- Deputados, titulares e membros de órgãos públicos chegam a receber mais de dois salários
- Só nesta legislatura, entre beneficiários de dois salários constam nomes de Egídio Vaz, Nilsa Dacal, Gil Aníbal, Leonor Neves
- Nilza Dacal foi a única que provou a devolução de salário indevido da função anterior
- Vaz denunciou e solicitou o parecer sobre uma possível incompatibilidade
- E os outros comeram, limparam a boca e fingiram ingenuidade
Num cenário de crise quase palpável, onde os salários na Administração Pública são pagos a conta-gotas, há titulares e membros de órgãos públicos, particularmente deputados, a receber dois ou mais salários, mesmo depois de no passado ter sido espoletado que alguns deputados estavam a receber mais do que um salário. Só na Assembleia da República, o Evidências conseguiu contabilizar pelo menos seis deputados da Frelimo que auferem dois salários, das suas funções anteriores (no Estado ou no sector empresarial do Estado) e o referente às novas funções como representantes do povo. Contactados, apenas dois deputados provaram factualmente terem contactado as respetivas instituições e, destes, uma deputada provou a devolução do salário recebido indevidamente, num cenário que configura insólito. Os demais justificaram que não estavam a par da situação das suas contas e que voltavam a entrar em contacto com a nossa redacção, mas, debalde. Chamado a se pronunciar, o Ministério das Finanças disse desconhecer o assunto, demostrando uma suspeita cumplicidade, enquanto a direcção de Contabilidade Pública encolheu-se na burocracia. Um deputado que está nas mesmas circunstâncias de conflito com a lei disse que não podia partilhar publicamente provas da sua “integridade” sob risco de estar a expor os seus chefes “que estão no esquema” e sofrer as consequentes perseguições internas. Curiosamente, no caso dos deputados e titulares que vêm da Função Pública, o salário é processado via e-Sistafe, que em princípio devia detectar e notificar automaticamente casos de duplicação de salários, o que levanta a hipótese de haver intervenção humana
Nelson Mucandze
Os salários na Administração Pública, desde as aventuras do Governo anterior com a Tabela Salarial Única, que agravou ainda mais a crise de tesouraria, vem caindo a conta-gotas e o Executivo acumulou anos de dívidas com funcionários e agentes do Estado de classes mais desfavorecidas, como a saúde e a educação.
De acordo com dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), o Governo despende cerca de 93% do Orçamento Geral do Estado só em salários. Se se considerar que em média o Orçamento do Estado passa pela Assembleia da República com um défice de mais de 10%, equivale a assumir que o Estado é tão improdutivo que precisa de recorrer a empréstimos para cobrir o défice de salários, daí que, de forma imprudente, tem estado desde o consulado passado a recorrer à emissão de bilhetes de tesouro para financiar a sua despesa.
É neste mesmo Estado, onde, enquanto o povo mingua na miséria e os professores e profissionais da saúde e outras classes profissionais, cujo salário mínimo está na casa dos nove mil meticais, lutam para que o Governo pague as dívidas acumuladas desde 2022, encontramos uma elite ligada ao partido no poder que recebe dois salários chorudos em duas instituições distintas.
Quem manipula o sistema e-Sistafe para não detectar duplicação dos salários de deputados?
Entre os beneficiários de salários duplicados, constam titulares e membros de órgãos públicos em diversos escalões. Os deputados da Assembleia da República, que à luz da Lei de Probidade Pública, são impedidos de servir simultaneamente em duas instituições públicas, exceptuando alguns casos como a docência, são os que mais surgem associados ao esquema de recebimento de dois salários.
Num levantamento feito por Evidências, foi possível apurar que na Assembleia da República, pelo menos seis deputados estão numa situação de conflito com a lei. Mas é apenas o que foi possível apurar, afinal, o número, de acordo com uma fonte que também se encontra na mesma situação, pode ultrapassar mais de uma dezena, não obstante a Lei de Probidade Pública destacar de forma expressa, no artigo 33, a proibição de um titular ou membro de órgão de Público receber dois salários.
Entre a lei a e realidade há uma distância abismal e há até quem recebe três salários, ou seja, embora estejam por inerência de funções dispensados dos seus antigos ministérios ou empresas públicas, são mantidos nas folhas de pagamento, recebendo, nalguns casos, salários iguais ou superiores aos das funções de deputado.
Curiosamente, nos casos dos deputados que vêm da função pública, como técnicos ou dirigentes, o salário duplicado é processado no mesmo sistema, o e-Sistafe, que, aquando do seu lançamento, foi vendida a ideia de que iria detectar funcionários fantasmas, salários duplicados, entre outras irregularidades. Diante disto, a pergunta que não quer calar é: Como é que um sistema, com uma base de dados única pode efectuar dois pagamentos para a mesma pessoa, sem que alerte para esta irregularidade?
Um deputado recebe cerca de 130 mil meticais de salário base, acrescidos de uma infinidade de subsídios e regalias. Para aqueles que exercem cargos de chefia no parlamento e nas comissões, o valor é acrescido do subsídio correspondente, podendo chegar a 270 mil meticais. É a esta infinidade de regalias que se junta o segundo salário de uma outra entidade pública ou empresa pública, mês após mês.
Uma prova de integridade pode ser “afronta aos chefes”
Depois de fazer a relação dos nomes que estariam numa situação de irregularidade, o Evidências ligou para pelo menos seis deputados. O primeiro foi Gil Aníbal, deputado que entra no parlamento em circunstâncias suspeitas, com requintes de pagamento de favores via círculo eleitoral de Nampula.
Aníbal é quadro do Instituto Nacional de Petróleo. A par dos seus colegas, prestou juramento no dia 13 de Janeiro como parlamentar. O juramento não foi suficiente para configurar a desvinculação imediata daquela instituição do Estado, tutelada pelo Ministério de Recursos Minerais e Energia, apesar dos nomes dos parlamentares constarem do Boletim da República.
O seu nome continua intacto na folha do salário do pessoal de INP. Ao ser confrontado pelo Evidências, numa conversa que não iniciou de forma ortodoxa, disse desconhecer o estado da sua conta bancária, mostrando-se parco nas palavras, tendo-se limitado a referir que “não confirma essa informação, talvez seja especulação das pessoas”. Mas ficou de confirmar o estado da sua conta bancária, que numa outra conversa, disse que estava com problemas.
Na mesma situação está Egídio Vaz, administrador não-executivo da ENH- Kogas. Vaz tomou posse como deputado da Frelimo na Assembleia da República. Ele assumiu estar consciente do risco por tratar-se de uma empresa de segunda geração, com 40% da estatal ENH, e 60% da multinacional Kogas.
No entanto, provou à nossa reportagem que deu entrada a um pedido de “esclarecimento e orientação à ENH” logo que tomou posse, enquanto entidade accionista da ENH- Kogas, relativamente à compatibilidade do exercício de um cargo de Administrador Não-Executivo e deputado da Assembleia da República, simultaneamente.
Já Leonor Neves, quadro do Ministério de Agricultura, e nada afável para um representante do povo, disse apenas que vai averiguar a sua situação financeira e desligou telefone, enquanto os nossos repórteres tinham mais questões por colocar. Mas outras informações indicam que embolsa mensalmente pelo menos 130 mil meticais da Assembleia da República e mais uns tantos balúrdios do Ministério da Agricultura, de onde é quadro.
Um caso insólito: Deputada devolve salário duplicado
Nessa busca, há um caso que se mostrou insólito. Trata-se da deputada Nilza Maria Ângela Dacal, auditora de formação, que à semelhança de Vaz, não ficou indiferente ao ver os honorários referentes às suas antigas funções.
Nilza Dazal era assessora na Assembleia da República, antes de se tornar deputada e, no seu primeiro mês, viu os seus honorários referentes às funções anteriores reflectidos na sua conta junto com o salário actual.
Confrontada pela nossa reportagem, confirmou ter recebido os dois honorários e de imediato exibiu comprovativo de devolução de dinheiro na conta do MEF- designada Terceiros, uma semana depois. Questionada sobre as motivações, ela foi parca nas palavras, evocando questões altruístas, relacionadas com a incapacidade de exercer funções sem consciência limpa, até porque como uma auditora de profissão, conhece as implicações de uma eventual descoberta de duplicação de salários.
Um outro deputado, que nos suplicou para falar em anonimato, disse que a devolução do salário pode constituir uma afronta aos seus chefes.
“Existem muitos chefes que têm dois salários. Se eu for a única pessoa a expor isso ao público, vai parecer que estou a pressionar aos outros. É de estilo o Egídio tem uma boa prática. Quem ele pensa que é para meter água nos nossos esquemas?”, disse um deputado.
Uma outra fonte disse que todos que vêm das empresas públicas ou participadas pela função pública encontram-se numa situação simular. No entanto, o Ministério das Finanças, através do seu porta-voz, Alfredo Mutombene, declarou que não tem conhecimento da notícia sobre os deputados da Assembleia da República que auferem dois salários numa altura em que as Contas Públicas se debatem com uma crise de liquidez.
Já a Contabilidade Pública se encolheu em burocracia. Solicitou um ofício e formalizada a carta do pedido de informação, pediu mais tempo para indicar o técnico que deverá falar à nossa reportagem sobre as razões que dificultam a detecção automática por via do sistema nos casos em que um mesmo funcionário é beneficiado múltiplas vezes do salário proveniente da mesma fonte.
Uma afronta vergonhosa à lei de Probidade Pública pelos mesmos que a aprovaram
A Lei da Probidade Pública da República de Moçambique (Lei nº 16/2012, actualizada pela Lei nº 12/2024), procura garantir ética e transparência na gestão pública, com foco na prevenção de conflitos de interesses e na protecção do interesse público. Esta mesma lei, apesar de não ser clara quanto a questões relacionadas a empresas da segunda geração, confundidas com as privadas, é absoluta para funcionários provenientes de empresas públicas, participadas pela função pública. No seu artigo 33, determina que é proibido ao titular ou membro de órgão público “receber remunerações de outras instituições públicas ou empresas em que o Estado tenha participação, seja em forma de salário, subsídios ou honorários e senhas de presença”.
E no caso específico de empresas não participadas directamente pelo Estado, como é o caso de ENH – Kogas, é passível das várias interpretações. Uma das principais fragilidades da Lei da Probidade Pública reside na sua falta de precisão quanto ao alcance das “empresas participadas” e à definição de conflito de interesses em situações indirectas.
Mas não há reservas quanto aos membros ou titulares provenientes de órgãos públicos. Na legislatura anterior, o Evidências apurou que para além do caso que foi amplamente denunciado, há casos como de Lúcia Mafuane, que assumia funções de Presidente da III Comissão da Assembleia da República, que terá sido notificada pelas finanças para devolver o salário que auferiu indevidamente por quase um mandato.
Mafuane continuava a receber salário dos tempos em que era professora no seu círculo eleitoral, sem dar aulas, enquanto assumia funções de chefia na bancada, acumulando desta feita dois salários e outros benefícios de chefia. De referir que os deputados são obrigados a declarar bens na Procuradoria-Geral da Republica.

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