Uma revisão constitucional disputada. Antecedentes históricos e possíveis saídas

OPINIÃO

Luca Bussotti

Há uma série de afirmações incorrectas, assim como de boas razões, que as oposições estão alegando para votar contra a revisão pontual da Constituição de Moçambique. Em discussão está o art. 311, ponto 3 da actual Magna Carta do país, inerente às eleições distritais. As boas razões prendem-se com o facto de reclamar que a previsão de eleições distritais tinha sido fruto de um complicado acordo político entre o Governo e Renamo, no interior do acordo definitivo de paz entre as duas partes, e que ela não será respeitada. E que eventuais alterações constitucionais deviam ser feitas conjuntamente entre (no mínimo) as duas principais forças políticas de Moçambique que assinaram o último acordo de paz. Quanto previsto pelo art. 311 não se vai verificar, e ainda por cima a (necessária) alteração pontual da Constituição está sendo feita pela Frelimo de forma exclusiva. Até aqui nulla quaestio, com relação ao posicionamento da Renamo.

Este partido, porém, ao sustentar o seu posicionamento em mérito à dita questão, usou argumentações nem sempre correctas e verdadeiras. A primeira é de que não seria possível, ou melhor, oportuno, fazer alterações constitucionais por parte de um só partido. Uma circunstância, esta, exacta em termos de oportunidade política, mas desprovida de fundamentação não só jurídica (se a Frelimo tiver a maioria qualificada para aprovar uma nova Constituição, a lei permite fazê-lo), como também histórica. A segunda, consequentemente, è de que as duas mais importantes Constituições do país foram aprovadas por parte de um parlamento a partido único, a de 1975, que fundava o novo estado independente, e a de 1990, que introduzia o pluralismo político, e que por acaso não foi objecto de discussão nas negociações de Roma que levaram ao Acordo Geral de Paz de 1992. Não seria, portanto, novidade nenhuma se desta vez também a Frelimo aprovasse unilateralmente uma emenda constitucional relativa às eleições distritais.

Entretanto, existe uma terceira, e mais importante circunstância que mete as oposições, pelo menos as com assentos parlamentares, numa situação de partidos bastante desprovidos do capital político necessário para enfrentar uma armada bem experimentada como a da Frelimo. Em primeiro lugar, quando foi aprovada a reforma pontual da Constituição que introduzia as eleições distritais, houve um erro de origem, provavelmente motivado pela escassa confiança que havia naquela altura entre Frelimo e Renamo: este erro prende-se com o facto de ter introduzido, no texto constitucional, a data das primeiras eleições distritais. É evidente que o risco, do lado da Renamo, foi de que a Frelimo pudesse adiar sine die este compromisso eleitoral, portanto a saída encontrada foi aquela que toda a gente conhece. Feito isto, a Renamo devia fiscalizar quanto o governo estava a fazer (ou a não fazer) para garantir que tais eleições ocorressem, como previsto, em 2024. Salvo erro, não se lembram iniciativas políticas significativas, por parte da Renamo, que visaram solicitar o executivo no sentido de preparar devidamente as eleições distritais, com o tempo e os recursos financeiros necessários para o efeito. Quando, um dia, a Frelimo, e nomeadamente, o Presidente da República, resolveram adiar estas eleições, alegando que “não havia condições”, a Renamo, assim como todos os outros sujeitos políticos da oposição, ficaram surpreendidos, e iniciaram a reclamar… Foram promovidas auscultações a nível central assim como em várias províncias, no sentido de saber se o “povo” estava favorável ou não às eleições distritais em 2024. Um exercício, este, que talvez fez sentido para  o crescimento cívico da população, mas completamente inútil em termos institucionais, uma vez que o poder de decisão está com a bancada parlamentar da Frelimo. Mas foi inútil também porque, salvo a forma plebiscitária com que esta consulta foi feita, nenhuma proposta alternativa parece ter surgido.

Em política é preciso saber ler tempos e circunstâncias. Os tempos, hoje, são os de um adiamento das eleições distritais, seja isto justo ou não. E as circunstâncias dizem respeito a novas oportunidades que poderão surgir com este adiamento. Consequentemente, quem estiver na oposição deveria ter o papel não apenas e não tanto de assumir um posicionamento legitimamente negativo diante desta proposta, mas sim de relançar uma ideia fazível e diferente de olhar pelas eleições distritais. Poderia existir uma vantagem, do lado das oposições, no gesto unilateral que a Frelimo está para fazer: remeter tudo em discussão, e procurar a forma melhor de realizar as primeiras eleições distritais. Por exemplo, procurando alinhar eleições distritais não com eleições presidenciais ou provinciais, mas sim com as municipais.

Todos os Moçambicanos acabam de ver quão importante seja um recenseamento bem feito; assim como ninguém se distraiu ao ver que, com vazios territoriais em ocasião das eleições autárquicas, o partido no poder sempre terá a possibilidade de manipular o registo eleitoral local, indo buscar pessoas que vivem fora dos territórios municipais para que estas façam o registo onde, pelo contrário, o voto está previsto. O alinhamento das eleições municipais e das distritais poderia decretar o fim destas práticas fraudulentas, realizando, embora de forma um pouco diferente, a ideia que estava na base da primeira lei sobre a descentralização (depois abortada), que previa uma municipalização larga e até total do território moçambicano.

Seria importante, além de manifestar indignação e protestar contra compromissos não mantidos ou alterações unilaterais da Constituição, que as oposições propusessem ideias alternativas e concretas, de forma a desafiar a Frelimo no terreno da qualidade da proposta política, uma vez que a sua luta a nível da Assembleia da República, por enquanto, sempre vai resultar num estrondoso fracasso.

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