Helena Manuel e Margarida Langa (nomes fictícios) fazem parte do rol de muitas mulheres que vivem traumatizadas por terem sido violadas sexualmente ainda na tenra idade. O tempo passou, mas quando as duas sobreviventes olham para o passado não conseguem segurar as lágrimas. Se por um lado, o Governo reconhece que há um longo caminho a percorrer para acabar com todo tipo de violência contra a mulher, as organizações da sociedade civil apontam que há uma necessidade de punir os prevaricadores para proteger mais as mulheres.
Duarte Sitoe
A Assembleia da República aprovou a Lei nº 29/2009 de 29 de Setembro, sobre a violência doméstica praticada contra a mulher em Moçambique com o objectivo de prevenir, sancionar os infractores e prestar às vítimas de violência doméstica a necessária protecção, garantir e introduzir medidas que fornecem aos órgãos do Estado os necessários para a eliminação de todas as formas de violência contra a mulher.
Entretanto, volvidos 13 anos depois da aprovação daquele instrumento ainda persistem casos de violência contra as mulheres, com destaque para a violência sexual. De acordo com dados tornados públicos pelo Governo, através da Secretaria de Estado na Cidade de Maputo, entre Janeiro e Setembro do ano em curso foram registados, na Cidade de Maputo, cerca de 1.048 casos de Violência Baseada no Género.
Embora não esteja directamente relacionada com estas estatísticas mais recentes, Helena Manuel é um dos rostos que espelham o drama de quem já foi vítima de violação sexual e a justiça nunca foi feita.
Foi violada sexualmente pelo tio quando tinha 14 anos de idade, mas não contou o que lhe aconteceu por ter sido ameaçada de morte. Hoje, com 24 anos de idade, Manuel ainda guarda sequelas daquela fatídica tarde.
“Por ter o mesmo nome da minha tia, desde criança o meu tio sempre me chamou de esposa. Quando perdi a minha mãe, com apenas 10 anos, a minha tia decidiu que tinha de passar a viver na casa dela. Aceitei porque ela tinha condições de custear os meus estudos, mas quando completei 14 anos, e por ter um porte físico acima da minha idade, o meu tio começou a me olhar como mulher. No início, ele me acariciava os seios e me apalpava as partes íntimas, mas sempre tive medo de contar a minha tia o que acontecia na sua ausência”, disse Helena Manuel, sem conseguir segurar as lágrimas nos olhos.
O silêncio acabou sendo o gatilho para mais abordagens indecentes por parte do tio, que certo dia aproveitando-se da ausência da tia, a dominou e forçou-a a manter relações sexuais.
“Na presença da minha tia, o meu tio fazia de tudo para parecer uma boa pessoa, mas quando ela não estivesse a história era outra. Não consigo esquecer o que aconteceu naquela tarde. Nunca tinha me envolvido com nenhum homem, mas mesmo sabendo que era menor de idade o meu tio abusou de mim. Hoje tenho 24 anos de idade, mas nunca me envolvi com nenhum homem e achei melhor mudar a minha orientação sexual porque quando um homem se aproxima de mim, mesmo com as melhores intenções, penso que o mesmo quer me violentar”, relatou a jovem.
A sobrevivente conta que mesmo com a ajuda de psicólogos e orações na igreja ainda não conseguiu superar os traumas do passado e que ainda guarda mágoas do tio que faleceu em 2019, vítima de acidente de viação na África do Sul.
“Não consigo perceber como aquele senhor continua livre”
Margarida Langa, por sua vez, foi violada sexualmente pelo vizinho, mas mesmo depois da denúncia o implicado continua impune porque os exames, supostamente adulterados, não comprovaram a penetração. Volvidos sete anos, Langa ainda clama por justiça.
“Até hoje não consigo perceber como aquele senhor continua livre depois de ter me violado. Ficou provado que ele me violou, mas quando chegamos à esquadra disseram que os exames não provam que fui violada porque antes a minha mãe me deu banho”, relata, desconfiando que os resultados possam ter sido adulterados.
Inconformada pelo sucedido, Margarida Langa pensou em fazer a justiça pelas próprias mãos, mas tal facto não se concretizou porque o violador acabou por mudar de residência devido à pressão dos vizinhos.
“Foi frustrante o que aconteceu. Mesmo com todas as provas o violador foi inocentado. Por estar traumatizada pensei em fazer a justiça pelas próprias mãos, mas felizmente aquele senhor foi mandado embora pelos meus vizinhos devido ao seu comportamento, porque além de violar crianças se envolvia com as mulheres dos outros. O tempo passou, mas até agora não consigo esquecer o que aconteceu naquele dia. Tenho namorado, mas por vezes, quando ele me toca, lembro daquela agressão”, desabafa.
Quando o violador é quem devia proteger
Esse é o drama de Esselina Mangue, que foi violada pelo próprio pai e foi obrigada a não denunciar o caso porque o pai era quem colocava o pão na mesa na casa dela. Actualmente, com 31 anos e mãe de dois filhos, Mangue ainda não conseguiu perdoar a mãe por ter sido conivente.
“Tinha 16 anos de idade quando tudo aconteceu. Fiquei traumatizada porque fui violentada pelo meu próprio pai. Contei o que aconteceu à minha mãe, mas ela ficou indiferente e disse que não podia denunciar porque o meu pai era quem colocava a comida na mesa. Perante aquela situação perdi o amor pela vida e por vezes pensava em tirar a minha própria vida, mas felizmente isso não aconteceu”, desabafa.
Esselina contou ao Evidências que ficou grávida como resultado da violação do próprio pai, mas foi obrigada a abortar porque não podia dar à luz ao próprio irmão.
“Um mês depois de ser violada percebi que estava grávida, mas tive que tirar porque fui engravidada pelo meu próprio pai. É uma situação que até hoje me custa acreditar, sobretudo pelo comportamento da minha mãe. Hoje sou mãe de dois filhos, mas raramente falo com os meus pais por culpa daquilo que aconteceu no passado. Ainda não os perdoei pelo facto do meu pai ter me violado e a minha mãe defendê-lo porque era quem colocava o pão na mesa da minha casa”, relatou com uma lágrima no canto do olho.
“As mães não podem lavar a criança depois da violação”
Das três vítimas entrevistadas pelo Evidências, apenas uma é que teve coragem para denunciar. O medo de ameaças ou perder o provedor e a pressão familiar muitas vezes leva as vítimas a ficarem no silêncio. Para a activista social Berta de Nazareth, as vítimas da violência sexual tendem a ficar em silêncio porque não encontram amparo dentro da família.
“A educação sexual não é uma pauta ao nível da família. Quando a rapariga é violada tem dificuldades para partilhar a informação. O aumento do número de denúncias nos últimos anos reflecte o trabalho que a sociedade civil está a fazer para explicar que as pessoas devem denunciar este tipo de crime, mas ainda assim, muitas vítimas de violência sexual continuam em silêncio”.
Nas entrelinhas, Berta de Nazareth defendeu que as organizações da sociedade civil devem apostar na formação da rapariga, tendo apontado que graças à iniciativa “Eu sou Nthavas” mais de 10 casos de violação sexual foram julgados no ano passado.
Por sua vez, na qualidade de representante do Ministério do Gênero, Criança e Acção Social, reconheceu que no grosso das vezes os violadores ficam impunes por falta de provas, uma vez que as mães lavam as crianças antes de ir fazer a denúncia.
“A impunidade é que faz com que os índices de violência sexual aumentem. No grosso das vezes, os violadores acabam ficando impunes. Sinto como mãe e como profissional o que está a acontecer dentro das comunidades, mas quem pode responder essa e outras questões é o ministério da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos. As mães não podem lavar a criança depois da violação sexual porque destroem todos vestígios e os violadores acabam ficando impunes”.
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