitado. Nunca foi aceite no círculo oficial. Sempre foi visto como ameaça. Uma ameaça real ao poder. Talvez um dia, daqui a 30, 40 ou 50 anos, venhamos a conhecer quem realmente venceu as últimas eleições. Não digo que já saibamos, mas talvez a verdade não coincida com a narrativa oficial. E talvez o perdedor não seja exactamente aquele que nos disseram ser.

Renamo e os outros “tornaram-se irrelevantes”

Como é que devemos olhar essa incoerência de se desqualificar o diálogo, os envolvidos no diálogo, ao mesmo tempo que há uma vontade de participar? E quando essa vontade de participar não é acolhida, acabamos por desqualificar o próprio órgão, os próprios envolvidos.

 – Eu acho que não há nenhuma contradição entre aquilo que diz e o que está acontecendo. Mas vamos ser honestos e coerentes: É possível, neste momento, pensar numa solução duradoura, uma solução pacífica duradoura, num consenso nacional, excluindo o Venâncio Mondlane? Eu não consigo ver incoerência nisso. Na decisão de não lhe incluir, eu acho que ele está a ser coerente.

Eu tenho dúvidas de que haja um interesse genuíno de reconciliação nacional, de inclusão daqueles que são vistos como capazes de pôr em perigo o partido no poder, pôr em perigo em termos de competição política, não em outros termos. Enquanto isso não for levado a sério, enquanto essas pessoas forem excluídas, eu não acredito nesses diferentes órgãos, instituições, etc., criadas para um suposto diálogo. E não só, é aquilo que eu disse: nós somos “experts” em diálogos.

Doutor, o ANAMOLA, representa uma reconfiguração daquilo que é o nosso xadrez político. Quem está mais ameaçado dos partidos tradicionais? É apenas o partido no poder? Ou são os partidos de oposição que podem vir a disputar o mesmo eleitorado?

– Em primeiro lugar, é a própria FRELIMO que está em perigo. Está aí a dificuldade de aceitar o próprio ANAMOLA. Esse é que tem menos interesse em ver o ANAMOLA crescer. Dos outros partidos não precisamos de falar para não gastarmos tempo, de tanto serem inexpressivos neste momento. Tornaram-se irrelevantes. A Renamo foi ultrapassada pela sua própria base social. A sua liderança não consegue responder às suas aspirações. Nem anda preocupada em satisfazer as aspirações da sua base social.

Agora, o MDM, já sabe, é um partido que se contenta em governar a Beira. Vai até a Beira. Está tudo lá. O resto é irrelevante. Então, o ANAMOLA é um perigo para todos. Para a Frelimo, para os outros não é um perigo. Porque eles não existem. Não representam nada. Nem vão disputar nenhum eleitorado com o ANAMOLA. Não basta o Venâncio ter um partido e pensar que está tudo ganho. Nós sabemos como se faz política nesse país. Vai ser muito difícil. Primeiro, ele tem que ganhar a batalha de se apresentar como candidato presidencial do ANAMOLA.

Acha que ele consegue com a Frelimo?

– Eu não sei, não sei… Talvez pode ser pior se lhe impedir de participar das eleições. Podemos ter piores manifestações que aquelas que tivemos no ano passado. Porque as pessoas que acreditam nele, são muitas. Já vimos que estão determinadas, dispostas a tudo para lhe pôr no poder. Eu não sei se poderão aceitar isso de ânimo leve. Nós conhecemos casos em países, aqui mesmo que em África, em que candidatos de oposição foram excluídos em processos duvidosos, etc. E vimos como os seus apoiantes reagiram. Custou-lhes muito mais caro do que teria sido lhes deixar participar. Então, não sei. Não sei se ele vai conseguir se apresentar como candidato.

Mas também não basta por si só dizer que já criou partido, é popular, vai ser, vai esmagar a Frelimo. Dirigir uma instituição é outra coisa, exige muitos recursos, exige organização, o País é vasto, onde o ANAMOLA vai arranjar recursos, depende também da maneira como ele vai gerir o seu próprio partido. Ainda faltam três anos para as eleições autárquicas, quatro anos para as eleições gerais. É muito tempo, muita coisa pode mudar. Ele também tem desafios. Não basta dizer que está tudo ganho.

A Frelimo tem a vantagem de controlar o Estado, de ser um partido que está no poder há muito tempo, tem recursos, etc. Pode ter sedes em todo o País, tem membros em todo o país. Agora, o ANAMOLA para se instalar nesse país vai ser num contexto hostil, num contexto em que também não lhe vão facilitar as coisas. E não só, pode haver sabotagem interna ou externa. Pode-se criar divisões no seio do partido, etc.

Combate ao terrorismo: “Não vejo muitas acções decisivas”

O Doutor Sérgio Chichava tem uma vasta literatura sobre os contornos de Cabo Delgado. Este Domingo, o conflito completa oito anos do conflito e há poucas mudanças, mesmo após uma relativa calmia. Que retrato faz da evolução do terrorismo? Estamos à altura de dar resposta dentro da estratégia actual? Temos a nossa soberania e temos segurança acautelada?

 – A primeira coisa é dizer que não temos soberania acautelada. Por isso estamos dependentes da ajuda externa, no caso de Ruanda. Francamente falando, não vejo muitas acções decisivas de modo a fortalecer ou a criar condições para que o País se defenda e tenha a capacidade de enfrentar o inimigo.

Desde que o conflito iniciou, como o País não tinha condições, foi se pedir ajuda externa para travar a progressão do inimigo. Primeiro foram mercenários russos (Wagner), depois vieram os mercenários sul-africanos (Dyck Advisory Group), agora são os ruandeses. E as forças armadas continuam com enorme dificuldade logística, continuam com muita indisciplina, as mesmas queixas que as próprias populações faziam em relação às forças armadas.

Agora, se tu tens umas forças armadas que não são aceites pela sua própria população, como é que essas forças armadas vão conseguir combater o inimigo? Não há nenhuma força armada no mundo que conseguiu derrotar o inimigo sem o apoio da população. É a população que oferece informação. Sabemos que muitos jovens terroristas saem da aldeia. De dia são jovens normais e de noite terroristas.

Se as forças armadas são contestadas por populares, não vejo como vão conseguir lidar com esta situação. São forças armadas que muitas vezes são abandonadas à sua própria sorte. Ficam horas, dias, sem condições logísticas desde alimentação, munição etc. Converso com muitas pessoas que estão no terreno que dizem que não sabem o que fazer. Enquanto não se resolverem questões básicas, não vai se resolver o problema de Cabo Delgado.

Mas qual é o objectivo desse conflito? Quem são os alvos dos Al-Shabaab?

– Paradoxalmente, os insurgentes não avançaram assim tanto. No início deste ano tem-se intensificado os ataques, mas não há evidências de que tenham intenções de ocupar o poder e também não há sinais de expansão. Está claro que o interesse deles é criar desestabilização e terror nas mesmas zonas.

Mas não há sinais de expansão, e esta é uma questão que precisa de ser estudada. Mas é um paradoxo porque têm apoio popular, porque não são detectáveis. É um ponto que merece reflexão também.

Mas quem são eles?

– Não sabemos. O governo pode saber. Ele quer ou quis conhecê-los, mas oficialmente disse que não os conhece. Porque nunca houve muito interesse ou houve pouco interesse em se dialogar com eles.

Mas eles já disseram que queriam, primeiro, reivindicar a exclusão das populações locais do acesso a recursos. Já disseram também que reivindicam o Estado Islâmico, etc. Mas, basicamente, o que tem aumentado a guerra é a exclusão económica.

Esses jovens reivindicam a exclusão do Estado do acesso a recursos, em nome de uma religião, são homens moçambicanos. Sabemos que podem ter apoio ou influências externas, de líderes jihadistas, de outros países, etc. Mas, basicamente, são moçambicanos. Como vamos saber agora quem é o líder deles? Mas são moçambicanos que reivindicam o acesso ao Estado.

São jovens moçambicanos, são jovens que foram radicalizados nas mesquitas locais, etc. Então, não vamos dizer que têm apoio, porque as armas estavam escondidas nas casas das populações locais. Até houve uma campanha, uma das campanhas que foi levada a cabo pelas tropas ruandesas foi de recolher armas nas casas das pessoas. Recolheram centenas de armas. As pessoas até eram incentivadas a entregar as armas voluntariamente, e algumas fizeram-no.

O Estado é mais opressor do que benéfico. Traz mais efeitos negativos do que positivos. As Forças Armadas estão lá para oprimir e não para defender as pessoas, eles não têm boa reputação diante das comunidades. Se és um pouco suspeito, ou se te encontram a contar dinheiro numa mesquita, apanham as tuas coisas. Quer dizer, há muitas atrocidades, há muitas coisas que acontecem em Cabo Delgado, praticadas pelas nossas tropas, ou por aqueles que deviam garantir a segurança da população, que fazem com que essa gente ganhe terreno. Não é normal.

Nunca aconteceu o que aconteceu na semana passada (referência a um vídeo em que a população pede presença militar ruandesa no lugar de ser defendida pelas Forças Armadas nacionais). É um assunto sobre o qual nós temos falado desde o início, desde a chegada das tropas ruandesas. Já se comentou isso nas redes sociais, etc. As pessoas sentiam-se mais seguras com as forças ruandesas.

 Mas vamos falar dos terroristas. Como é que eles obtêm sucesso no recrutamento, na logística, nessas várias cadeias que vão alimentando a própria guerra?

-Essa é uma incógnita. O ponto é que há dinheiro que circula, e o dinheiro é usado para recrutar os jovens, desde o início. Agora, quem são as pessoas que dão dinheiro? Eu não as conheço. Nem sei se existe alguém nesse momento, talvez já não sejam os serviços secretos que possam ser quem está por trás disso. Mas o ponto é que há dinheiro que circula, tanto mais que no início do conflito muitos jovens que aderiram ao movimento terrorista receberam dinheiro.

Os que não receberam dinheiro e negaram de se filiar sofreram represálias. Sabemos disso. Eu conheço jovens que tiveram que fugir das suas zonas de origem para outros locais, como Nampula e tinham recebido dinheiro. Mandavam dinheiro no seu M-PESA, E-MOLA depois diziam: gasta dinheiro, é para isso. Mas não se sabe muito bem a proveniência desse tal dinheiro. Mas as motivações básicas são essas.

Quer dizer, o que alimenta o recrutamento é o descontentamento e a exclusão e isolamento de muitos jovens. A primeira parte desses jovens vem de zonas completamente isoladas. São jovens que não têm as mesmas condições e não têm as mesmas perspectivas para as suas vidas a longo prazo. Porque não têm oportunidades.

Há muita gente que se interessa em estudar o contexto da situação em Cabo Delgado, mas não conheço nenhum estudo até agora que possa nos dar uma pista em relação a isso. Esse é um mistério ainda, e que, provavelmente, os serviços secretos estejam a trabalhar sobre isso, que talvez possam nos esclarecer ou nos dar algum detalhe. Mas não é uma simples entrevista a estes jovens que integram a insurgência, que pode nos dar resposta de quem realmente está a financiar a insurgência em Cabo Delgado.

Mas, doutor, será que o método de tratamento no início ainda é aplicável depois de toda aquela conscientização daquilo que as pessoas fazem?

– Eu penso que a maior parte dos jovens que são recrutados são aliciados com a promessa de empregos e melhores condições. Alguns deles são enganados; eu conheço vários que foram levados para trabalhar em ONG. Mas existem aqueles que realmente são radicalizados e acreditam que estão lutando por uma causa própria, que a forma de fazer a guerra é aquela.

Quando chegam lá, percebem no terreno que não era isso. Foram enganados. Mas já estão num beco sem saída. Esse é um grupo deles. Mas há um grupo de jovens que vai para lá sabendo disso e que acredita que, depois da morte, tem um futuro melhor. Mas não se pode fazer como se fosse um grupo homogéneo. É um grupo heterogéneo, formado por gente com diferentes trajectórias, com diferentes experiências, com diferentes motivações, etc.

Doutor, é possível estabelecer qualquer paralelismo entre a situação de Cabo Delgado e a da Somália?

– O paralelismo que eu conheço é muito limitado. Estudei alguns jovens e as suas características, etc. São jovens que acompanham ou acompanhavam o que acontecia na Somália, a situação do terrorismo na Somália; assistiam àqueles vídeos, inspiravam-se na maneira de vestir e se identificavam com o que acontecia na Somália. Agora, do ponto de vista formal, eu realmente não posso dizer que sim ou não.

Mas o ponto é: eu estudei um jovem, escrevi um artigo e baseei-me em quem apelidei “Jorginho”. Claramente, ele, mesmo na sua página de Facebook, tem vídeos do que aconteceu com o terrorismo na Somália, e sobre a maneira de vestir, etc.

Então, do ponto de vista oficial, se há indicações ou não, isso já é complicado para mim. Foi-me complicado saber. Agora, há alguma semelhança, em termos de reivindicar um Estado islâmico, e da maneira como algumas coisas são feitas no terreno. Agora, não sou a pessoa certa para o dizer.

Promo������o
Share this

Facebook Comments