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A saga judicial entre a multinacional francesa TotalEnergies e a empresa moçambicana Passion For Brands, Lda é hoje um retrato sombrio do funcionamento da justiça em Moçambique. Desde 2023 que as duas empresa estão em disputa nos tribunais por uma dívida que ultrapassa um bilião de meticais – valor que a multinacional se recusa a pagar, apesar de já existir decisão judicial transitada em julgado.
O caso, que parecia encaminhar-se para uma resolução em Fevereiro de 2025, entrou numa espiral de atrasos, suspeitas de manipulação processual, interferências políticas e até ameaças a magistrados. No centro da polémica está o que fontes judiciais classificam como um verdadeiro “nhonguismo judicial”: práticas de obstrução, desaparecimento de documentos e favorecimento descarado à TotalEnergies.
Inconformados com o estado das coisas, no 17 de setembro de 2025, os advogados da Passion For Brands, liderados por Ilídio Macia, dirigiram um ofício à Procuradora-Chefe da Cidade de Maputo, pedindo a intervenção urgente do Ministério Público (MP) para devolver o processo ao Tribunal Judicial da Cidade de Maputo (TJCM) e assegurar a tramitação regular.
O pedido, segundo fontes ligadas à Magistratura Judicial, foi claro: impedir que a instrução disciplinar em curso – aberta contra a juíza que condenou a Total – servisse de pretexto para travar o cumprimento da sentença.
Já a 05 de Setembro, os mesmos advogados haviam remetido outro ofício, com carácter de urgência, ao MP junto do TJCM. Nele expunham a situação da execução sumária (Proc. n.º 35/2025-Q, 13.ª Secção Comercial), sustentada no processo principal (Proc. n.º 11/2024-B), onde um despacho transitado em julgado autorizava o pagamento parcial dos valores penhorados.
Na prática, a decisão de Maio de 2025 que autorizava a emissão do cheque em favor da Passion For Brands nunca saiu do papel. Os valores permanecem retidos, apesar de a lei garantir o levantamento.
Fontes judiciais confirmam que o processo não se encontra no cartório judicial, mas sim nas mãos do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ), alegadamente por conta da instrução disciplinar instaurada contra a magistrada que ousou condenar a Total.
Ainda mais grave: surgiram denúncias de desaparecimento de documentos do processo. A instrutora do CSMJ teria registado essas irregularidades, mas até agora não se conhece qualquer responsabilização.
Enquanto isso, um funcionário do cartório do TJCM – acusado de receber subornos de 150 mil meticais para manipular prazos e travar ofícios de penhora – não só escapou a sanções apesar de devidamente denunciado, como acabou promovido a escrivão da 12.ª Secção Comercial. A promoção causou indignação entre colegas, mas não surpreendeu num sistema onde, dizem magistrados, “quem serve interesses poderosos, sobe”.
Juízes sob ameaça e pressão invisível?
A juíza substituta, Moila Chelengue, assumiu o processo, após a mas ainda não deu seguimento às decisões já transitadas. Fontes relatam que a magistrada alega estar sob ameaças anónimas, sem revelar de quem partem.
No entanto, em vez de avançar com o pagamento parcial já autorizado, limitou-se a ordenar o desembolso de cerca de três milhões de meticais a título de preparos, após exigir a correção de uma petição inicial. Um gesto que, segundo advogados da empresa moçambicana, mais parece uma manobra dilatória do que respeito pela decisão judicial.
Nos corredores da Justiça, a questão que ecoa é simples: se juízes são ameaçados e processos manipulados, quem garante a independência judicial?
A TotalEnergies, apesar de já ter reconhecido a dívida em documentos oficiais, recusa-se a apresentar provas de pagamento. Paralelamente, evita responder aos pedidos de contraditório enviados pelo Jornal.
O silêncio da multinacional contrasta com a postura de impunidade com que vem lidando com comunidades e fornecedores locais. Fontes do setor energético antecipam que, com o fim da Força-Maior e a retoma dos megaprojetos de gás em Cabo Delgado, outras empresas que também foram prejudicadas pela TotalEnergies poderão avançar com ações judiciais.
O caso Passion For Brands é, assim, um ensaio de resistência, mas também um espelho de como uma multinacional pode instrumentalizar a fraqueza das instituições moçambicanas para impor a sua vontade.
Mais do que uma disputa contratual, este é um caso que expõe o colapso da justiça em proteger o empresariado nacional. Enquanto a Passion For Brands luta para recuperar valores que lhe pertencem por direito, vê-se estrangulada financeiramente e ameaçada de falência.
O bloqueio judicial, as ameaças a juízes, o desaparecimento de documentos e a promoção de funcionários acusados de corrupção configuram um cenário onde a independência judicial é sacrificada em nome de interesses corporativos e políticos.
O caso Passion For Brands versus TotalEnergies deixa uma lição amarga: em Moçambique, nem uma decisão transitada em julgado garante justiça.
Se o sistema judicial não consegue proteger uma empresa nacional de um calote bilionário, que garantias têm outros investidores moçambicanos?
Enquanto isso, a multinacional francesa continua a operar, blindada por um sistema de cumplicidades políticas e judiciais que coloca em causa a soberania da justiça e fragiliza a confiança no Estado de Direito.

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