Lula, a China e a admiração do Ocidente

OPINIÃO

Luca Bussotti

Quase todos os observadores internacionais, inclusive o presidente americano Biden ficaram admirados para o posicionamento do presidente brasileiro Lula da Silva com relação a sua aproximação a China e o consequente afastamento dos Estados Unidos.

Uma admiração fruto de ignorância histórica, de ilusão hegemônica assim como de escassa consideração da personalidade política de Lula.

Não quero tomar partido para a escolha de Lula, mas apenas propor uma breve reflexão a volta dos três pontos acima assinalados, e que levaram o Ocidente, Estados Unidos em primeiro lugar, a interpretar os primeiros posicionamentos de política externa do governo-Lula como anti-ocidentais e, portanto, negativos.

  1. Ignorância histórica: desde o fim da segunda guerra mundial os Estados Unidos estão a procura de mecanismos que permitam a este país de realizar seu plano hegemônico na América Latina. Tudo começou na esteira do posicionamento de Brasil ao longo da segunda guerra mundial, com a sua marinha de guerra às ordens da Quarta Flota americana. Foi a partir deste marco que Washington avançou formalmente a proposta aos países mais importantes da América Latina de aceitar uma Nato do Atlântico Sul, chamada Sato. A coisa não andou bem, e na década de Cinquenta, com o presidente Eisenhower na Casa Branca a tentativa repetiu-se, prosseguindo com os governos democráticos. Apesar de no Brasil e na Argentina estarem instaladas juntas militares muito próximas aos interesses americanos, a resposta foi um adiamento constante da Sato: mesmo os generais brasileiros que governavam o país naquela época, entre 1964 e 1984, viam como um Atlântico Sul dominado pelos Estados Unidos teria significado uma militarização e nuclearizacao do corredor comercial e marítimo mais importante para o Brasil. Portanto não aceitaram, adiando a decisão final e colocando os interesses nacionais em cima da sua agenda política. A última, séria tentativa foi feita ao longo da década de 1980 por Ronald Reagan. Movido pelo fogo sagrado do anti-comunismo, Reagan via o Atlântico Sul como o calcanhar de Aquiles da Nato, e pressionou novamente os governos sobretudo brasileiros e argentinos para aceitar a proposta. Entretanto, a democracia estava preste a voltar, e a partir de 1983-84 Brasil e Argentina se tornaram de novo países democráticos, liderados respectivamente por Alfonsin e Sarney, duas figuras não exactamente desprezíveis no xadrez político mundial. Com eles, a ideia da Sato e de uma hegemonia americana no Atlântico Sul foi definitivamente rejeitada, fundando, em 1988, juntamente com 21 países africanos da costa atlântica, a Zopacas, uma zona de paz e cooperação, desnuclearizada, que existe até hoje, e que Lula provavelmente vai tentar revigorar como elemento da sua política Sul-Sul.
  2. A ilusão hegemônica americana deriva, provavelmente, do facto de os Estados Unidos continuarem como os players globais mais influentes do planeta, quer do ponto de vista político, quer em termos econômicos, por exemplo mediante o uso do dólar – questão que Lula levantou – como moeda de troca internacional. O próprio posicionamento da União Europeia completamente refém dos Estados Unidos acerca do conflito entre Rússia e Ucrânia deve ter fortalecido, em Biden, a ideia de que com Brasil a música teria sido a mesma. O que a realidade mostra, até hoje, não constituir verdade.
  3. A personalidade de Lula também representa um elemento imprescindível nesta análise: fora das críticas, mais ou menos fundamentadas sobre a corrupção do sistema-Lula ao longo da sua governacao anterior, hoje Lula representa um dos poucos líderes mundiais com uma visão nacional e internacional claras. Podemos concordar ou não com ela, mas Lula, tanto na política interna (conseguir garantir três refeições por dia a todas as famílias brasileiras), quanto naquela externa (os interesses brasileiros acima de tudo, acompanhados pelos interesses comuns com os povos do hemisfério Sul) está a tomar posicionamentos claros. Por isso não deve admirar se o novo governo brasileiro esteja a procura de parceiros alternativos aos ocidentais, Estados Unidos em primeiro lugar, para evitar de ser hegemonizado, tornando-se dependente dos interesses americanos.

O desafio que se vislumbra para que Lula realize um programa tão ambicioso parece-me o seguinte: com quais companheiros vai realizar essa viagem? China e Rússia são países anti-democraticos, e a Rússia mergulhou-se numa aventura bélica como país agressor, elementos que estão longe do credo pacifista de Lula. Ao mesmo tempo, outros parceiros preferenciais, tais como a maioria dos países africanos, estão a rumar para posicionamentos autoritários e intolerantes. Porém, uma das bandeiras de Lula sempre foi a democracia, o respeito para os direitos humanos, inclusive das comunidades minoritários.

O que fazer, então?

Será este o ponto central que Lula terá de esclarecer se a alternativa a uma via hegemônica americana continuará a ser o terreno político e econômico de batalha escolhido para os seus quatros anos de governo do Brasil.

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