Liderança e lealdade: entre o dever e a ruptura

OPINIÃO
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Nilza Dacal

Na arena política, poucas palavras são tão recorrentes, e tão deliberadamente mal compreendidas quanto “lealdade”. É uma palavra poderosa, frequentemente invocada como um selo de disciplina partidária, uma justificação para o silêncio ou uma moeda de troca em negociações de bastidores. Apresentam-na como um tributo absoluto que subordinados, aliados e, em última análise, o povo devem pagar aos seus líderes sem qualquer contestação. Esta exigência transforma a lealdade numa ferramenta de controlo, despindo-a do seu verdadeiro significado.

Contrariamente a essa visão distorcida, a lealdade genuína não é um imposto a ser cobrado nem uma dívida automática. É, na sua essência, um pacto. E, como qualquer pacto digno desse nome, só se sustenta sobre o pilar da reciprocidade. No momento em que essa confiança mútua é quebrada por uma das partes, a lealdade deixa de ser um laço que une e fortalece, convertendo-se numa corrente de servidão. A servidão pode criar uma ilusão de estabilidade e ordem, mas é uma paz frágil. Sob a superfície, acumula ressentimento e frustração, tornando-se uma bomba-relógio que, mais cedo ou mais tarde, explode em revolta e desordem.

A resiliência dos povos é notável. As sociedades são capazes de suportar o peso de crises económicas devastadoras, os horrores da guerra, catástrofes naturais e a decepção de promessas adiadas. Têm uma capacidade extraordinária de renovar a esperança, mesmo quando a adversidade parece insuperável. No entanto, a lealdade popular não é um recurso infinito. A sua fonte é a confiança e a expectativa de que a justiça prevalecerá. Essa fonte seca rapidamente diante da traição, da corrupção sistémica e da indiferença calculada por parte de quem governa.

O erro mais grave e, tragicamente, mais comum que um líder pode cometer é confundir lealdade com submissão cega. É um erro que nasce da arrogância de acreditar que o poder é permanente. Ignorar que a paciência do povo tem limites é ignorar a própria história, que demonstra repetidamente como esses limites, uma vez ultrapassados, se transformam em forças incontroláveis que derrubam regimes e redefinem nações.

A verdadeira lealdade política, aquela que constrói nações fortes, é um pacto de mão dupla. De um lado, o povo entrega a sua legitimidade através do voto, deposita a sua esperança no futuro e oferece a sua confiança. Do outro, espera, e exige que os seus líderes se mostrem dignos dessa missão, governando com ética inabalável, responsabilidade transparente e uma dedicação genuína ao bem comum, não a interesses pessoais ou de grupo. Este pacto é a espinha dorsal de qualquer democracia saudável. Quando é respeitado, fortalece a autoridade moral do líder e garante a dignidade do cidadão. Quando é quebrado, a estrutura inteira começa a ruir. A confiança nas instituições corrói, abrindo espaço para a apatia cívica, a descrença generalizada e, no seu estágio final, a revolta aberta.

A história oferece-nos lições claras e incontornáveis. Nelson Mandela é um exemplo primordial. A sua liderança é reverenciada globalmente porque ele compreendeu a regra fundamental: a lealdade não se exige, conquista-se. Ao sair da prisão, não pediu submissão ou vingança. Pelo contrário, ofereceu primeiro a sua fidelidade a uma nova África do Sul, unida e justa. O seu acto mais poderoso foi guiar o país através da reconciliação, convidando os seus antigos opressores para a construção da nação. A sua liderança foi um exercício constante de reciprocidade, e é por isso que o seu legado permanece como um símbolo universal de legitimidade e autoridade moral.

Em contrapartida, a história está repleta de líderes que levaram as suas nações à ruína ao confundirem lealdade com obediência. No Zimbábue, a exigência de lealdade a uma figura, acima do interesse nacional, justificou políticas económicas desastrosas que destruíram uma das economias mais promissoras de África e mergulharam gerações no desespero. Na Venezuela, a lealdade foi transformada num mecanismo de controlo social, onde o acesso a recursos básicos era usado para recompensar apoiantes e punir dissidentes, corroendo a coesão social e alimentando uma crise humanitária crónica. O caso da Somália demonstra o cenário mais extremo: a ausência total de um pacto entre líderes e povo, onde a lealdade tribal se sobrepôs a qualquer noção de identidade nacional, abriu um vazio de confiança que condena o país ao caos há mais de três décadas. Estes não são acidentes históricos, são avisos claros do resultado inevitável de quando a lealdade se converte em servidão.

A mensagem para os líderes de hoje não podia ser mais directa: a lealdade forçada é um engano perigoso. Pode oferecer uma sensação temporária de poder e controlo, mas é uma base frágil como vidro. Governos que se sustentam apenas no medo, na manipulação ou no clientelismo podem sobreviver por um tempo, mas nunca para sempre. O colapso da confiança popular é uma força interna mais devastadora do que qualquer oposição política ou inimigo externo. A ruína da maioria dos regimes autoritários não começou pela força dos seus adversários, mas pelo esgotamento silencioso da paciência do seu próprio povo. Por isso a grande responsabilidade dos líderes do nosso tempo é restaurar a política como um espaço de pacto, não de servidão. Isso exige uma nova postura, uma que priorize governar com verdade e clareza, mesmo quando é difícil. Exige a rejeição total da corrupção como uma prática naturalizada e a implementação de uma prestação de contas rigorosa. Acima de tudo, exige colocar o bem colectivo consistentemente acima das ambições pessoais ou de fação. É fundamental ter a consciência profunda de que liderança não é um privilégio, mas uma imensa responsabilidade. E a primeira e mais sagrada responsabilidade de qualquer líder é ser leal ao povo que lhe conferiu o poder.

A lealdade duradoura não nasce do medo, mas da confiança mútua. Não se impõe com ameaças ou chantagem, conquista-se com serviço e integridade. Uma liderança baseada nesta lealdade não aprisiona os seus cidadãos, liberta o seu potencial. É um vínculo que, paradoxalmente, fortalece a autoridade dos líderes precisamente porque respeita e eleva a dignidade dos cidadãos.

No final, a história não se dobra ao poder passageiro; ela tem um veredicto final e imparcial. Não eterniza os que exigiram lealdade como grilhões, mas sim os que a conquistaram servindo o seu povo com verdade e coragem. Mandela permanece como um farol de dignidade, enquanto inúmeros ditadores se dissolveram no esquecimento, lembrados apenas como sombras de tirania e advertências amargas. A memória dos povos é sábia e paciente: ela sempre distingue os que serviram a pátria dos que apenas se serviram dela.

Aos líderes, impõe-se uma escolha que é também um destino: querem ser lembrados como arquitectos da confiança ou como carcereiros da servidão? Querem erguer legados que inspirem as próximas gerações ou deixar para trás ruínas que envergonhem a posteridade? A resposta a estas perguntas definirá não só o seu lugar na história, mas o futuro do povo que juraram servir.

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