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Alexandre Chiure
Faz 35 anos que Moçambique migrou do sistema monopartidário para o multipartidário, com a aprovação de uma constituição que introduz a liberdade de imprensa e de expressão. Uma lei que abriu espaço para o surgimento de partidos políticos e a possibilidade de os moçambicanos fazerem as suas opções políticas. O pensar diferente.
Em 1990, quando o filme sobre a democracia começou no país, tudo era novo e estranho para nós: as leis que permitem ao cidadão manifestar-se publicamente para dizer se está satisfeito ou não com a governação. A abertura para que qualquer cidadão se candidate ao cargo de PR e a deputado da AR.
Desencadeou-se um processo de criação de instituições democráticas, incluindo partidos políticos para fazer oposição à Frelimo, marcando o fim de 15 anos de independência nacional em que estávamos formatados para viver numa sociedade em que éramos obrigados a pensar da mesma forma.
Foi um choque muito grande para a Frelimo, até então partido único que seguia a ideologia marxista-leninista, ao perceber que as regras de jogo mudaram. Tinha que coabitar com outros partidos.
Uma Frelimo complexada que, em alguns casos, continua a olhar para o país a estilo monopartidário e a fazer as coisas à moda coreana de candidatos únicos e com 100 por cento de votos. Manda nos tribunais como antes, interfere na polícia. É maioritário nos órgãos eleitorais e no Conselho Constitucional, para além de controlar a economia.
Na nova forma de ser e estar no país, a polícia deixa de estar ao serviço de um único partido, a Frelimo, e passa, pelo menos em termos legais, a servir a todos em igualdade de circunstâncias, apesar de que, na prática, a realidade é outra. Às vezes, pela forma como actua, fica a impressão de que há filhos e enteados.
A polícia deixa, igualmente, de obedecer a ordens de um partido político e, segundo a lei, pode, inclusivo, recusar o cumprimento de ordens consideradas ilegais. Em democracia, a corporação deve obediência à Constituição da República e a demais leis, na qualidade de polícia republicana. Esta guerra está longe de ser ganha.
A percepção sobre a democracia, dentro da polícia, é diferente. Cada comandante, quer seja distrital ou provincial, quer o geral, interpreta à sua maneira. Há províncias onde a polícia sabe qual é o seu lugar, o que deve fazer e o que não deve fazer perante uma manifestação.
Nas cidades da Beira e Quelimane, Albano Carige e Manuel de Araujo, edis, lideraram manifestações pela justiça eleitoral e não houve problemas.
Mas, também, há zonas do país, como Maputo, Nampula, Nacala e outras onde o comportamento da polícia é simplesmente desastroso. Confunde os papéis. Atropela as regras básicas de democracia e, acima de tudo, viola, grosseiramente, os direitos humanos.
Algumas das chefias policiais, a vários níveis, agem como se de comissários políticos se tratassem. As suas ordens causam confusão. Para eles, é prestar melhor serviço à Frelimo ao impedir que a sociedade civil ou os partidos políticos na oposição se manifestem, ainda que seja algo pacífico.
Com esta sua atitude, transmitem à sociedade e ao mundo em geral que quem tem o direito de fazer manifestação é o partido Frelimo. Outros, não. Fica, aqui, a impressão de que é proibido, em Moçambique, um cidadão marchar e erguer cartazes ou dísticos a exigir que os seus direitos sejam respeitados. Se o fizer, a polícia vai cair-lhe em cima.
A Frelimo é tida como exemplar na organização de manifestações. Ela própria o diz. Mas está claro que em nenhum momento pode promover uma sublevação contra ela própria. Não há como partir para o vandalismo porque estaria a disparar contra o seu próprio pé, sendo que é ela que está a governar o país desde 1975.
Ao que parece, para a polícia, manifestação não é sair à rua e exigir a melhoria das condições de vida do moçambicano, nem tão pouco é para exprimir a sua insatisfação pela má governação, incumprimento de promessas eleitorais, custo de vida e melhores condições de trabalho. Não, isso é proibido. Uma manifestação dessas pode custar a vida ao cidadão ou submeter a maus tratos por parte de alguns agentes da UIR.
No entendimento de alguns comandos policiais, manifestação significa uma marcha de saudação ao Chefe de Estado, ao presidente da Frelimo ou ao governo. Uma marcha para exaltar os seus feitos, elogiar a boa governação e, até, bajular. Aliás, um deputado da AR pela Frelimo chegou a dizer, naquela casa, que Daniel Chapo era peça única e que não existe um igual no país.
Uma manifestação dessas pode ser feita a qualquer momento e não é preciso avisar a ninguém, nem à polícia, muito menos às autoridades municipais, da sua realização. Essa é permitida e os organizadores são acarinhados. Infelizmente é assim neste país. Não se levanta, sequer, a questão da ilegalidade da marcha. É autorizada automaticamente.
Há dias, a polícia descarregou sobre membros e simpatizantes do MDM, em Gorongosa, que resolveram organizar uma manifestação por ocasião do aniversário da vila. Houve disparos de balas verdadeiras e de gás lacrimogéneo, à torta e à direita.
Acima de 50 pessoas ficaram feridas e a festa, estragada. O argumento da polícia para tanta violência foi a de que o MDM não comunicou a marcha às autoridades. Será que essa justificação é suficiente para tanta brutalidade?
É verdade que os 35 anos de exercício democrático são poucos para falarmos da maturidade do país nesta matéria. A nossa democracia ainda é jovem, não estamos em altura de poder ombrear com países como Estados Unidos de América, com mais de 200 anos da independência. Mas há coisas que devíamos ter já ultrapassado.
Não se justifica, por exemplo, que haja dúvidas ainda de que a manifestação é um dos direitos fundamentais do cidadão. Isso é básico em qualquer democracia. Não faz sentido que estejamos, até hoje, a debatermo-nos com a questão da intolerância política. Também é básico, como o é a liberdade de imprensa e de expressão, a convivência na diferença e o respeito à opinião do outro. Temos que sair da caixa e darmos passos firmes e mostrarmos que estramos a crescer e a sermos verdadeiramente democráticos.

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