Pobres esfomeados com farda e cães raivosos voltaram a perseguir outros pobres esfomeados sem farda

SOCIEDADE
  • Polícia descarregou no povo a fúria de dois meses sem salários e falta de retroactivos
  • Em todo o País, a marcha decorria sem sobressaltos até a Polícia vandalizá-la
  • Polícia cumpriu “ordens superiores” que atropelam a Constituição da República
  • Imprensa e Organizações internacionais denunciam violação de Direitos Humanos

“Um pobre esfomeado com farda, com um cão de raça raivoso, a perseguir outro pobre esfomeado sem farda, para proteger cidadãos sem fardas mas ricos”. Vaticinou assim Azagaia numa das suas faixas musicais, longe de pensar que assim agiria a Polícia da República de Moçambique numa marcha organizada em sua homenagem, apenas uma semana depois do seu desaparecimento físico. A manhã estava tranquila e aos poucos as pessoas afluíam à Estátua de Eduardo Mondlane, na avenida com o mesmo nome na cidade de Maputo, quando os citadinos de várias origens e classes sociais que aderiram àquela marcha pacífica foram surpreendidos com ordens da Polícia para abandonarem o local porque a marcha, devidamente comunicada e com parecer favorável do Conselho Municipal, estava a ser cancelada em seguimento de ordens superiores, sem nenhum documento. A partir daí, a Polícia começou a disparar balas de borracha e gás lacrimogéneo directamente contra os manifestantes, causando desmaios e ferimentos graves a muitos cidadãos, incluindo dois jovens que ficaram sem um dos olhos. A marcha havia sido convocada em todas as capitais provinciais e algumas sedes distritais, mas acabou sendo inviabilizada nos mesmos moldes em todo o País, à excepção de Quelimane, onde os agentes da lei e ordem acompanharam os manifestantes do início ao fim do seu itinerário sem interferir. A actuação da polícia já está a ser alvo de condenação internacional, incluindo da ONU, Amnistia Internacional e Human Rights Watch, que pedem uma investigação.

Evidências

A imagem de uma polícia armada até aos dentes a descarregar toda a sua fúria sobre cidadãos inocentes que saíram à rua simplesmente com camisetas, dísticos e vozes para gritar “Povo no Poder” pode transmitir a ideia de que a corporação dirigida por Bernadino Rafael é constituída pelos cidadãos mais faustos deste País.

Mas não. Os mesmos agentes que de forma feroz combateram a marcha em todo o País estão há dois meses sem receber os seus ordenados, com um enquadramento mal parado na TSU e retroactivos ainda por receber. Deve ser por isso que os agentes, em cumprimento de supostas ordens superiores, descarregaram a sua fúria e frustração sobre cidadãos inocentes.

Como tal, o que era para ser uma marcha em homenagem ao rapper Azagaia transformou-se num banho de sangue, com inúmeros relatos de violação dos direitos humanos devido ao uso desproporcional de força. Houve agentes que atiraram de forma deliberada contra os elementos da marcha causando ferimentos graves, com destaque para um jovem que perdeu o olho.

A polícia deliberadamente disparou ao seu belo prazer granadas de gás lacrimogéneo que atingiu para além dos elementos da marcha, um autocarro de transporte de passageiros em circulação, vários transeuntes que nada tinham haver a marcha, incluindo idosos e mulheres grávidas que foram prontamente socorridos pelos populares.

Enquanto distribuía gás lacrimogéneo, a Polícia deteve várias pessoas, incluindo algumas que nem estavam nas manifestações, sendo simbólico o vídeo de um jovem já detido e neutralizado a ser violentamente espancado com cassetetes e coronhas de armas de fogo.

Até as igrejas não escaparam

Vários jovens foram agredidos pela polícia, outros detidos e muitos atingidos por gás lacrimogéneo que os agentes disparavam ao seu belo prazer contra quem estivesse por perto. Situação ainda mais estranha é que até mesmo quem estava em plena oração dentro do edifício da Fundação Aga Khan não escapou, pois granadas foram lançadas para o seu interior.

A Sé Catedral na cidade de Maputo também não escapou. Um grupo de jovens que se encontrava saindo da capela viu talvez pela primeira vez uma granada de fumaça tóxica dentro duma igreja.

Como resultados preliminares das acções policiais 22 pessoas foram detidas, outras levadas sem justa causa para as esquadras, mas graças a diversos advogados que se dispuseram a ajudar foram libertos.

Dois jovens foram atingidos brutalmente na face tendo perdido um dos olhos. No momento, se encontra fora de perigo, mas carece de muitos cuidados médicos. Na cidade da Beira, houve registo de 10 detenções.

O analista e um dos organizadores da marcha na Cidade da Beira, Wilker Dias, diz não ter dúvidas que os cartazes e seus dizeres têm razão de ser.

Enquanto os jovens tentavam sobreviver às investidas da Polícia estes entoavam canções não só do Azagaia como também lançaram farpas ao partido Frelimo e agentes a seu serviço.

Vários internautas e caras conhecidas da sociedade civil usaram as redes sociais para denunciar o comportamento da Polícia e aproveitaram a oportunidade para banir ou simplesmente “cancelar” os artistas que não só se escusaram a estar no velório do Azagaia, bem como aqueles que habitualmente são vistos em palcos dos comícios, eventos e campanhas eleitorais do partido Frelimo.

“Não se sabe quem é pior…, o que deu a ordem ou quem a executou”

Quitéria Guirengane, activista e uma das que encabeçou a marcha em Maputo, disse que quando a Polícia chegou na Av. Eduardo Mondlane reconheceu que a marcha era legal, “porém tinham ordens superiores” para não deixar que esta aconteça, se escusando a revelar o nome por detrás da referida ordem.

Quitéria que é uma activista fortemente reconhecida na área dos Direitos Humanos lamentou a situação e diz não saber quem é pior, entre quem deu a ordem e quem a executou com violência e barbaridade com que se viu.

“Aqueles que deram as ordens superiores são os que não dão a cara, que dizem que nos dão despacho positivo, mas, por detrás, dizem à polícia, agora vão chutar aquela gente. Esta é a prova inequívoca de que na República de Moçambique a Constituição não funciona. Tragam-nos o rosto dessas ordens superiores”, desabafou Quitéria.

Estas acções fizeram que Quitéria Guirengane considere Moçambique “Estado capturado, em que há pessoas que pensam que a República lhes pertence”.

O caso de Quelimane

A única cidade onde a marcha ocorreu no verdadeiro sentido foi na cidade de Quelimane, onde o edil Manuel de Araújo participou, empunhando a Constituição da República de Moçambique e um megafone ao seu dispor, coisa que mobilizou vários munícipes, incluindo ciclistas de todos pontos da cidade.

Como resultado das acções policiais, a Organização das Nações Unidas para os Direitos Humanos tomou conhecimento das graves violações havidas no dia 18 e exigiu que todos detidos fossem libertos e que se inicie uma investigação com vista a responsabilizar os autores desta grosseira mancha que Moçambique agora carrega na arena internacional, sem esquecer que recentemente o nosso País tomou um assento no conselho de segurança das Nações Unidas.

O gás lacrimogéneo começou cheirar no dia do funeral

O nervosismo de alguns corredores do Governo e do partido no poder começou a se manifestar no próprio dia do velório de Azagaia, pois ninguém acreditava que o seu legado pudesse arrastar milhares de pessoas a inundarem o seu velório desde a praça da Independência até o Cemitério de Michafutene.

Tudo começou com a barricada armada pela Polícia para impedir a passagem da urna que levava o rapper à sua última casa pela ponte que dá acesso à Avenida Julius Nherere. Fontes seguras relatam que o trajecto que a urna ia seguir foi desenhado e concebido em coordenação com o Conselho Municipal, mas, na hora, houve ordens superiores para mudar o curso do cortejo fúnebre.

Nem as súplicas da viúva foram suficientes para demover os agentes armados até aos dentes e que usou gás lacrimogéneo para dispersar as pessoas que participavam do cortejo fúnebre.

A acção fez manchetes de jornais a nível nacional e internacional e levou organizações internacionais que velam pelos direitos humanos a exigirem uma investigação às autoridades moçambicanas.

Ossufo Momade e Lutero Simango criticam atitude vergonhosa da Polícia na marcha

No dia 18 do corrente mês de Março algumas organizações da sociedade civil organizaram em todo território nacional uma marcha em homenagem ao rapper Azagaia. Contudo, na Cidade de Maputo a marcha foi inviabilizada pelas autoridades da lei e ordem que recurso a gás lacrimogêneo e balas de borracha dispersou as pessoas que se fizeram a rua.

Para Ossufo Momade, a atitude da polícia que devia proteger o povo, na sua opinião, foi vergonhosa, apelidando este episódio como mais um duro golpe à democracia em Moçambique.

“Ficamos ainda chocados quando vimos a Polícia a mando do Governo da Frelimo a impedir que a população e os admiradores de Azagaia pudessem acompanhar o trajecto fúnebre, que teve a manobra da mudança de rota previamente definida para o cortejo, que vergonha é essa? Em nenhuma parte do mundo o Estado impede os cidadãos de acompanhar um cortejo fúnebre. A polícia tinha o dever de proteger a população e começou a disparar de forma indiscriminada contra os manifestantes, ouviam-se tiros, agressões brutais, grito de desespero dos manifestantes, uso de armas de forma desproporcional, incluindo perda de vidas humanas”, denunciou Momade.

Lutero Simango criticou o excesso de zelo no modus operandi para inviabilizar a marcha em homenagem ao músico Azagaia, tendo declarado que o terrorismo de Estado deve ser combatido.

“A acção repressiva da Polícia foi uma violação das liberdades e direito a manifestação. Perderam a oportunidade de exibir esta musculatura em Cabo Delgado. Impedir a realização de marcha, não é resolver o problema ou eliminar a vontade popular de realizar marchas ou manifestações. O Terrorismo de Estado deve ser combatido”, anotou.

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