José Eduardo dos Santos (1942-2022): Entre o amor a um revolucionário e o ódio ao ditador

POLÍTICA
  • Angolanos choram a morte do seu “Melhor Presidente de Sempre”
  • Manifestantes saíram à rua em homenagem a JES e insultaram João Lourenço
  • Filhos recusam-se a libertar o corpo de JES e até equacionam sepultá-lo na Espanha
  • Isabel dos Santos diz que funeral em Angola só depois das eleições de Agosto

A um mês das eleições presidenciais em Angola, o MPLA, partido governamental, vive uma crise sem precedentes, causada pelo agravamento das tensões entre os filhos do antigo presidente daquele país, José Eduardo dos Santos – falecido na passada sexta-feira –, e o governo liderado por João Lourenço. Logo após o anúncio da morte, a família voltou a acusar o executivo de ter acelerado o seu desaparecimento físico, o que levou a que milhares de angolanos saíssem às ruas em várias províncias daquele país lusófono para expressar o seu amor pelo antigo presidente e desdém pelo actual chefe do governo de Luanda. Houve até episódios em que dísticos com a sua imagem foram apedrejados pelos manifestantes que não se cansavam de cantar “João Lourenço, fora”. O cenário contrasta com a fama de ditador isolado e odiado pelo seu povo que dominou grandemente o espaço mediático a nível interno e ocidental. Neste momento, continua o impasse sobre o seu funeral, com os filhos, perseguidos pela justiça, a preferirem que seja enterrado na Espanha e o governo a fazer de tudo para que Zedú tenha um funeral de Estado na sua terra natal.

Evidências/Agências

Depois de mais de uma semana em coma induzido e a depender completamente de máquinas para suporte vital, o antigo presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, 79 anos, não resistiu e perdeu a vida numa unidade de saúde em Barcelona, Espanha, onde vivia há muitos anos.

A morte foi confirmada na manhã da passada sexta-feira, pela presidência angolana, através da página oficial do Facebook e depois confirmada pela família.

“O Executivo da República de Angola leva ao conhecimento da opinião pública nacional e internacional, com um sentimento de grande dor e consternação, o falecimento de Sua Excelência, o ex-Presidente da República, Engenheiro José Eduardo dos Santos, ocorrido hoje, às 11h10, hora de Espanha certificada pelo boletim médico da clínica, em Barcelona, após prolongada doença”, lê-se.

Tchizé dos Santos, uma das filhas mais velhas do ex-presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, e bastante activa nas redes sociais e na “guerra” sem quartel com o governo de João Lourenço, escreveu logo após o anúncio da morte do pai, que “os pais nunca morrem” e “vivem para sempre” nos filhos.

“Os pais nunca morrem porque são o amor mais verdadeiro que os filhos conhecem em toda a vida. Eles vivem para sempre dentro de nós”, escreveu Tchizé dos Santos na rede social Instagram, numa mensagem acompanhada por uma colagem de fotografias antigas da família.

Por seu turno, Isabel dos Santos quebrou o silêncio um dia depois para expressar o seu amor e admiração pelo pai, dando a entender que sofreu muito por não poder estar ao seu lado nos últimos momentos da sua vida.

“Te amo para todo sempre, serei sempre tua filha, serás sempre meu pai. E um dia nos voltamos a ver e conversar como sempre”, escreveu em outra publicação.

Já Joseana Lemos dos Santos, filha do ex-presidente angolano com Ana Paula dos Santos, descreveu os dias difíceis que viveu desde o dia 23 de Junho quando JES foi internado, depois de uma queda na sua casa em Barcelona, como avançaram fontes oficiais.

“Hoje, vivo dias amargos em que o meu barco perdeu o seu porto seguro. Hoje, vivo o vazio de não tê-lo. Hoje, queria muito ser comum, para que pudesse pelo menos viver esta dor no meu âmago, em silêncio absoluto. Queria muito que hoje fosses só nosso, mas ele nunca foi um homem comum”, destacou.

Polémica sobre causas de internamento e suspeitas de “homicídio”

José Eduardo dos Santos terá dado entrada no hospital onde nunca mais saiu com vida no passado dia 23 de Junho, após sofrer o que as primeiras indicações apontaram ser um infarto causado por uma AVC.

No entanto, os filhos, sobretudo Tchizé dos Santos, lançaram desconfiança sobre este quadro e clarificaram que o pai encontrava-se “estável” e que não teve nem AVC, nem ataque ao coração, nem câncer na próstata, criticando de forma aberta o Chefe de Estado, João Lourenço, por ter ligado para a esposa do seu antecessor, Ana Paula dos Santos, que, segundo ela, “até abandonou o marido”.

José Eduardo dos Santos foi induzido a um coma e dias depois o seu estado de saúde agravou-se, passando a depender exclusivamente de máquinas para suporte vital. Após o anúncio do executivo de João Lourenço, os filhos de Zedú acusaram o governo de Angola de querer acelerar a sua morte para tirarem dividendos políticos, com vista a aumentar a sua popularidade na véspera das eleições.

Num áudio posto a circular nas redes sociais, sob forma de recado “para quem anda a fazer os preparativos para o funeral do presidente emérito do MPLA”, Tchizé dos Santos acusou o médico João Afonso, que acompanhava o ex-presidente há vários anos e com quem entrou em rota de colisão, de “andar a plantar” informações na comunicação social para preparar a opinião pública para a morte do antigo presidente, enquanto “tentam convencer a família” que deve autorizar os médicos a desligarem as máquinas.

“Eu, como filha, nunca irei permitir que desliguem as máquinas de um pai vivo, que tem o coração a bater normalmente, um coração que está bom, não teve ataque cardíaco, não teve AVC”, afirmou a empresária e antiga deputada do MPLA, que chegou a contratar um escritório de advogados para evitar que se desligassem as máquinas e que algumas pessoas, incluindo Ana Paula dos Santos, tivessem acesso à sala onde estava internado o pai.

Dias depois, a imprensa espanhola vinha colocar mais gasolina ao lume ao revelar que, afinal, José Eduardo dos Santos caiu nas escadas da sua residência, em Barcelona, de uma cadeira de rodas que usava, o que levou a deterioração súbita da sua saúde. Na altura, estava na presença de sua esposa, Ana Paula, com quem havia reatado o relacionamento dois meses antes da morte.

Tchizé, o rosto mais polémico e inconformado entre os filhos, foi citada na ocasião lançando acusações sobre a “madrasta”, porque “demorou vinte minutos em chamar os serviços de urgência depois do acidente”.

“Passam-se coisas muito estranhas. Em Março, o meu pai regressou de Angola com 30 quilos a menos, muito mal. Tenho a suspeita que a ex-mulher do meu pai faz parte do plano. Tenho muito medo”, disse ela.

Por essa razão, após a morte, os filhos exigiram a realização de uma autópsia para perceber se a morte terá sido natural ou um homicídio, como se vem suspeitando. O procedimento foi feito esta segunda-feira em Barcelona e espera-se que os resultados saiam em menos de uma semana.

Uma figura que divide opiniões em Angola e no mundo

Figura bastante controversa, José Eduardo dos Santos é herói para uns e vilão para outros. Logo após a sua morte, enquanto no ocidente os meios de comunicação falavam da morte de um presidente corrupto e ditador, vozes de líderes do continente destacavam um nacionalista e revolucionário que deu um grande contributo para as independências africanas. Já nas ruas das principais cidades em Angola, os angolanos cantavam “O amor(ee) de Zedú / Só Deus é quem sabe(ee)” alternado com gritos “João Lourenço fora/ Mataram Zedú”.

Os principais jornais americanos, por exemplo, recordaram José Eduardo dos Santos como um dirigente que derrotou “rebeldes apoiados pela África do Sul e Estados Unidos”, mas que ao mesmo tempo liderou um regime corrupto que “saqueou” Angola.

“José Eduardo dos Santos, que saqueou Angola, morre aos 79 anos”, foi o título do artigo no Washington Post, que no subtítulo afirma que “um dos chefes de Estado africanos com mais anos no poder liderou o seu país rico em recursos, num conflito que parecia sem fim durante 38 anos e canalizou enormes riquezas para a sua família”.

Já o New York Times recordou que, sob a liderança de José Eduardo dos Santos, “Angola combateu e eventualmente ganhou uma guerra civil duradoura contra rebeldes apoiados pela África do Sul e Estados Unidos e apoiou rebeldes que desafiaram a dominação da minoria branca na Namíbia e na África do Sul, mas foi acusado de corrupção e nepotismo e o crescimento económico a que presidiu beneficiou principalmente a sua família e um círculo de conselheiros”.

Já o Wall Street Journal recordou que “cerca de metade de mais dos 30 milhões de pessoas de Angola vive na pobreza, de acordo com o Banco Mundial, e empréstimos sem controlo deixaram o Governo com uma montanha de dívidas quando o preço do petróleo caiu nos últimos anos de poder de dos Santos”, conclui aquele jornal especializado em economia e finanças.

Enquanto isso, de África multiplicaram-se mensagens de exaltação da figura de JES. Em Moçambique, o Presidente Filipe Nyusi destacou que JES “será sempre um ícone da luta pela independência económica de Angola, artífice da paz e pela integração regional dos países da SADC de que foi um dos fundadores. O seu legado ficará registado para sempre de forma indelével nos anais da história de Angola e de África”.

Por seu turno, numa nota da presidência, o chefe de Estado sul-africano, Cyril Ramaphosa, reconheceu a assistência material e militar prestada pelo MPLA e dos Santos à luta de libertação sul-africana.

O Presidente cabo-verdiano, José Maria Neves, afirmou que Cabo Verde está “de luto”, pois “perde um grande amigo e um líder africano que sempre contribuiu para o crescimento económico e espiritual destas ilhas”, afirmou das Neves.

Para o Presidente da Guiné-Bissau, Umaro Sissoco Embaló, José Eduardo dos Santos foi um “líder ímpar” e “grande panafricanista”. “Não é só a Guiné-Bissau, é toda a África que está de luto”, disse.

“Mataram o Zedú e ninguém vai votar”

De acordo com a DW e alguns vídeos postos a circular pelas redes sociais, os angolanos em várias províncias reagiram com bastante tristeza nos mais diversos sectores da sociedade.

“Mataram o Zedú e ninguém vai votar”; “João Lourenço fora” e “O amor(ee) de Zedú / Só Deus é quem sabe(ee)” são alguns cânticos entoados pelos angolanos nas ruas, chegando a vandalizar fotografias do actual presidente de Angola.

A interpretação que se faz, ou que alguns fazem, é que José Eduardo Santos viu acelerado o seu problema de saúde em função dos processos judiciais contra os seus filhos, segundo avançou um correspondente da DW.

Percurso de um homem amado por uns e odiado por outros

José Eduardo dos Santos sucedeu a Agostinho Neto como Presidente de Angola em 1979 e deixou o cargo em 2017, cumprindo uma das mais longas presidências no mundo, sendo que era regularmente acusado por organizações internacionais de corrupção e nepotismo.

Em 2017, renunciou a recandidatar-se e o actual Presidente, João Lourenço, sucedeu-lhe no cargo. A sua marcha política começou em 1961, quando, aos 19 anos, juntou-se ao MPLA, o Movimento Popular de Libertação de Angola, que luta contra o colonialismo português.

Em 1963, foi enviado com uma bolsa de estudos para a União Soviética, onde frequentou um curso de Engenharia Petroquímica em Baku, capital do actual Azerbaijão. Dos Santos também teve aulas de comunicação militar e regressou a Angola em 1970.

Angola tornou-se independente em 1975 e mergulhou directamente numa guerra civil entre os três movimentos de independência: MPLA, UNITA e FNLA. A capital Luanda é controlada pelo MPLA. O seu líder Agostinho Neto assumiu a Presidência do país e instalou um regime monopartidário de inspiração marxista. Dos Santos assumiu vários ministérios, incluindo os Negócios Estrangeiros e Planeamento Nacional.

Depois da morte de Neto, a 10 de Setembro de 1979, em Moscovo, dos Santos foi eleito, a 20 de Setembro, pelo MPLA, como novo Presidente. Consolida a aliança entre Angola e os países do bloco comunista, como a União Soviética e a República Democrática da Alemanha (RDA).

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