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Nilza Dacal
Em um mundo onde a impunidade transcende o status de excepção para se entranhar como norma implícita e omnipresente, o Estado não actua mais como bastião da justiça, mas como o seu cúmplice mais astuto e perigoso. Esse silêncio cúmplice perante a corrupção endémica, o conformismo perante o saqueio flagrante de recursos públicos e a apatia cívica que se alastra como uma epidemia representam os sinais vitais de uma nação que não apenas se desviou do caminho, mas perdeu a sua essência moral e colectiva. Refundar o Estado, nesse contexto de crise profunda e multifacetada, não implica a demolição precipitada de instituições existentes: ao contrário, demanda uma reconstrução meticulosa, ancorada em pilares inabaláveis de ética inquebrantável, da transparência radical e da responsabilidade incondicional. Essa refundação não é um luxo intelectual, mas uma urgência vital para resgatar a soberania popular e restaurar a dignidade nacional.
A impunidade emerge como o câncer mais virulento que uma democracia pode enfrentar, devorando progressivamente a confiança dos cidadãos como um ácido corrosivo, fragilizando as instituições até ao limiar do colapso e perpetuando um ciclo perverso onde o crime não só se revela lucrativo, mas é recompensado com prestígio, riquezas ilícitas e uma imunidade que beira o eterno. Quando o cidadão comum percebe que a lei opera como um instrumento maleável nas mãos das elites poderosas, dobrando-se a interesses privados, enquanto se converte em grilhões opressores para os vulneráveis, instaura-se uma crise moral profunda, que nenhum indicador macroeconómico, por mais optimista que seja, consegue mascarar. A justiça, outrora pilar da igualdade, degrada-se em um privilégio elitista, acessível apenas àqueles com meios para suborná-la ou manipulá-la. Esse desequilíbrio não é mero acidente histórico, é o prelúdio para o desmoronamento de qualquer Estado de Direito autêntico, onde a lei deixa de ser escudo universal para se tornar arma selectiva.
Essa impunidade se manifesta de maneiras multifacetadas e insidiosas, desde o desvio sistemático de verbas públicas em esquemas bilionários até à gestão predatória de recursos naturais e colectivos. Pense nas obras públicas fantasmas que devoram orçamentos astronómicos sem jamais materializar tais projectos, nos contratos superfacturados que enriquecem oligarcas enquanto comunidades inteiras padecem sem infra-estruturas básicas, ou na ausência absoluta de accountability, onde investigações são sabotadas por pressões de nhonguistas. No quotidiano, ela se infiltra nas pequenas corrupções normalizadas: o suborno no guiché do cartório para agilizar um documento, a “propina” no hospital público para saltar filas intermináveis, ou o favorecimento em licitações que se torna tão rotineiro quanto o nascer do sol. Quando institucionalizada, a impunidade metamorfoseia o Estado em um aparato de auto-preservação para os dominantes, invertendo a sua vocação primordial de instrumento de serviço público para um mecanismo de extracção de riqueza privada.
Paralelamente a essa praga, floresce um segundo mal igualmente devastador: o nepotismo, que não se limita a um desvio ético isolado, mas constitui um ataque frontal à inteligência colectiva e ao potencial inovador de uma nação. Ao substituir o mérito por laços consanguíneos, amizades oportunistas ou lealdades cegas, o nepotismo corrói o tecido social por dentro, fomentando a mediocridade em detrimento da excelência. Ele não apenas desmotiva os talentosos, que vêem oportunidades evaporarem em favor de apadrinhados incompetentes, mas perpetua ciclos de desigualdade inter-geracional, transformando a administração pública em um feudo hereditário. Nessas situações, o sobrenome suplanta o curriculum vitae, eclipsa o talento inato e até instituições vitais são capturadas por clãs familiares ou cartéis de bandidismo que tratam o erário público como património pessoal, drenando recursos que poderiam impulsionar o desenvolvimento sustentável. Esse fenómeno rouba o futuro dos capazes, erode o valor do esforço honesto e aniquila a mobilidade social baseada no mérito, condenando gerações a um sistema onde o sucesso depende não de competência, mas de conexões privilegiadas.
Refundar o Estado, portanto, transcende o âmbito meramente político para se afirmar como um imperativo moral, civilizacional e existencial. Trata-se de resgatar o serviço público da sua degradação actual, restaurando a integridade das instituições e reafirmando a autoridade imparcial da lei como guardiã da equidade. Para tal, é essencial erigir novos pilares que sustentem essa reconstrução com solidez e legitimidade duradoura.
O primeiro pilar reside na transparência absoluta, que eleva a responsabilidade pública ao domínio colectivo e inalienável. Isso demanda a publicação em tempo real de todas as contas públicas, a abertura irrestrita de contratos, nomeações e licitações ao escrutínio cidadão, e a criação de plataformas digitais acessíveis e intuitivas onde o dinheiro público possa ser rastreado com precisão cirúrgica. Gestores públicos devem operar sob a premissa de que os seus actos serão examinados publicamente, fomentando uma cultura de accountability preventiva. A transparência actua como o antídoto supremo à corrupção: ao inundar os processos com luz, dissipam-se as sombras onde o mal prolifera. Exemplos globais, como os portais de transparência na Estónia ou na Geórgia, demonstram como essa abordagem pode reduzir drasticamente os índices de corrupção, restaurando a fé pública.
O segundo pilar é a prestação de contas efectiva e inexorável, que pressupõe o desmantelamento de imunidades parlamentares e executivas abusivas, o empoderamento de tribunais independentes e o estabelecimento de mecanismos judiciais ágeis e imparciais. A lei deve incidir com igual rigor sobre todos, independentemente de cargo ou influência, e os danos ao património colectivo devem ser reparados com severidade exemplar. Quem desvia fundos deve não apenas enfrentar sanções criminais, mas também restituir o valor subtraído, acrescido de multas dissuasórias. A impunidade floresce na ausência de consequências tangíveis, refundar o Estado implica reinstaurar o princípio da responsabilidade como eixo central, com auditorias independentes e whistleblower protections que incentivem denúncias sem retaliações.
O terceiro pilar, importante para a transformação sustentável, é a institucionalização da meritocracia e a erradicação do nepotismo. Nenhum progresso genuíno é possível quando o talento é suplantado pela proximidade. É crucial implementar concursos públicos blindados contra interferências, com avaliações anónimas, critérios objectivos e auditorias externas para garantir equidade. Nomeações devem ser justificadas publicamente, com relatórios detalhados sobre qualificações, e o nepotismo deve ser tipificado como crime grave, punível com demissão imediata, inelegibilidade vitalícia e sanções penais. Dirigentes que abusem do poder para favorecer parentes ou aliados devem ser expostos e responsabilizados, promovendo uma cultura onde o mérito é o único critério de acesso e o desempenho, o único balizador de permanência. Países como Singapura e a Coreia do Sul ilustram como a meritocracia pode catapultar nações de subdesenvolvimento para prosperidade, priorizando competência sobre conexões.
Contudo, essa refundação não se consuma por meio de decretos isolados ou reformas superficiais. Ela exige uma coragem política excepcional, aliada a uma cidadania activa e vigilante que transcenda o mero voto. Líderes devem encarnar a integridade que pregam, servindo como modelos irretocáveis, enquanto cidadãos abandonam o papel de espectadores passivos para assumirem o de fiscais implacáveis do poder que, em essência, lhes pertence. Nenhuma legislação, por mais sofisticada, reformará uma sociedade se a consciência colectiva permanecer paralisada pelo medo, pela indiferença ou pelo cinismo enraizado.
O autêntico progresso não emana de grandes planificações económicas ou injecções de capital externo, mas de reformas morais profundas que redefinem a ética e moral nacional. Não basta alterar códigos legais, é imperioso transformar mentalidades arraigadas. Isso envolve reeducar gerações para internalizarem que o Estado é servo do povo, não seu predador, que recursos públicos são invioláveis, que o mérito é um dever cívico, não uma raridade, que a corrupção não é astúcia cultural, mas crime hediondo e que o nepotismo não é herança folclórica, mas traição à justiça e ao potencial colectivo.
Essa refundação desponta no instante em que o cidadão comum rejeita o inaceitável e reassume o seu papel de sentinela da democracia, pois uma nação não perece por escassez de recursos materiais, até porque esses podem ser gerados por inovação e trabalho colectivo. A nação sucumbe quando os valores fundamentais evaporam, quando a impunidade e o nepotismo se metamorfoseiam de anomalias em normas culturais, e quando a mediocridade é enaltecida enquanto a excelência é marginalizada. Às nações que tencionam progredir, ficam as seguintes ilações: ou refundam o Estado com audácia inabalável e determinação colectiva, ou contemplam, inertes, o seu colapso irremediável. A era das soluções paliativas terminou e pode ser que não exista outra opção, que não seja refundar o Estado com ética intransigente, mérito inabalável e verdade absoluta como guias.



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