Com situação ingovernável, moçambicanos agora vivem um dia de cada vez

DESTAQUE POLÍTICA
  • Uma semana em que não houve polícia nem autoridade para tanto bloqueio todos os dias
  • País abre e fecha quando qualquer um entender
  • Governo e polícia perderam controlo da situação. População faz as próprias regras
  • Primeiro ensaio da resposta do Governo ao custo de vida trouxe mais lenha à fogueira
  • Já não se fazem programas: transportadores e passageiros somam prejuízos

Quando o estimado leitor tiver este jornal em suas mãos ou na sua tela, certamente, em algum recanto deste país as vias de acesso estarão bloqueadas, com pneus a arder, manifestantes a exigirem redução de preços, enquanto a polícia, exausta, tenta, sem sucesso, devolver a normalidade um Moçambique cada vez mais à beira do precipício e com um povo fora do controlo, perante um Governo em crise de legitimidade e instituições desfuncionais.  Este é o retrato do que passou a ser a realidade do país de a algumas semanas a esta parte. Na semana finda, não há registo de um dia sequer em que não houve manifestação, com maior incidência para as províncias de Gaza e Inhambane, enquanto em Maputo, houve alguns episódios isolados. O bloqueio de estradas, seguido de alguns episódios de incêndio à sedes do partido Frelimo e de algumas lideranças locais, bem como saque e vandalização de estabelecimentos comerciais. Quando dessa vez não vêm com uma tabela de preços de cumprimento obrigatório, tem sido as principais formas de actuação dos manifestantes que subverteram o equilíbrio de forças a ponto de, por vezes, colocar a polícia a fugir em debandada. Em decorrência destes episódios que se tornaram imprevisíveis, a vida da grande maioria dos moçambicanos está condicionada, ou seja, vive-se um dia de cada vez, pois nunca se sabe quando e quem vai decidir fechar alguma via de acesso. Por conta disso, muita gente com viagens inadiáveis passa por grandes dissabores quando, vezes sem contas, se vê retida durante horas ou dias nos inúmeros bloqueios que têm acontecido, sobretudo ao longo da Estrada Nacional Número 1

 Evidências

Apesar de Venâncio Mondlane ter anunciado uma trégua de 100 dias, desde Janeiro do corrente ano a esta parte, Moçambique tem vivido uma nova onda de paralisações, impulsionada pela insatisfação popular com o elevado custo de vida. Em quase toda extensão da Estrada Nacional Número Um no Sul do país, tornou-se uma tarefa hercúlea viajar e prever o tempo de duração da viagem.

Se antes das manifestações, a maior preocupação das pessoas era saber qual será o estado de tempo, hoje, a esta acrescenta-se a incerteza sobre o estado de transitabilidade das vias. O Facebook e o Whatsapp viraram a bússola a qual todos, antes de saírem de casa, consultam para saber se há condições para se fazerem à rua ou que direcção tomar para evitarem serem encontrados desprevinidos.

As razões para o bloqueio das ruas são várias, desde a reivindicação da actuação das Forças de Defesa e Segurança, acusadas de raptar e fazer desaparecer jovens líderes das manifestações; passando pela exigência de redução do custo dos produtos, com preços impostos; até desaguar numa afronta directa ao poder instituído.

Na semana finda, atingiu-se o pico das manifestações que assolam em grande medida, curiosamente, a zona Sul do País. Não há registo de um dia sequer em que não houve manifestação, com maior incidência para as províncias de Gaza e Inhambane, onde os protestantes fixaram nova fasquia, ao interromper a circulação rodoviária no sentido Norte – Sul e vice-versa, durante dias. Enquanto isso, nas cidades de Maputo e Matola, houve alguns episódios isolados.

Primeiro ensaio da resposta do Governo ao custo de vida saiu pela culatra

O bloqueio de estradas, seguido de alguns episódios de incêndio à sedes do partido Frelimo e de algumas lideranças locais, bem como saque e vandalização de estabelecimentos comerciais. Quando dessa vez não vêm com uma tabela de preços de cumprimento obrigatório, tem sido as principais formas de actuação dos manifestantes que subverteram o equilíbrio de forças a ponto de, por vezes, colocar a polícia a fugir em debandada.

O movimento é liderado por jovens e adolescentes, mas vêem-se também adultos e crianças, todos hasteando a bandeira do alto custo de vida e da necessidade de redução dos preços.

Do lado do Governo, o primeiro ensaio da resposta visando a redução do custo de vida, foi um tiro que saiu pela culatra. Ao meio da semana, mais concretamente na passada quarta-feira, o Executivo fez baixar do alto do Prédio Jat, onde funciona a Autoridade Reguladora de Energia, aquelas que seriam as primeiras medidas de alívio ao custo de vida, mexendo os preços dos combustíveis.

No entanto, a redução de apenas 43 centavos na gasolina e 4.4 meticais no custo do diesel acabou sendo o estopim para que mais bairros se mobilizassem à rua. Numa iniciativa liderada por transportadores, mas fortemente aderida pelos que estão em todas as frentes das manifestações, agora a reivindicação era a redução do preço do combustível, como se todos percebessem que esta é uma variável que influi sobre o preço de todos os demais produtos.

Sob esse pretexto, desde a passada quinta-feira, várias vias de acesso, com destaque para a EN1, N2 e Circular de Maputo, concretamente em Zimpeto, Matola Rio e Albazine foram bloqueadas, obrigando centenas de passageiros a pearem para se fazerem aos seus destinos.

Na sexta-feira, em Maputo, apenas carros que iam a Katembe, Mahotas e Matola é que estavam a circular. As restantes rotas estavam bloqueadas. Na EN1 havia três bloqueios (Benfica, Missão Roque e Zimpeto), enquanto na zona do Infulene também não era permitida a passagem de carros de passageiros, o que originou enormes filas de passageiros no fim do dia. Na Baixa da cidade, os transportadores chegaram a obrigar os seus colegas de rotas a descarregar passageiros.

País abre e fecha quando qualquer um entender

 Os sinais de que não seria uma semana fácil começaram a surgir logo na segunda-feira, 17 de Fevereiro, quando vários passageiros em viagem foram surpreendidos com bloqueios de estradas. A população da vila da Macia, em Gaza, bloqueou a Estrada Nacional EN1, durante três dias seguidos, justificando a sua acção com a necessidade de redução do custo de vida e cumprimento das medidas anunciadas por Venâncio Mondlane. O comércio também esteve paralisado.

No mesmo dia, a população de Mazivila, uma pacata localidade também da Macia, colocou troncos e fogo para impedir a circulação de viaturas, exigindo o acesso à energia eléctrica.

A situação criou embaraços a viajantes que pretendiam escalar outros pontos daquela províncias ou do resto do país. Casos há de pessoas que ficaram retidas por mais de 24 horas, enquanto a polícia assistia, impávida e serena, a uma nova forma de estar da corporação, como se estivesse a passar a mensagem de que os promotores da anarquia e as vítimas que os apoiam devem se entender.

Ainda na mesma via e no mesmo dia, em Matutuíne, a população decidiu bloquear a via com recurso a um autocarro de transporte de passageiros. Já havia dias que os populares daquele distrito, concretamente de Salamanga, vinha com acções de rebeldia, tendo por várias vezes impedido a circulação de comboios para as minas de calcário.

Já na zona de Mandevo, na EN2, que liga a Cidade da Matola ao distrito fronteiriço da Namaacha, populares colicaram obstáculos na via. A reivindicação era a mesma.

No dia 18, manifestantes bloquearam por algumas horas a avenida Julius Nyerere em reivindicação ao alto custo de vida, comprometendo a circulação em direcção a Magoanine. Enquanto isso, pelo segundo dia, a população da localidade de Mandevo continuava a se manifestar.

A cidade de Chókwè viveu três dias de puro terror, dezenas de jovens e adolescentes invadiram infraestruturas vitais. Várias instituições públicas e privadas foram vandalizadas e saqueadas, enquanto o comércio e o transporte público de passageiros estiveram paralisados. Vários estabelecimentos de ensino acabaram por cancelar aulas. As  instalações das Águas da Região Sul (ADRs), área operacional de Chókwè, foram as mais visadas.

Na passada quinta-feira, a EN1 esteve intransitável em Morrumbala. No mesmo dia, a população de Bilene invadiu o estabelecimento hoteleiro do antigo secretário-geral da Frelimo, Roque Silva, e tomou banho, em protesto contra o barramento da passagem de água de uma afluente de um rio local para criar uma atracção para turistas.

Na sexta-feira, manifestantes em Inharrime marcharam até à sede distrital na vila de Nhancondo para exigir soluções imediatas para a falta de energia eléctrica e abastecimento de água.

Entre Sábado e Domingo, houve um bloqueio de mais de 24 horas no Posto Administrativo de Cumbana, no distrito de Jangamo, na província de Inhambane, com a população a reivindicar a falta de corrente eléctrica em algumas zonas do distrito. Os manifestantes obrigaram os passageiros de autocarros de longo curso a descerem.

Esta segunda-feira, foi a vez da população dos distritos de Maxixe e Murrumbene paralisar a EN1, para além de vandalizar e saquear estabelecimentos comerciais. Nos dois pontos do país, foram incendiadas as sedes do partido Frelimo. Houve relato de um baleamento mortal de um adolescente na Maxixe, enquanto, em Morrumbene, morreram duas pessoas, entre os quais, um técnico de laboratório no hospital local.

Já não se fazem programas: transportadores e passageiros somam prejuízos

Os protestos e bloqueios nas estradas estão a impactar gravemente os transportadores rodoviários que relatam prejuízos avultados devido à redução do fluxo de passageiros e o aumento do tempo de viagem, chegando a permanecer retidos nos bloqueios durante mais de 24 horas.

O sector dos transportes, segundo a Confederação das Associações Económicas de Moçambique, teve prejuízos de mais 400 milhões de meticais nas manifestações que tiveram lugar entre Outubro e Dezembro do ano passado.

Na terminal interprovincial da Junta, em Maputo, condutores e viajantes compartilham as suas dificuldades diante deste cenário de incerteza. João Anibal, motorista na rota Maputo-Johanesburgo, sente o impacto directamente no seu rendimento diário.

“Faço rotas internacionais e o fluxo de viagens diminuiu desde que começaram as manifestações, mas não temos escolha, temos que trabalhar”, lamentou.

Com cara de poucos amigos estava Carlos Matlombe, um transportador que opera na linha Maputo-Xai-Xai, que diz estar a somar prejuízos desde Outubro do ano passado.

“Não há passageiros. Desde o ano passado a situação está crítica”, afirmou Carlos Matlombe.

A redução de viagens representa menos receitas, comprometendo a sobrevivência de muitas famílias que dependem do sector de transportes interprovinciais. Agostinho Finiasse, que faz a rota Maputo-Inhambane, também testemunhou a crise no sector.

“O trabalho não está a andar, as viagens diminuíram porque as pessoas não viajam. Mas às vezes é preciso aceitar: não há vitória sem sacrifícios”, disse, sublinhando que na semana finda perdeu a conta de quantas vezes dormiu pelo caminho na sequência do bloqueio de estradas em Gaza e Inhambane.

Passageiros também se ressentem da incerteza

 Não são apenas os transportadores que se ressentem dos impactos das manifestações neste sector. Os passageiros também enfrentam dificuldades, seja para chegar aos seus destinos ou para planear viagens devido aos bloqueios e violência. Marcelina Mathe relata os transtornos que enfrentou para conseguir visitar a sua mãe doente na província de Gaza.

“Semana passada foi muito difícil conseguir viajar por causa das manifestações. As estradas estavam fechadas, então tive que adiar um pouco. Mas, graças a Deus, consegui viajar. O medo me acompanhou porque não sabia o que ia encontrar pelo caminho. Agora, não tenho certeza de nada”, desabafoy Marcelina.

Jaime Paulo, encontrado na terminal interprovincial da Junta, também partilha a insegurança diante da situação. Ele viajava para Xai-Xai e demonstrava preocupação com possíveis tumultos. Aliás, sequer tinha certeza se conseguiria chegar ao destino no mesmo dia, pois tem sido comum as pessoas pernoitarem pelo caminho por não haver condições de transitabilidade.

“Estou a viajar, mas o medo me acompanha. Não sei o que vai acontecer pelo caminho. Mas não tem como, tenho que voltar a casa. Sou de Xai-Xai, só venho para Maputo para trabalhar”, relatou o jovem.

O cenário de incerteza persiste, com os transportadores temendo mais dias de paralisações e passageiros inseguros sobre as suas viagens. Enquanto não há solução definitiva para os problemas económicos e sociais que originaram os protestos, a vida de milhares de moçambicanos segue afectada pela instabilidade.

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