Severino Ngoenha aponta o dedo a Frelimo pelos avanços e recuos da descentralização

POLÍTICA
  • E defende transferência dos três poderes para outras províncias
  • “A Frelimo tem medo de se confundir federalismo com o tribalismo”
  • Eduardo Mondlane já defendia uma governação centrada no federalismo”

A eleição dos governadores provinciais nas eleições gerais de 2019 foi o pontapé de saída do pacote legislativo da descentralização que deriva dos acordos assinados entre Filipe Nyusi e Afonso Dlhakama. Numa altura que ainda se discute sobre a viabilidade da realização das eleições distritais, o conceituado académico, Severino Ngoenha defende que, para além da descentralização por via das eleições, Moçambique devia apostar na descentralização dos poderes centrais, ou seja, a transferência dos poderes Executivo, Legislativo e Judicial para outras províncias. Por outro lado, Ngoenha apontou que o partido no poder tem sido o travão para o avanço da almejada descentralização no País, tendo referido que a Frelimo tem medo de se confundir federalismo com o tribalismo.

O filósofo e reitor da Universidade Técnica de Moçambique, Severino Ngoenha, lembra que, desde 1990, o País tem assistido um combate entre duas doutrinas, a centralista e descentralista, sendo que a doutrina descentralista tem perdido espaço devido ao medo da Frelimo de se confundir o federalismo com o tribalismo.

Aliás, Ngoenha lembrou que Eduardo Mondlane, fundador da Frelimo defendia um modelo de governação centrado no federalismo, uma vez que o mesmo permitiria a participação efectiva da população. No entanto, o conceituado académico não entende os motivos que levaram o partido no poder a não seguir esse modelo depois da proclamação da independência nacional

“Eduardo Mondlane defendia que o federalismo poderia permitir duas coisas: primeiro, uma participação real das diferentes populações, independentemente das suas origens, línguas, culturas e crenças; e, por outro lado, teríamos o poder de cima que não era autocrata, não ditava o que as populações tinham de fazer e como deviam fazer, mas que aglutinava as diferenças numa pirâmide que não partia de cima para baixo, mas de baixo para cima”, declarou Severino Ngoenha para depois falar do risco da sudanização do País, uma vez que os cidadãos provenientes da Cidade e Província de Maputo quando se fazem as províncias são tratados como estrangeiros

Ainda à margem do Seminário do Instituto dos Estudos Sociais e Económicos (IESE), realizado sob lema “Porquê Moçambique Precisa de descentralização? Que modelos? ”, Severino Ngoenha referiu que o País deve pensar no conceito da descentralização não olhando apenas para as eleições.

“Maputo é um lugar onde menos se vive mal em Moçambique, mas não porque temos as instituições todas elas, mas porque temos a África do Sul ao lado e a África do Sul não se vai transferir. Mesmo que se transfiram os poderes de um lado para o outro a África do Sul não se vai transferir. Se os poderes saíssem de Maputo para Lichinga ou Cabo Delgado, os representantes da comunidade internacional que estão sempre atrás dos políticos estariam lá, se isso acontecesse as casas da Julius Nyerere iam baixar e os resorts também. Temos que pensar que o conceito da descentralização não se resume simplesmente nas eleições, mas eu queria pensar na descentralização dos nossos poderes centrais”, disse Ngoenha para posteriormente defender que um dos três poderes devia ser transferido para Cabo Delgado.

Na situação em que nos encontramos para fazer um sinal forte de um Moçambique e moçambicanidade devíamos passar o Governo para Cabo Delgado, o judiciário para Cabo Delgado. Queria introduzir o conceito descentralização com a ideia de descentralizar os poderes principais democráticos do nosso país. Não há nenhuma razão para que esses todos poderes sejam concentrados num espaço resíduo de Maputo”, defendeu.

Parlamento fora de Maputo?

Desenvolvendo o seu raciocínio, Ngoenha desafiou o Governo a construir, por exemplo, o parlamento em Cabo Delgado, em vez da KaTembe, ou construir os tribunais na ilha de Moçambique, e porque não em Lichinga.

“Quando pensamos na descentralização queria que a nossa pauta de reflexão não simplesmente se focasse na eleição dos administradores dos distritos, as eleições municipais, os governos provinciais pensássemos que uma das formas de descentralização é descentralizar os serviços fortes para que haja um sinal claro da parte do governo, da parte do país de sermos um país uno”.

Por outro lado, Severino Ngoenha observa que os municípios geridos pelos partidos da oposição mostraram que é possível governar da melhor forma os municípios como pode fazer o partido no poder, mas adverte que não se pode confundir a descentralização como espaço de governação por poderes partidocráticos diferentes

“Os municípios governados pela oposição ensinaram-nos que é possível o convívio entre um Governo central de um partido e por um município governado por uma estância politicamente diferente da Frelimo.  Ensinaram-nos que é possível que as oposições podem administrar tão bem os municípios como pode fazer a Frelimo. Ensinaram-nos que os municípios são espaços de democracia ou partidocracia. Os municípios foram espaços nos quais e através dos quais as populações puderam dar a voz aos próprios segmentos, as próprias vontades bem como espaços que permitiram ao partido político no poder existir porque for um espaço só particocrático estamos a interpretar a descentralização como um fenômeno de partilha de espaço de governação por poderes partidocráticos diferentes”, defendeu.

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