Share this
John Kanumbo
Antes mesmo das eleições de 29 de Outubro de 2025, o povo tanzaniano já clamava por reformas profundas: transparência, eleições limpas, respeito à constituição e protecção dos direitos humanos. Mas o governo em exercício ignorou esses apelos. Dissidentes, líderes opositores e cidadãos críticos foram sequestrados, presos arbitrariamente e, em muitos casos, os seus paradeiros permanecem desconhecidos. A população enfrentava um estado de medo imposto por aqueles que deveriam proteger a nação.
No dia 29 de Outubro, a população tanzaniana deu um passo histórico: milhares saíram às ruas para denunciar a fraude eleitoral e expressar rejeição aberta ao governo de Samia Suluhu Hassan. Ruas bloqueadas, aeroportos paralisados, energia cortada e Internet nacional suspensa não impediram a manifestação do povo. Plataformas como X (Twitter), YouTube e WhatsApp foram bloqueadas para tentar silenciar denúncias e mobilização, mas a resistência permaneceu firme.
Os relatos são alarmantes: de acordo com o partido de oposição CHADEMA, mais de 700 pessoas morreram em três dias de violência pós-eleitoral, incluindo mais de 350 em Dar es Salaam e 200 em Mwanza. Casas, lojas e estúdios de artistas foram queimados. A juventude Gen Z, organizada e corajosa, vestiu uniformes da polícia e prendeu policiais reais, transformando o teatro da autoridade em resistência estratégica.
Mesmo diante deste cenário, em 1º de Novembro de 2025, Samia Suluhu foi proclamada oficialmente como vencedora e recebeu a Hati de Eleição em Dodoma. Na sua primeira declaração, agradeceu à Tume Huru ya Taifa ya Uchaguzi, às forças de segurança e aos outros candidatos, afirmando que os resultados reflectem a vontade popular de “seguir em unidade e desenvolvimento”. Mas como falar em eleição pacífica diante de centenas de mortos, milhares de detidos e um povo que saiu às ruas para dizer não?
Aqui surge a grande pergunta: como Samia pretende governar a Tanzânia diante de uma população que rejeita o seu mandato? É forasteira em termos de confiança popular, mas voltou para anunciar resultados na esperança de que os media e parte da população silenciassem diante da formalidade do ato. Como é possível insistir em ocupar uma cadeira que não a quer? O que realmente pretende: governar ou apenas manter a aparência de poder?
Nos últimos dias, o Exército e a Polícia estão visitando lojas e estabelecimentos com câmaras de segurança (CCTV), obrigando os proprietários a apagar gravações de abusos cometidos pelas autoridades. Esta é uma censura explícita, uma tentativa de apagar provas e silenciar denúncias, evidenciando o desespero do governo diante da resistência popular.
A situação na Tanzânia é fora do comum e sem precedentes. Nunca antes um país africano presenciou manifestações massivas no próprio dia da eleição, com bloqueios de serviços, repressão extrema e resistência directa às forças de segurança. A desobediência civil, neste contexto, não é vandalismo: é consciência, ética e exigência de justiça.
E aqui surge outra reflexão crucial: para que serve gastar tempo, dinheiro e recursos em campanhas eleitorais quando o resultado já foi escolhido antes mesmo do voto? O caso de Samia Suluhu é emblemático: ela se candidatou sozinha, fez campanha sozinha, votou sozinha e se proclamou vencedora, apoiada por forças armadas. O que isso significa para democracia? O que isso significa para os africanos que acreditam em liberdade, escolha e participação popular?
Me surge aqui uma reflexão crítica que vai além da Tanzânia: que tipo de democracia desejamos para África? Ou seja, que democracia os países africanos realmente desejam? Devemos continuar a emprestar modelos ocidentais, que muitas vezes não reflectem nossas realidades sociais, históricas e culturais por cobiça? Ou precisamos de criar um modelo democrático próprio, baseado em justiça, participação popular efectiva, respeito à vida e à dignidade humana? Ou usar o modelo de malandragem enganoso? O que significa, afinal, governar para África? É mandar, acumular poder e riqueza, ou é servir, proteger e construir junto ao povo? Ou é servir, proteger e construir uma sociedade justa? Governar é silenciar o povo ou ouvi-lo, dialogar e atender às demandas legítimas da população aquilo que é o básico? Até que ponto o poder deve ser um instrumento de serviço e não de opressão?
O povo tanzaniano nos ensina que poder sem legitimidade moral é vulnerável, que autoridade sem consciência é frágil, e que governar sem o povo é governar sobre o nada. Líderes africanos devem tomar nota disso: governar é servir, proteger e construir, não intimidar, manipular ou matar. Samia Suluhu chegou como esperança feminina, símbolo de empatia; mas o poder sem consciência devorou a sensibilidade e transformou a líder em refém da sua própria ambição.
A Tanzânia não é apenas um caso isolado — é um alerta para toda a África. A população aliás, jovens dessa geração já não tem medo. As ruas escrevem a história em tempo real. A legitimidade não se compra com títulos ou proclamações constituicionais, mas se conquista com justiça, respeito e coragem moral. E a pergunta que fica é clara: se Samia foi proclamada vencedora, conseguirá governar um país que a rejeita, ou será lembrada como exemplo de um poder isolado e sem povo?
E, finalmente, surge a pergunta que desafia não apenas Samia, mas todos os partidos libertadores e líderes africanos: qual é o problema dos partidos libertários? Por que, mesmo com esforços históricos de luta e resistência, esta geração parece não reconhecer mais o trabalho daqueles que vieram antes? Ou será que algo fundamental deve mudar na forma de fazer política, na forma de dialogar com a população e de servir o país?
O que tudo isso significa? Significa que algo está falhando. Que o modelo importado de democracia, as estruturas partidárias e a mentalidade política não estão entregar resultados para o povo. É hora de enfrentar esta verdade sem medo: o poder que ignora o povo está condenado a cair. E aqueles que insistem em governar sem legitimidade, sem ética e sem consciência devem olhar para este espelho tanzaniano e admitir: a hora de mudança chegou. O povo já demonstrou a sua força. A resistência continuará até que justiça, verdade e dignidade sejam restauradas. Qualquer tentativa de ignorar a voz popular será mais um erro histórico, com consequências imprevisíveis. A história está sendo escrita. E quem não entende esta lição verá o seu próprio fracasso reflectido nas ruas, na resistência e na memória colectiva de uma nação.



Facebook Comments