Luca Bussotti
Ao longo deste ano, assistimos, em dois países africanos lusófonos, a duas tentativas de golpe de estado falhadas. A boa notícia é que elas falharam, a má (ou, melhor, a suspeita) é que elas não foram exactamente golpes… A referência é a Guiné-Bissau, no início do ano, e São Tomé e Príncipe. E a suspeita é que tenham sido os dirigentes máximos dos respectivos estados a arrumar estas tentativas.
Os golpes de estado institucionais não representam novidade nenhuma no panorama da ciência política. Em tempos recentes, os exemplos não faltam: um pouco em toda a Europa, a partir dos finais da década de 1960 até o início da década de 1980 o “perigo vermelho” (comunismo) levou organizações secretas, de tipo paramilitar e ligadas aos Estados Unidos, a enveredar para uma estratégia da tensão, de forma a favorecer soluções ditatoriais em regimes que já eram democráticos, mas em que as esquerdas tinham uma forte expressão eleitoral. Se tratou de uma estação trágica da história europeia, com atentados sobretudo na Itália (o país de fronteira entre o Ocidente filo-americano e o Oriente filo-soviético, com o maior partido comunista da Europa), a partir da bomba em Piazza Fontana em Milão (17 mortos e 88 feridos), da outra em Piazza della Loggia em Brescia durante um comício sindical em 1974 (8 mortos e 102 feridos), ou do ainda mais trágico atentado na estação de Bolonha, em 1980, que provocou 85 mortos e feriu cerca de 200 pessoas. Quem realizou este projecto foram grupos da extrema direita – como os processos contra os seus expoentes demonstraram -, ligados a organizações clandestinas, como Gladio (a Stay Behind italiana, que procurava treinar tropas especiais com a ajuda americana e inglesa em previsão de um possível ataque soviético), a CIA e serviços secretos italianos desviados e ligados à P2 (uma maçonaria não reconhecida, guiada por Licio Gelli), que despistaram muitas das investigações para encontrar os culpados de atentados que provocaram centenas de mortos em todo o país. A mesma estratégia foi usada na Bélgica – com atendados em três supermercados – e na então Alemanha Ocidental, com o atentado na Oktoberfest de Monaco em 1980, matando 13 pessoas e ferindo mais de 200. Objectivo: despertar na população apavorada a necessidade de um regime forte, autoritário que pudesse enfrentar esta onda de violência propositadamente provocada, sem nenhuma explicação racional. Um projecto que deu certo na Grécia (com o golpe de estado dos coronéis, em 1967, que se mantiveram no poder até 1974), e que estava para ser bem-sucedido mesmo na Itália, que sofreu pelo menos duas tentativas de golpe de estado da extrema direita naquela época: o plano-Solo em 1964, e em 1970 o golpe-Borghese. Na Espanha, em 1981, houve uma tentativa parecida (golpe-Tejero) por parte de militares ainda ligados ao regime de Franco, que tinha terminado em 1975, com a morte daquele ditador.
Em épocas mais recentes provavelmente o presidente turco Erdogan adotou a mesma estratégia para eliminar muitos dos seus inimigos políticos: em 2016, um grupo de militares supostamente ligados a Gulen, o maior opositor de Erdogan, exilado nos Estados Unidos, tentou derrubar o presidente turco, mas muitos analistas acreditam que foi justamente este último a organizar a tentativa de golpe, com o objectivo de se livrar dos seus inimigos, restringindo cada vez mais as liberdades constitucionais.
No contexto africano existem exemplos de golpes institucionais: além dos dois acima recordados na Guiné-Bissau e em São Tomé e Príncipe (naturalmente sempre com o benefício da dúvida, pois as dinâmicas não são claras e evidentes, como no caso acima mencionado da Itália), eles se concretizam, geralmente, mediante ações não violentas. Tais ações assentam na alteração da constituição dos respectivos países, permitindo ao presidente que está no cargo de continuar a exercer as suas funções de forma aparentemente legítima, mediante alteração constitucional. Nos últimos 20 anos, de 54 africanos 20 passaram por esta experiência. Casos relativamente recentes foram o de Alpha Condé na Guiné-Conakry (82 anos no momento da terceira eleição), que depois de um ano foi por seu turno derrubado por um golpe militar, e Alassane Outtara (78 anos), na Costa de Marfim. Museveni, na Uganda, fez a mesma coisa, conseguindo um terceiro mandato depois de 35 anos no poder em 2021, e depois de ter alterado a Constituição.
Diante da “mania do terceiro mandato” e o enfraquecimento das democracias africanas, muitas vozes têm-se levantado: por exemplo, o antigo presidente americano, Barack Obama, num famoso discurso junto à União Africana em 2015, apelou para que os estados africanos deixassem de praticar a corrupção, assim como condenou os presidentes daquele continente que se agarram ao poder, tornando-o vitalício. A própria União Africana, uma instituição geralmente próxima aos regimes do dia nos vários países membros, adotou, a 25 de Abril deste ano, uma Declaration on Unconstitutional Changes of Government in Africa, em que se “condenam todas as formas de mudanças inconstitucionais dos governos em África, golpes e manipulações dos processos democráticos para efectuar emendas constitucionais ou revisões para fortalecer o poder dos regimes do dia, em violação dos princípios democráticos nacionais”. Na mesma Declaração os países africanos que ainda não tenham limites aos mandatos presidenciais (como a Guiné Equatorial) são convidados a introduzi-los, de forma a implementar processos internos mais democráticos. O que está claro é que tais golpes institucionais – segundo as próprias palavras da União Africana – se tornam possíveis em razão da fraqueza institucional da maioria dos países do continente.
Em suma, cui prodest estas mudanças institucionais? Evidentemente, apenas para quem quiser prolongar o poder de quem já o exerceu por um tempo mais que suficiente, limitando as liberdades fundamentais dos indivíduos e das organizações da sociedade civil. Encontrar formas legais para limitar este fenómeno é uma obrigação de todos os países africanos e das suas ainda frágeis democracias.

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