Contratos-Programa e o desafio da transparência governativa em Moçambique

OPINIÃO
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Arão Valoi

Por estes dias, a governação moçambicana resolveu vestir bata branca, calçar luvas de látex e entrar no laboratório da gestão pública. Sob a direcção do Presidente Da República, Daniel Chapo, todos os ministros assinaram os chamados “Contratos-Programa” — instrumento que, em teoria, promete fazer aquilo que o Estado raramente faz com rigor: definir metas, medir resultados e responsabilizar quem falha. Mesmo reconhecendo a crítica do Professor Elísio Macamo sobre esta inovação governativa”, é, convenhamos, uma novidade quase revolucionária num ecossistema político habituado a relatórios espessos, metas elásticas e sucessos sempre alcançados “apesar dos desafios”.

O conceito, olhando com olhos semi-científicos, é sedutor. Cada ministro passa a funcionar como uma variável independente, com indicadores claros, prazos definidos e objectivos quantificáveis. A governação, por sua vez, assume o papel de laboratório nacional, onde a eficiência deixa de ser discurso e passa a ser experimento. Se a política fosse uma ciência exacta, este seria o momento em que a hipótese é formulada: com metas claras e monitoria objectiva, os serviços públicos melhoram. Até aqui, mais pontos para o Presidente Daniel Chapo.

O problema começa quando o experimento entra na fase mais delicada do método científico: a divulgação dos resultados.

Porque, sejamos honestos, um Contrato-Programa que não é público é como um estudo científico guardado na gaveta do investigador principal. Pode até ser brilhante, rigoroso e inovador, mas enquanto não for publicado, continua a ser apenas uma convicção pessoal. E a ciência — tal como a boa governação — não vive de convicções íntimas; vive de escrutínio público.

Neste momento, os ministros gozam de um privilégio raro em Moçambique: sabem, exatamente, o que lhes é exigido, quais são as prioridades e metas, os prazos e os compromissos assumidos.

O cidadão, porém, esse, continua na ignorância metodológica. Não sabe se o Ministro da Saúde prometeu reduzir filas, aumentar médicos, tirar o sistema do colapso em que se encontra ou apenas mudar a cor das paredes dos hospitais. Não sabe se o Ministro das Obras Públicas se comprometeu a tapar buracos ou apenas a medir a profundidade deles com régua certificada. Nem sabe quantas pessoas passarão a ter, ao abrigo destes contratos, mais água, saneamento melhorado e boa higiene. Sem acesso aos dados, o povo continua a fazer aquilo que sempre fez: avaliar ministros pelo boato, pela simpatia ou pelo número de inaugurações com fita vermelha.

As Organizações da Sociedade Civil, os meios de comunicação social ou mesmo pessoas singulares que poderiam funcionar como observadores independentes do experimento, também aguardam. Esperam, com a paciência de quem já viu muitos planos nascerem com pompa e morrerem em silêncio, que as metas sejam tornadas públicas. Porque sem isso, a monitoria é impossível. Avaliar desempenho sem indicadores é como tentar medir febre sem termómetro — ficamos apenas com a sensação de que “está quente”.

É curioso notar que, em teoria, os Contratos-Programa foram concebidos precisamente para reforçar a transparência, a responsabilização e a governação orientada para resultados. Mas, na prática, enquanto não forem divulgados, continuam a ser um assunto privado entre o Presidente e os seus ministros. Uma espécie de contrato confidencial de consciência política, onde o cidadão entra apenas como destinatário final, nunca como fiscal activo.

Do ponto de vista semi-científico — porque em Moçambique até a ciência aprende a improvisar — isto cria um paradoxo interessante: temos um sistema de avaliação robusto, mas invisível. É como ter um satélite meteorológico ultramoderno que nunca divulga a previsão do tempo. O Estado sabe se vai chover eficiência ou trovejar incompetência; o cidadão só descobre quando já está molhado.

Ainda assim, é preciso reconhecer o mérito da iniciativa. Num País onde a governação, muitas vezes, se mede por intenções e não por resultados, exigir contratos de desempenho aos ministros é um sinal político forte. O Presidente Daniel Chapo envia uma mensagem clara: a paciência institucional com o improviso está a diminuir. A ideia de que “fizemos o possível” começa, lentamente, a ser substituída pela pergunta incômoda: mas cumpriu ou não cumpriu?

Este é um avanço civilizacional. Porque a responsabilização, quando levada a sério, dói. Obriga a escolher prioridades, a dizer “não” a projectos irrelevantes e, pior ainda, a admitir falhas. E nada assusta mais um sistema político do que a possibilidade de um ministro falhar com evidências documentadas.

Mas aqui entra a parte cómica — involuntária, claro. Se os Contratos-Programa não forem tornados públicos, corremos o risco de criar uma espécie de governação: a governação quântica. Nela, o ministro está, simultaneamente, a cumprir e a falhar, dependendo do observador. Para o Presidente, pode estar em incumprimento. Para o público, está impecável. Para o próprio ministro, está “em processo”. É o famoso gato de Schrödinger aplicado à política nacional.

A divulgação pública das metas não é um detalhe técnico; é o coração do processo. Sem isso, não há pressão social, não há debate informado, não há cidadania activa. O cidadão continua a ser um espectador passivo de uma peça cujo guião desconhece. E uma governação orientada para resultados não pode prescindir do olhar crítico do público — esse auditor gratuito e implacável.

É verdade que a iniciativa ainda está no início. E talvez a prudência aconselhe uma implementação faseada. Mas a experiência moçambicana ensina-nos que tudo o que não é divulgado a tempo tende a transformar-se em segredo de Estado ou, pior, em tradição esquecida. Hoje são Contratos-Programa; amanhã podem ser apenas mais um parágrafo nostálgico nos discursos oficiais.

Por isso, a expectativa é simples e razoável: publiquem-se os compromissos. Que cada ministério apresente, em linguagem clara, o que prometeu fazer, em quanto tempo e com que recursos. Que o cidadão comum consiga entender. Que a sociedade civil possa acompanhar. Que os jornalistas tenham matéria-prima para análise séria, e não apenas conferências de imprensa triunfalistas.

No fundo, o Presidente deu o primeiro passo correcto. Agora falta o segundo, igualmente crucial: abrir o laboratório ao público. Porque uma governação que se diz orientada para resultados não pode ter medo de mostrar os seus indicadores. E porque, em democracia, a ciência da governação só funciona quando os dados são públicos.

Até lá, os Contratos-Programa continuam a ser uma excelente ideia… em observação. Como diria qualquer cientista cauteloso: os resultados preliminares são promissores, mas aguardam validação externa.

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