Alexandre Chiure
O governo, na qualidade de órgão com iniciativa de lei, está a ganhar, pouco a pouco, o hábito não aconselhável de, em alguns casos, trabalhar, como que às escondidas, na concepção e produção de algumas propostas de lei com vista a remetê-las à apreciação e aprovação da Assembleia da República.
De quando em vez, a julgar pela linguagem usada e pela violência verbal, fica-se com a impressão de que há, por detrás da necessidade de legislar, alguma maldade e demonstração de força por parte do legislador (governo), ao estilo de que “quem manda sou eu”, como se, para além da simples intenção de regulação, haja outros objectivos a atingir.
A opção de se ostracizar contraria aquilo que tem sido prática corrente no país, em que a produção de uma lei passa, necessariamente, pela consulta pública, em particular a audição das partes interessadas, para a recolha de contribuições e correcções consideradas pertinentes, de modo a melhorar ou enriquecer o texto.
Este exercício tem por finalidade, igualmente, evitar que as leis que se pretendem introduzir no ordenamento jurídico moçambicano não entrem em choque com outros instrumentos legais em vigor, particularmente a Constituição da República (CR), que não ponham em causa os direitos e as liberdades dos cidadãos.
Infelizmente, a sociedade tem sido apanhada, vezes sem conta, de surpresa aquando do debate e aprovação de certas leis na AR, cuja elaboração não contou com a sua participação.
O pior de tudo é que quando chegam às mãos de quem tem a obrigação de as cumprir, descobre-se que contêm uma miríade de erros ou incongruências. Alguns dos seus artigos são uma autêntica aberração e chocam com princípios constitucionais.
Outras leis põem, claramente, em causa alguns direitos como de associação, acesso à informação e à liberdade de imprensa, o que se configura inconstitucional.
Geralmente, estes problemas levantam-se numa altura em que as leis já terão sido chanceladas pela AR e preenchem todos os requisitos para a publicação no BR e posterior implementação.
Fica-se com a ideia de que algumas leis são impostas pelo legislador, como quem diz “eu, governo, produzo as leis e vocês, os governados, têm que as cumprir, doa a quem dor”.
Em Setembro passado devia ter entrado em vigor o novo Código Comercial, mas tal não aconteceu porque a sociedade o rejeitou por estar inquinado. É um dos produtos legislativos do governo, cuja elaboração não obedeceu aos critérios habituais. A Ordem de Advogados de Moçambique (OAM), por exemplo, assevera que não foi consultada.
Segundo defende a instituição, a lei denota falta de harmonia dos conceitos técnicos-jurídicos no ordenamento jurídico moçambicano, terminologia imprecisa, bem como erros de técnica legislativa.
O código reza, no seu artigo 17, que um menor de 18 anos pode se tornar empresário ou fazer parte de órgãos de sociedades, através do seu representante legal, facto que entra em contradição com o Código Civil, que no seu artigo 122 estabelece que a maioridade civil, no ordenamento jurídico moçambicano, se atinge com 21 anos.
Caso o referido dispositivo estivesse em vigor, com as contradições que apresenta, afectaria o ambiente de negócios, pois criaria incertezas e causaria um desconforto no seio do empresariado nacional e estrangeiro. Deste modo, terá de ser revisto com o envolvimento da magistratura, OAM e sociedade civil em geral.
Concomitantemente, surge a lei sobre as ONG’s, agora na AR, elaborada, de igual forma, sem se consultar as partes interessadas. A avaliar pelo teor da legislação e pela aspereza com que foi redigida, parece que não se destina propriamente a regular as actividades destas, mas, isso sim, “tramar” as organizações e, em alguns casos, pôr em causa a sua existência.
É que não me parece sensato exigir ou obrigar as ONG’s a investigar o passado e o presente dos seus financiadores. Primeiro, porque o resultado seria tendencioso, pois elas são as beneficiárias do dinheiro. Segundo, não é sua tarefa proceder deste modo, mas do Banco de Moçambique, que é a porta de entrada dos fundos externos no país.
A lei em questão, no seu artigo 12, não estabelece o prazo para que a entidade competente responda ao requerimento para a entrada em funcionamento de uma ONG. Esta lacuna pode dar azo a que o governo não autorize as actividades de algumas organizações.
O artigo 41, por exemplo, que versa sobre doações, proíbe as ONG’s de levar a cabo o desvio de aplicação dos seus fundos, sob pena de responderem civil e criminalmente, o que sugere tratar-se de departamentos que funcionam com o dinheiro do Orçamento Geral de Estado e, acima de tudo, configura uma interferência em assuntos de interesse de instituições de direito privado.
O terceiro exemplo é o da proposta de lei de radiodifusão, que aguarda a aprovação da AR. Apesar de ter passado pelo debate público, ainda não é consensual a nível da classe jornalística. Numa das passagens preconiza que os canais estrangeiros, sobretudo os de televisão, devem transmitir em circuito fechado. Quer dizer que quem não tem dinheiro não vai poder aceder à sua transmissão, o que é uma afronta à Constituição da República, pois viola o direito do cidadão à informação.
Há um ditado popular que recomenda o seguinte: “Se queres andar depressa, vai sozinho. Mas se queres chegar longe, vai acompanhado”. Eis as provas de que o governo, ao insistir em trabalhar isoladamente na elaboração das leis, pondo de lado as partes interessadas, não chegará longe, mas se enveredar pela sinergia com a OAM e Cia, sim.
Facebook Comments