- Desvio do dinheiro de bonificação de denunciantes e corrupção levam a que comunidades se tornem cúmplices de furtivos
- Fiscalizadores do SDAE acusados de abocanhar percentagens que deviam ia para as comunidades
- Sociedade civil defende que o Governo deve respeitar os seus regulamentos
Nos últimos anos, Agência Nacional para a Qualidade Ambiental (AQUA) apreendeu diversas quantidades de madeira, algumas em trânsito para o Porto da Beira e outras já no interior daquele estabelecimento portuário, enquanto aguardava viagem para o mercado asiático. A madeira, grosso dela explorada de forma ilegal ou contentorizada em touro, tem as Estradas Nacionais Número Um e Seis como rota para o Porto da Beira, não obstante a existência de postos de fiscalização. Os transportadores, velhos conhecidos dos fiscais, usam falsas guias para passar nos postos de controlo, mas existem aqueles que sequer precisam ocultar a proveniência ilícita dos produtos da fauna. Para terem trânsito livre contam com a conivência dos fiscais, agentes da polícia de protecção dos recursos naturais e agentes das alfândegas, num esquema de pagamento de subornos desde o local de corte até ao Porto. Com vista a estimular a colaboração das comunidades na denúncia de casos de exploração ilegal de madeira, as autoridades introduziram a figura de bonificação de denunciantes de práticas lesivas ao ambiente, contudo, em Sofala são raros os casos de denunciantes que participaram algum caso e viram a cor dos duodécimos resultantes da multa aplicada em face da infracção denunciada. Muitas vezes, aproveitando-se do fraco conhecimento das comunidades e limitada capacidade para interporem reclamações junto de entidades, os gestores de topo e fiscais manhosos acabam se dividindo o dinheiro. Como consequência, as comunidades já não se sentem estimuladas a colaborar com as autoridades, havendo casos em que preferem receber suborno de exploradores furtivos do que esperar infinitamente por um abono que nunca chega.
Duarte Sitoe
Entre 2017 e 2023, Moçambique exportou cerca de 3,7 milhões de toneladas métricas de madeira para a China. A maioria era preciosa e semi-preciosa, como pau-rosa, pau-preto, chacate, parte dela provinha de zonas do país controladas por terroristas, mas um dos principais corredores continua sendo o da Beira, em Sofala.
Estatísticas mostram que mais de 90% da madeira explorada em Moçambique tem como destino o mercado asiático, com menos custo real para o país devido a prevalência de esquemas que facilitam a exploração e exportação ilegal de espécies preciosas e algumas até proibidas ou interditas por lei.
Nos últimos anos, a Agência Nacional para a Qualidade Ambiental (AQUA) apreendeu diversas quantidades de madeira exploradas em vários distritos da província de Sofala e algumas em trânsito para o Porto da Beira e outras já no interior do Porto, enquanto aguardavam embarque para o mercado asiático.
A título de exemplo, em Dezembro de 2022, a AQUA apreendeu cerca de 188 metros cúbicos de madeira em toro do tipo chacate preto e pau-preto que estava organizada em 45 contentores, supostamente prontos a seguirem viagem, através do Porto da Beira. Os proprietários tentam desde lá provar que a madeira estava somente conservada nos contentores, mas as autoridades insistem que se trata de tentativa de exportação ilegal.
Para chegar ao Porto da Beira, os camiões transportando madeira passaram de vários postos de controlo ao longo da Estrada Nacional Número Um e Seis, com diversas especialidades de fiscalização, Polícia da República de Moçambique e alfândegas.
Proprietários escoltam a madeira e vão abrindo o caminho com dinheiro
Contudo, o esquema de corrupção desenhado pelos exploradores facilitou a chegada de madeira explorada ilegalmente ao Porto da Beira, passando por inúmeros postos de fiscalização e, por vezes, pelo pernicioso scanner da Kudumba.
No Porto de Controlo de Nhamapadza, ao longo da Estrada Nacional Número, segundo uma investigação levada a cabo pelo Evidências, os exploradores têm um esquema com fiscais e polícia para transportar madeira explorada ilegalmente e outras espécies proibidas.
Para corromper a polícia, o dono da mercadoria é o primeiro a passar do posto de controlo para conversar com os fiscais e agentes da lei e ordem para que estes deixem passar o camião sem nenhuma fiscalização exaustiva, sendo que para tal deixam valores monetários que variam de dois a 50 mil meticais, segundo apurado de fontes que já presenciaram essas negociações.
O esquema foi confirmado por um motorista quando o repórter do Evidências, disfarçado em alguém que representa um investidor chinês interessado em investir no negócio, perguntou quais eram os requisitos para transportar madeira sem barulho com a polícia.
“Tudo é possível para quem tem dinheiro. É possível transportar vários produtos sem complicações da polícia, mas para tal é necessário pagar. Nós exploramos essa madeira em Maringue. O meu patrão passou daqui e resolveu tudo com a polícia, por isso não tivemos nenhuma complicação. Esta é que tem sido a regra do jogo”, diz sem pudor, confirmando o que o Evidências teve oportunidade de observar.
O Evidências escalou igualmente o Porto da Beira com o intuito de perceber como funcionava o esquema do transporte de madeira. Na companhia de um, o nosso repórter se apresenta como mediador de alguém muito importante que pretende enviar produtos florestais para o mercado asiático de forma ilegal.
Um dos operadores do Porto da Beira, que tinha conexão com os oficiais das Alfândegas e Despachantes Aduaneiros, referiu que a situação era complicada porque o controlo estava cerrado, mas garantiu que não era impossível, sendo que para tal devia estar disposto a desembolsar algum dinheiro, porque corriam o risco de perder o emprego por causa de valores ilusórios.
Relativamente aos valores envolvidos, aquele operador disse que cobrava de 25 a 75 mil meticais por cada contentor, valor que posteriormente seria dividido com os que trabalham no scanner e oficiais das alfândegas.

Desvio de bonificação de denunciantes leva comunidades a aceitarem colaborar com furtivos
No intuito de estimular a denúncia de exploração ilegal de madeira, o Governo tem um mecanismo de bonificação dos cidadãos que denunciam situações de exploração ilegal de madeira, previsto no artigo 87 da Lei n.º 17/2023 de 29 de Dezembro, que estabelece os princípios e normas básicas sobre a protecção, conservação e utilização dos recursos florestaise revoga a Lei n.º 10/99, de 7 de Julho.
O artigo aponta que os valores provenientes das multas por infracção e da venda em hasta pública destinam-se à melhoria do sector florestal e ao incentivo para os intervenientes no processo de fiscalização florestal e da comunidade onde os recursos florestais foram explorados, sendo que “compete ao Governo fixar a percentagem dos valores provenientes das multas ou da venda em hasta pública destinada ao incentivo dos intervenientes referido no número 1 do presente artigo”.
Já a Lei n.º 10/99, de 07 de Julho, Lei de Florestas e Fauna Bravia, determina que “50% dos valores provenientes das multas por transgressão à legislação florestal e faunística destina-se aos fiscais de florestas, fauna bravia e aos agentes comunitários que tiverem participado no levantamento do processo de transgressão respectivo, bem como as comunidades locais ou a qualquer cidadão que tiver denunciado a infracção”.
No entanto, este instrumento normativo ainda não se fez sentir nas comunidades, uma vez que quando denunciam não vêem a cor do dinheiro determinado pelo Executivo. Muitas vezes, o dinheiro até é desembolsado, mas é desviado e dividido pelos fiscais e seus superiores.
A título de exemplo, no distrito de Marínguè, nas comunidades Nhamacromo e Macomo, nos últimos anos, os nativos denunciaram abate indiscriminado de árvores promovido por empresas detidas por nacionais e estrangeiros, mas até hoje não foram bonificados pelo Governo.
A falta de bonificação naquele ponto da província de Sofala torna as comunidades presas fáceis para tácticas de aliciamento dos furtivos, visto que as comunidades e singulares, apoiando-se na falta de seriedade do Estado, preferem receber dinheiro de madeireiros ilegais, do que esperar por um abono que nunca chega.
No distrito de Marínguè, por exemplo, nas comunidades Nhamacromo e Macomo, os comitês de fiscalização da exploração dos recursos florestais e singulares denunciaram vários casos de exploração ilegal da madeira com a esperança de receber uma bonificação do Governo, segundo estabelece o regulamento aprovado em 2023.
“Quando denunciamos os furtivos não recebemos nada do Governo. Os fiscais do Serviço Distrital das Actividades Económicas viciam os processos e ficam com o dinheiro, enquanto quem denunciou a exploração ilegal da madeira somos nós. Assim, fica difícil ter forças para continuar a fiscalizar os recursos porque não tem nenhum impacto na nossa vida. Continuamos mergulhados na pobreza, as nossas casas são de condições precárias e nossos filhos estudam sentados nos troncos, enquanto a madeira sai daqui para o estrangeiro”, disse Ezequiel Francisco, para depois referir que alguns membros do Comité de Macomo já foram aliciados pelos exploradores furtivos.
Ainda na comunidade de Macomo, um singular que responde pelo nome de Amade Manuel, contou ao Evidências que, frustrado por várias vezes denunciar e não ser abonado pelo acto altruísta, decidiu receber dinheiro de furtivos para tapar os olhos e não denunciar a invasão de concessões e reservas.
“Todos membros da comunidade sabem que quando denunciam um furtivo tem direito a uma parte do valor da multa, mas isso não passa de uma utopia em Marínguè. O Governo local, concretamente o Sector das Actividades Económicas, não está a cumprir com o regulamento em vigor. Infelizmente, já denunciei um furtivo que explorava de noite, mas não fui bonificado. Tive que escolher entre ser bonzinho a morrer à fome e ganhar dinheiro para ajudar a minha família. Tive que aceitar a segunda opção, acredito que não sou o único que aceitou o dinheiro, porque ninguém vai denunciar para serem os outros a receberem o dinheiro da multa”, denunciou.
Ângela Sithole contou ao Evidências que o saudoso marido morreu no ano passado enquanto aguardava o pagamento da percentagem da multa determinada pelo Ministério da Terra e Ambiente.
“Os fiscais do Serviço Distrital das Actividades Económicas são os que ficam ricos com as multas da exploração ilegal da madeira, enquanto, na verdade, quem denuncia a maioria dos exploradores ilegais são os membros da comunidade. Em vida, o meu marido denunciou um furtivo, mas perdeu a vida enquanto aguardava pelo que lhe é direito. Nunca mais vimos o dinheiro. Essas práticas do SDAE fomentam corrupção no nosso distrito, à medida que os membros das comunidades preferem trabalhar com os furtivos para se beneficiarem dos seus recursos. No passado, pagavam a percentagem relativa às multas, mas agora quem ganha pelas multas é o Governo Provincial”, sublinhou.
SDAE de Marínguè se fecha em copas
Contactado pelo Evidências para contar a sua versão dos factos sobre a não canalização das multas aplicadas aos exploradores ilegais de madeira às comunidades, o Serviço de Actividades Econômicas de Marínguè preferiu se fechar em copas, mesmo diante do envio de uma carta de pedido de informação.
Ao contrário do SDAE de Marínguè, a directora provincial da Terra e Ambiente, Hermelinda Maquenze, quando instada a comentar sobre indícios de corrupção e a falta de bonificação aos que denunciam exploração, referiu que não conhece o regulamento que estimula denúncias de transgressão à legislação florestal e faunística através de incentivos.
“Nunca vi esse regulamento. O que sei é que todos os participantes no processo de denúncia têm direito a alguma coisa”, declarou Hermelinda Maquenze, para posteriormente referir que não estava abalizada para tecer comentários sobre a questão da corrupção nas estradas.
Sociedade civil diz que o Governo está a violar os direitos das comunidades
Para acabar com estas práticas, David Manuel, membro da sociedade que advoga sobre os direitos das comunidades na exploração dos recursos florestais, defendeu que, ao invés de criar leis e regulamentos, o Governo deve cumprir com as suas promessas e fiscalizar efectivamente a exploração.
“A lei determina que quem denuncia um explorador furtivo ou ilegal tem direito a 5% da multa que for aplicada. Não há dúvidas de que o Executivo tem aplicado multas, mas, infelizmente, o dinheiro não chega a quem denunciou”, declarou David Manuel,
Nas entrelinhas, Manuel lembrou do histórico dos casos de corrupção na exploração de madeira, tendo referido que a falta de compensação para as comunidades e singulares que denunciam exploração ilegal de madeira pode lesar o Executivo em milhões de dólares.
“O Estado perde anualmente avultadas somas de dinheiro devido a exploração ilegal de madeira por causa da corrupção no sector. As comunidades são consideradas os olhos do Governo e são imprescindíveis para evitar a exploração ilegal, daí que a falta de bonificação para quem denuncia pode abrir espaço para a corrupção”, sublinha.
Já Rodolfo Hassan, falando em nome da Agência de Desenvolvimento Económico Local de Sofala (ADEL), não tem dúvidas de que o Executivo está a violar os direitos das comunidades quando não bonifica os que denunciam os exploradores ilegais e quando não canaliza os 20% provenientes das receitas de exploração.
*Reportagem financiada pelo Centro de Integridade Pública (CIP) no âmbito de Programa de Combate à Corrupção na Justiça

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