Maningue Magic desperta o “gigante adormecido” das artes moçambicanas

CULTURA DESTAQUE
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  • Quebrando décadas de estagnação e abrindo espaço para novos actores e narrativas

Moçambique sempre foi um país de tradição teatral e cinematográfica, mas, durante décadas, o sector viveu um longo silêncio. Palcos que antes fervilhavam de criatividade perderam vida, e salas de cinema transformaram-se em templos, armazéns ou ruínas. A ausência de investimento e políticas culturais eficazes adormeceu o “gigante” das artes cénicas e audiovisuais. Quatro anos depois da chegada do canal Maningue Magic, produzido localmente pela DStv, o cenário começa a mudar: o país volta a produzir, a representar e a acreditar no poder das suas histórias.

Inocêncio Albino

Num passado não muito remoto, o teatro e o cinema circulavam pelas várias artérias que compõem este imenso território quase da mesma forma que o sangue circula nas veias. Num processo quase imperceptível, semelhante ao que ocorre quando se compromete a função central do coração, cujos motivos pouco importam aqui mencionar, os vários actores envolvidos frearam a difusão teatral e cinematográfica nos moldes como faziam nos primórdios da fundação da nação moçambicana.

No caso do cinema, em certa medida, parte significante das infra-estruturas para a sua exibição passou a responder às demandas de outros tipos de actividades ou eventos sociais e religiosos quando simplesmente não entravam em desuso – impacto da falta de manutenção que resultou na sua degradação. Alguns festivais cinematográficos de renome deixaram de existir no país, em clara sinalização do cansaço dos seus fundadores perante a inoperância ou inexistência do mecenato cultural, para além da busca pessoal de novas oportunidades em sectores mais atractivos e seguros.

O teatro amador, por seu turno, que animava os bairros das capitais provinciais, perdeu a sua organicidade. Vale lembrar que o teatro amador foi o estopim da criação do Festival de Teatro de Inverno, em 2004, hoje conhecido pelo nome Festival Internacional de Teatro de Inverno – FITI.

No caso da cidade de Maputo, a criação do Curso de Licenciatura em Teatro pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane, associada à adopção de novos interesses por parte dos próprios grupos teatrais, instalou uma pequena crise existencial, sobretudo no seio desses actores orgânicos. A concorrência com obras teatrais com uma produção sedimentada em metodologias e teorias científicas nas instituições de fomento artístico-cultural da capital não conseguiu estimular a maioria dos grupos teatrais amadores, que, confrontados com outras dificuldades, acabaram saindo da cena desse novo ecossistema em formação.

Se, de facto, para o campo teatral, a academia introduziu uma base metodológica científica no trabalho oficinal desta forma de artes cénicas, também teve o mérito de massificar um novo figurino de actores no mercado que se demarcaram dos demais, orgânicos, comummente denominados «actores amadores», pela posse da chancela institucional que os ressignificou e, ao mesmo tempo, procedeu à sua validação como actores profissionais.

No caso da sétima arte, o problema é mais sério do que se pode imaginar. O produtor moçambicano Luís Simão, uma voz autorizada pelos vários anos de carreira, experiência profissional, institucional multifacetada e longeva no campo da televisão, assim como pelo contributo na edificação dos alicerces do que, hoje, o mundo reconhece como sendo «cinema moçambicano», afirma que «como o cinema é caro e tem havido pouco investimento, [pode-se dizer que] desde a década de 1990 até ao ano 2020 houve um vazio – até que surgiu o projecto Maningue Magic, com o João Ribeiro».

Como é evidente, a contextualização traçada até aqui – aparentemente – não tem nenhuma relação com o canal Maningue Magic. Mas é uma componente fundamental para o entendimento sobre como este novo actor televisivo passa a configurar-se um factor crítico para a nova dinâmica das artes cénicas, do cinema e de outros produtos e serviços do broadcasting [telenovelas, seriados, programas de entretenimento artístico-cultural] moçambicano que passam a compor o novo ecossistema do sector das indústrias culturais e criativas no país.

A matéria designa a este sector [fragmentado, na ausência do novo actor televisivo que entra em cena] «gigante adormecido», argumentando que, na ausência das acções protagonizadas pelo novo actor em referência, não seria suficientemente capaz de satisfazer as condições conceituais e operacionais para se considerar uma indústria cultural e criativa. Nas condições actuais, o «gigante adormecido» é chacoalhado pelo canal Maningue Magic, existente há quatro anos, e revigora-se para a alegria de muitos profissionais que ganham utilidade nesse mercado em formação.

Com efeito, resulta que produtos como novelas, seriados e outros de entretenimento – feitos com a qualidade proposta pelo Maningue Magic são novos no broadcasting nacional. Todavia, já existem e estão a multiplicar-se. Também resulta que actores profissionais, amadores e aventureiros não mais limitam o seu campo de acção e representação ao teatro e cinema, este último de realização esporádica, dado o elevado custo financeiro que envolve a sua produção, e altamente concorrido e disputado em resultado da escassez de vagas para a contratação de elenco.

As transformações são contínuas e potenciam a formação de uma nova cadeia de valor que passa a caracterizar o novo ecossistema das indústrias culturais e criativas moçambicanas, estimuladas pelo Maningue Magic. É sobre os seus desdobramentos e impactos que a matéria busca entender.

Um antes e um depois

Na história recente da indústria cultural e criativa moçambicana, o canal Maningue Magic é um marco relevante a partir do qual se pode mapear o antes e o depois.

No cinema, por exemplo, o financiamento para a produção de filmes estava mais concentrada nas instituições de fomento artístico-cultural estatais. Contudo, no dizer de Luís Simão, como o Estado moçambicano investe muito pouco – os realizadores lutam desesperadamente para concorrer a um financiamento de cinco milhões, sendo dividido por concorrentes das dez províncias do país. «Que tipos de filmes podem fazer com esse dinheiro? É extremamente difícil», contextualiza Simão.

Por isso, o actor, encenador e director de elenco dos seriados A Infiltrada e Marandza, transmitidos pela Maningue Magic, Joaquim Matavel, afirma que o canal marca de forma significativa o momento de transformação do sector das indústrias culturais e criativas, particularmente da indústria do audiovisual e, com ela, a das artes cénicas, com resultados positivos e promissores para o futuro.

Com certeza, os fazedores do audiovisual ganharam uma maior visibilidade no país. Na sequência, a realizadora Natércia Chicane celebra indicadores como a possibilidade de formações especializadas, a profissionalização dos vários agentes de acção no sector, assim como uma maior inserção no mercado. Também explica que a novela Maida e a série A Infiltrada são um exemplo de talentos, a nível de equipa técnica e de actores, que trazem personagens, ambientes e histórias reflectindo valores, dilemas e estéticas do país.

A exibição de narrativas moçambicanas na televisão não só assegura uma maior diversidade de conteúdos, mas reforça a afirmação da identidade cultural, a valorização das línguas e tradições nacionais, estimulando a actualização de formas de expressão artística protagonizadas por novos actores.

Conforme referiu o cineasta João Ribeiro, director da estação, há também impactos económicos, na medida em que «a presença do Maningue Magic reforça a sustentabilidade do sector audiovisual, atrai receitas, investimentos e amplia a cadeia de valor». O trabalho realizado com as produtoras nacionais estimula a produção, fomenta o emprego, forma novos mercados e contribui para a formalização dos operadores do sector.

Romper com a mesmice

O fortalecimento da cadeia de valor da indústria criativa, fruto da inclusão de novos agentes, significou a criação de novos serviços, requalificação dos já existentes ou mesmo rompimento com modelos tradicionais, sobretudo quando revelam disfunções. Segundo a observação de Natércia Chicane, no caso do teatro, impera a implementação de alguma rotura na forma de gestão de actores. Então, inovação nesse campo implica a criação do tão importante serviço de agenciamento de actores.

Chicane argumenta que «enquanto os actores não pertencerem a uma agência que lhes garanta uma remuneração mensal, teremos uma deficiência muito grande no sector, porque, para além de actuar no sector criativo, os actores são obrigados a ter um trabalho secular que lhes permite pagar as contas. Quando temos uma produção, eles têm de se dividir entre ir às filmagens e ir ao serviço. Isso desgasta-lhes muito, acabando, eles, por não se entregar a 100% das suas capacidades».

Estamos diante de uma oportunidade real para o sector do teatro que encontrou eco nas palavras de Joaquim Matavel, para o qual, ainda que relevantes, as transformações geradas pelo Maningue Magic «não ‘salvam’ o teatro no verdadeiro sentido da arte de palco e que tem na relação actor e plateia o seu sustentáculo.»

Ainda assim, não há como ignorar o impacto do Maningue Magic, pois as várias «centenas de horas de conteúdo produzido, de profissionais envolvidos e, sobretudo, a estrutura de acompanhamento que assegura qualidade em todas as fases» das produções ampliam a visibilidade do trabalho desses actores, como refere João Ribeiro.

Significa que existe um modelo de trabalho em que qualquer agente de acção [produtores, técnicos e actores, por exemplo] quando se envolve, seguramente, termina com um valor agregado. A este respeito, o realizador de «Avó Dezanove e o Segredo do Soviético», João Ribeiro, explica que logo que uma proposta é aceite, passa por um ciclo completo de desenvolvimento que envolve a escrita do guião, a escolha de actores e locações, a definição do modelo de produção, até ao visionamento e pós-produção. Assim, o processo garante a execução de projectos com padrões de qualidade elevados e funciona como um mecanismo de capacitação prática e contínua para os envolvidos.

No capítulo dos impactos, os principais indicadores revelam que são positivos. Nos últimos quatro anos, o canal estimulou a criação de mais de mil postos de trabalho, envolvendo actores e equipas técnicas. Embora sazonais, nalguns casos, a frequência e duração desses empregos aumentam com o passar dos anos. Provedores de catering, decoração, transporte e equipamentos observam, continuamente, o aumento da demanda dos seus serviços.

O actor Joaquim Matavel tangibiliza um exemplo de resultado, afirmando que o Maningue Magic não só permite a visibilidade dos actores como proporciona o seu sustento e dos seus dependentes, o que se torna difícil através do teatro. Com essa visibilidade, outro impacto é o aumento do interesse pelas produções teatrais e televisivas nacionais noutros países africanos de expressão portuguesa como Angola e da comunidade francófona [Níger, Mali, Costa do Marfim, Haiti Madagáscar e Congo], onde a telenovela Maida é transmitida fruto da recente dublagem para a língua francesa.

Por exemplo, os Grupos de Teatro Girassol e Luarte, cujos actores participam em produções da estação, estiveram recentemente no Circuito Internacional de Teatro em Luanda, Angola. A este respeito, Matavel narra que «o público que se dirigiu à sala de espectáculos fê-lo não só pela curiosidade despertada pelos títulos ou sinopses das peças, mas também pelas caras dos actores, conhecidas através do canal Maningue Magic e das redes sociais». Vale, entretanto, mencionar que, na macroeconomia moçambicana, o canal também está a estimular a captação de receitas fiscais pelo Estado.

Casos de sucesso

Tudo indica que a indústria cultural e criativa moçambicana está a ganhar solidez – sinal claro de sucesso. Contudo, a considerar a multiplicidade de exemplos bem-sucedidos nesta relação, sucesso torna-se um conceito polivalente, significando a afirmação, no espaço público, de figuras como Maida, Evan Muteto e Renato Rena, associadas ao dinamismo do Maningue Magic; a consolidação de produtoras já existentes como a Afrocinemakers alavancadas por financiamentos sólidos e pela disponibilidade de uma plataforma de distribuição que amplia a visibilidade do seu trabalho; a diversificação de produtoras que passam a produzir propostas qualitativas e concorrenciais; e sem contar com a experiência que a própria indústria ganhou aquando da produção da primeira novela moçambicana, Maida, que se constituiu num grande desafio durante as suas várias temporadas.

A este respeito, o director do Maningue Magic, João Ribeiro, menciona que para além de um enorme desafio, «a produção da novela Maida foi uma escola que muito nos orgulha não só pelo processo mas, sobretudo, pelo resultado.»

Se consideramos a complexidade do nosso mercado, em formação, é natural reconhecer desafios associados ao campo da propriedade intelectual/direitos autorais. Natércia Chicane entende que o desconhecimento dos direitos por parte dos artistas; a prevalência da pirataria que reduz, em grande escala, as receitas; e a fraca fiscalização nos canais de distribuição [Rádio, Tv. e redes sociais] são problemas que assombram a indústria.

Para contrapor a realidade, a realizadora explica que, «como produtora, tentam praticar o que é decente de forma profissional em relação aos direitos de autor». É neste contexto que Matavel considera que «o profissionalismo exigido pelo canal às produtoras faz com que estas se esforcem em crescer e tornarem-se cada vez mais profissionais em todos aspectos, a partir da cedência dos direitos das obras. Isto reforça a necessidade de as relações entre o canal e as produtoras e entre estas e os fornecedores de serviços serem reguladas por contratos.»

Portanto, as concessões de direitos autores [em relação ao uso da imagem pessoal e de trilhas sonoras, por exemplo] são reguladas por contratos entre as partes, sob o respaldo da lei. O início intencional do respeito pela propriedade intelectual é um caso de sucesso que vale a pena que se repercuta pelo País.

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