Até fundos do Tesouro foram usados para financiar actividades terroristas em Cabo Delgado

DESTAQUE ECONOMIA
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  • GIFiM expõe fragilidades da Conta Única do Tesouro
  • Há infiltração de redes de financiamento ilícito no coração da gestão das finanças públicas
  • Tesouro está em restruturação depois de suspeitas de corrupção institucionalizada
  • Quase meio bilhão de meticais usados para sustentar recrutamento, logística e manutenção dos al shabaabs

O relatório recente do Gabinete de Informação Financeira de Moçambique (GIFiM) lança luz sobre um fenómeno perturbador do financiamento ao terrorismo em Cabo Delgado, que no próximo mês irá completar exactos oitos anos. O documento descreve que até fundos provenientes do Tesouro Público foram canalizados, de forma directa ou indirecta, para o financiamento de actividades terroristas em Cabo Delgado. Ao analisar transacções ocorridas entre 2017 e 2024, o relatório revela uma teia complexa de movimentações financeiras que envolvem particulares, empresas privadas, instituições públicas e até a Conta Única do Tesouro (CUT), apontando que indivíduos ligados a membros de grupos insurgentes “receberam somas avultadas da Conta Única de Tesouro (CUT) e transferiram para várias pessoas com recurso a contas de serviços financeiros móveis”.

Nelson Mucandze

O retrato de jovens sem futuro, envoltos num cenário de pobreza e desigualdade, sendo recrutados por vozes externas que lhes prometem propósito e redenção, tornou-se numa imagem que serve, na explicação didáctica, como causa de insurgência. Esta narrativa, amplamente partilhada, mostra o terrorismo como uma chama alimentada de fora, que encontra na desesperança local o seu combustível. É uma explicação que faz sentido, mas que pode estar a contar-nos apenas a parte mais visível da história.

Quando escavamos para além da superfície, um retrato mais complexo e profundamente mais perturbador começa a emergir. O relatório do GIFIM revela que, por detrás da linguagem da fé, da insurgência e de complexos factores exógenos, pulsam motivações económicas bem terrenas e com actores locais. E o financiamento que sustenta esta máquina de violência não chega apenas de além-fronteiras. Ele nasce, circula e é canalizado dentro do próprio país, através de contas bancárias, transferências móveis e esquemas que envolvem actores nacionais com rosto, influência e lugar na sociedade.

Esta não é apenas uma guerra de ideologias, mas também de interesses. A desestabilização, ainda que se camufle atrás de roupagens religiosas, gera lucro, controlo de recursos e oportunidades no caos. Descobrir que há mãos moçambicanas a alimentar o fogo que queima o seu próprio chão é talvez a face mais dura desta crise – uma ferida que nos interpela a todos e exige que olhemos, com coragem, para as raízes mais profundas deste conflito.

Tecnicamente, o documento classifica que o financiamento do terrorismo (FT) é caracterizado por depósitos e levantamentos (ambos em numerário) e transferências, de pequenas somas que agregadas resultam em avultadas somas, com o objectivo de dissimular os sistemas bancário e dos serviços financeiros móveis (mobile money), por entes singulares e/ou colectivos, associados a indivíduos tidos como líderes do grupo terrorista, que actua em algumas zonas da região norte do País, e usar para financiar o recrutamento e a logística do grupo terrorista.

Fundos da Conta Única do Tesouro foram parar às mãos de terroristas

No caso específico de financiamento ao terrorismo, o documento descreve o “recebimento de fundos provenientes da CUT (Conta Única do Tesouro) por parte de um particular, alegadamente para encaminhar a uma instituição pública e subsequente transferência de parte dos referidos fundos para uma instituição pública de ensino”

A justificação formal teria sido a situação crítica vivida na província de Cabo Delgado, mas os indícios apontam para desvio de dinheiro com fins obscuros.

As tipologias detectadas pelo GIFiM mostram um padrão recorrente de uso do sistema financeiro formal e informal para dissimular as operações. Entre elas, destacam-se depósitos fraccionados em numerário, transferências sucessivas entre contas bancárias e carteiras móveis, e o uso de testas de ferro. Como observa o relatório, houve “transferências a partir de contas bancárias de indivíduo suspeito, para contas bancárias alegadamente tituladas por indivíduos pertencentes a uma instituição pública”

O documento salienta, ainda, que estas práticas não se restringem a actores privados ou organizações estrangeiras. “Alguns funcionários públicos e algumas empresas do sector público” também foram identificados como parte do esquema. Esta constatação sugere que a vulnerabilidade do Estado face às redes de financiamento terrorista vai além das falhas de vigilância, podendo envolver cumplicidade activa.

Num caso que parece saído de um romance de espionagem, o GIFIM relata que contas bancárias de um suspeito continuaram a ser movimentadas até Outubro de 2020, apesar de informações nos meios dos órgãos de comunicação social a darem o titular e a sua esposa como supostamente assassinados em Agosto do mesmo ano. A conclusão da análise é que a “suposta morte simulada visou dissociar/dissimular as suas actividades de apoio e suporte ao grupo terrorista”.

Quase meio bilhão de meticais para recrutamento, logística e manutenção da insurgência

O GIFiM apurou que, no período em análise, circularam mais de 458,6 milhões de meticais (cerca de 7 milhões de dólares) em transacções ligadas ao financiamento do terrorismo. Este fluxo financeiro foi usado, segundo o relatório, para sustentar actividades de recrutamento, logística e manutenção da insurgência em Cabo Delgado e noutras províncias.

O financiamento não se confina a Cabo Delgado. A rede opera a nível nacional, com transacções significativas identificadas nas províncias da Zambézia, Nampula, Sofala, Manica e na própria Cidade de Maputo. Internacionalmente, o GIFIM aponta para a colaboração de financiadores domiciliados noutros países da África Austral, Central e Oriental também afectados pelo fenómeno do terrorismo. “Porque não há terrorismo sem fontes de financiamento”, sublinha o relatório, explicando que a ocultação dos destinatários e da finalidade dos fundos é uma estratégia central das organizações.

O relatório já foi encaminhado à Procuradoria-Geral da República (PGR), ao Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC) e ao Serviço de Informações e Segurança do Estado (SISE), tendo resultado na emissão de mais de 50 relatórios de inteligência financeira sobre casos suspeitos. No entanto, o documento denuncia uma lacuna preocupante, que é o baixo número de comunicações de operações suspeitas por parte das instituições financeiras e a necessidade de maior capacitação dos oficiais responsáveis pela monitoria.

Especialistas em finanças públicas consideram que as revelações do GIFiM expõem um risco sistémico. A presença de fundos do Tesouro nas cadeias de financiamento ao terrorismo fragiliza a confiança no sistema estatal e compromete a eficácia das políticas de combate à insurgência. Mais do que uma falha técnica, trata-se de uma ameaça à integridade do próprio Estado.

O relatório conclui com um apelo ao reforço da cooperação entre autoridades de segurança, entidades financeiras e o poder judicial, defendendo “maior colaboração entre as autoridades que combatem e investigam o terrorismo e o GIFiM de modo a aumentar o uso de inteligência financeira”.

O relatório de análise e estratégia do GIFIM deixa claro que a luta contra o terrorismo em Moçambique não se trava apenas no campo de batalha, mas também nos corredores do sistema financeiro e nas instituições do Estado. A sofisticação e a ousadia dos métodos descritos revelam uma rede resiliente e adaptável, que explora vulnerabilidades do sistema para garantir o fluxo de fundos essencial para o recrutamento e a logística dos grupos insurgentes. O documento serve como um alerta contundente: cortar o financiamento ao terrorismo é uma batalha complexa e urgente, que exige uma resposta coordenada e robusta de todo o Estado moçambicano e da comunidade internacional.

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