Share this
- Especialistas alertam para o agravamento de problemas de saúde mental
- Bebidas caseiras e destiladas agravam riscos de cirrose entre jovens
O crescente consumo de álcool e drogas em Moçambique tem agravado problemas de saúde mental entre jovens e adultos, desencadeando quadros de ansiedade, depressão e transtornos de humor, alertam especialistas. Segundo os profissionais da saúde, para além da escassez de equipamentos e recursos humanos, o País não dispõe de um sistema estruturado para desintoxicação, tratamento e reinserção social de dependentes químicos. Isso acontece numa altura em que o número de jovens diagnosticados com hepatite alcoólica tem aumentado de forma preocupante nos últimos anos, alertam especialistas de saúde. De acordo com Liana Mondlane, médica gastroenterologista do Hospital Central de Maputo (HCM), essa tendência está directamente ligada ao consumo crescente de bebidas alcoólicas, especialmente as de produção caseira e industrial sem controlo, que apresentam elevado teor de álcool e representam um grave risco para a saúde hepática.
Elísio Nuvunga
Segundo a OMS, a saúde mental é uma das áreas mais negligenciadas da saúde pública no mundo, apesar do número cada vez crescente de novas entradas hospitalares. Estima-se que quase um bilhão de pessoas vivam com transtorno mental e três milhões de pessoas morram todos os anos devido ao uso nocivo do álcool.
Em Moçambique, só em 2024, por exemplo, de acordo com o Gabinete Central de Prevenção e Combate à Droga (GCPCD), as unidades sanitárias atenderam um total de 23.409 pacientes devido ao consumo de drogas. Deste número, 11.355 casos ocorreram na cidade de Maputo, capital do país, representando 48,5% do total atendido. Em seguida, destacam-se as províncias de Manica, com 6.451 pacientes, e Sofala, com 2.606 casos registrados. Entre as substâncias mais consumidas estão o álcool e a cannabis sativa.
João Ernesto, de 21 anos, faz parte destas estatísticas. Ao Evidências, conta que começou a beber ainda na adolescência, influenciado pelo círculo social da escola. Com o tempo, o vício foi crescendo e ganhando outros: drogas.
“No começo, era só para me divertir, acompanhar os amigos nas festas e nos encontros depois das aulas”, conta, para depois acrescentar que, com o tempo, o hábito foi crescendo e passou a interferir directamente no seu desempenho escolar e afectar o seu subconsciente.
“Eu comecei a faltar às aulas, me desconectei dos estudos. Aos poucos, a minha vida foi ficando desorganizada. Os professores reclamavam, os meus pais ficaram preocupados, mas eu não queria ouvir ninguém”, admite João.
Hoje, após ver a sua vida afundada no fundo do poço, reconhece que o consumo precoce de álcool o afastou do sonho de concluir o ensino secundário e do seu sonho de se formar para que pudesse melhorar a sua vida e a da sua família.
“Se pudesse voltar atrás, teria dito não para aquelas primeiras doses. Sei que perdi muitas oportunidades por causa disso”, disse arrependido, acrescentando que quando foi dominado pelo vício, a família alegou estar possuído por “espíritos malignos, porque não era normal o que fazia”.
Quando se perde o amor próprio
Recuperado do vício, mas ainda com as sequelas que o tempo não conseguiu apagar, João busca agora ajuda para retomar os estudos e reconstruir a sua vida, mas lembra que sem o apoio adequado seria impossível sair desse ciclo.
“Se não fosse a minha mãe nem estaria a trabalhar hoje em dia. Eu já roubava, era desconfiado por todos na rua até na minha casa”, lembrou alertando que não aconselha ninguém a “entrar nesse caminho”.
Neste universo encontramos também a Ana. Uma jovem dos seus 28 anos que nos relatou a sua luta contra o alcoolismo. Conta que mergulhada no álcool perdeu o amor próprio e passou a dedicar-se ao vício.
“Comecei a beber para lidar com a solidão e a tristeza depois que perdi o meu pai. O álcool virou uma minha ´companhia´, mas trouxe mais problemas, como brigas em casa e dificuldades no trabalho. Hoje, tento me reerguer, mas não é fácil”, explica.
A mãe de Ana, Dona Margarida, confirma o impacto do vício na família, que quase se desestruturou por conta do vício precoce daquela que um dia foi a princesa dos seus olhos. Reunidos decidiram abrir os cordões à bolsa para salvar a vida de sua filha.
“Ver a minha filha assim foi muito doloroso. Ela mudou, começou a beber porque ouvia que o álcool faz esquecer os problemas. Mas, pelo contrário, ficou isolada e perdeu a confiança de todos”, contou, acrescentado que a “família investiu bastante dinheiro para sua desintoxicação no (hospital) “privado”.
Mandito, como é conhecido Armando João, não teve a mesma sorte. Diferente de Ana, aos 19 anos conta somente consigo em Maputo, onde nos raros momentos entre a lucidez e a embriaguez se dedica a lavar vidros de carros no semáforo do Matchedje, próximo à Assembleia da República.
“É assim mesmo ‘bozasse’ (boss). A vida não é fácil aqui em Maputo. Cheguei cá em 2016 para vender ovos cozidos, mas depois passei. Depois de anos sofrendo maus-tratos da pessoa que me trouxe, fugi junto com amigos e passámos a morar numa casa alugada na Mafalala. Foi lá onde começamos a consumir nhaúpe. Assim, no fim do dia tem que ver uma ideia para ter moral”, testemunhou o jovem, referindo que há dias que nem sequer consegue trabalhar.
A viver praticamente fora de regras e ao que tudo indica das estatísticas, visivelmente alterado, conta que nunca precisou de ir a um hospital, porque o álcool e a droga são um refúgio seguro.
Falta de centros de reabilitação e desintoxicação entre vários desafios
Apesar dos esforços das unidades sanitárias em atender os pacientes com perturbações mentais decorrentes do consumo de substâncias psicoactivas, persistem diversos desafios no tratamento e acompanhamento destes casos.
A psicóloga clínica do Centro do Saúde de Alto Maé, vulgo “Santa Filomena”, na capital do País, em Maputo, destaca as dificuldades enfrentadas tanto pelos profissionais de saúde quanto pelos pacientes, especialmente em relação à complexidade do diagnóstico, estigma social e a insuficiência de recursos especializados.
“Temos profissionais treinados para lidar com estas patologias todas, que nós sabemos que existem na saúde mental. Em relação às condições, algumas unidades sanitárias têm dificuldades de espaço (de internamento) para fazer este atendimento, mas que não seja um impasse para atender estas pessoas. Agora, falamos de um sector de reabilitação. Moçambique não tem um sector de reabilitação para dependentes químicos para fazer um tratamento completo”, afirmou, assegurando que apesar de tudo “existem alguns (centros de reabilitação) não-estatais” que ajudam na possível redução de danos e “desintoxicação”.
Segundo a especialista, a faixa etária mais afectada situa-se entre os 18 e 30 anos e inclui desempregados, estudantes e até jovens docentes. Entre os casos mais frequentes, estão a depressão, ansiedade, disfunção sexual e dependência de jogos de azar.
“Muitos homens jovens chegam à consulta por disfunção sexual e, ao investigar, percebemos que é resultado de hábitos nocivos, como consumo excessivo de pornografia e drogas”, relata, acrescentando que, em muitos casos, não é o próprio paciente que procura ajuda, mas familiares preocupados com mudanças de comportamento.
Jogos de azar: uma “droga” silenciosa que vai atraindo mais adeptos a cada dia
O problema, porém, vai além das drogas ilícitas. Segundo a activista social, jogos de azar e vícios digitais têm gerado dependência psicológica grave, levando jovens ao endividamento, à perda de empregos e à ruptura de laços familiares.
“Não só temos recebido pessoas com problemas de saúde mental devido aos problemas que levantámos. Em muitos casos também percebemos que as pessoas são viciadas em jogos de azar, o que agrava mais a situação. São muitos casos com frequência”, disse.
A dependência química e psicológica, classificada como doença mental, sem tratamento tende a gerar impactos sociais mais amplos, como crimes sexuais e violência doméstica.
“Enquanto o jovem não admitir que tem um problema, é difícil tratar. Muitos vêm por obrigação, e, nesse cenário, as chances de recuperação são reduzidas”, alerta a psicóloga.
O consumo abusivo de álcool, cannabis, tabaco e outras drogas está directamente associado a patologias físicas e mentais como ansiedade, depressão, transtorno bipolar, hepatite, cirrose hepática e diversos tipos de câncer. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o abuso de álcool provoca mais de três milhões de mortes anuais no mundo, enquanto o uso de drogas afecta cerca de 35 milhões de pessoas, das quais apenas uma em cada sete recebe tratamento.
Embora existam iniciativas pontuais de redução de danos promovidas por organizações não-governamentais, Moçambique carece de um centro público de referência para tratamento completo. Essa lacuna empurra os dependentes para clínicas privadas de alto custo ou, na maioria dos casos, deixa-os sem qualquer acompanhamento especializado.
Celma reforça que a ausência de espaços adequados e de profissionais especializados limita a capacidade de resposta do sistema nacional de saúde.
A situação é agravada pelo estigma social que envolve as doenças mentais e a dependência química, levando muitos a ocultar o problema até que ele se torne insustentável.
“Em África, a maioria só procura um psicólogo quando a situação já está grave”, lamenta Celma, frisando que muito deles só procuram pelos serviços de saúde ou tratamento por iniciativa de terceiros (país, encarregados, parceiros).
Para além da saúde mental: Bebidas caseiras e destiladas assolam a juventude
O número de jovens diagnosticados com hepatite alcoólica tem aumentado de forma preocupante nos últimos anos, alertam especialistas de saúde. De acordo com Liana Mondlane, médica gastroenterologista do Hospital Central de Maputo (HCM), essa tendência está directamente ligada ao consumo crescente de bebidas alcoólicas, especialmente as de produção caseira e industrial sem controlo, que apresentam elevado teor de álcool e representam um grave risco para a saúde hepática.
Mondlane explica que o fígado — segundo maior órgão do corpo humano — desempenha funções vitais, como a eliminação de substâncias tóxicas e a produção de bile. No entanto, o seu funcionamento vem sendo comprometido em muitos jovens devido ao uso abusivo de álcool, o que pode levar a doenças graves como cirrose e insuficiência hepática.
“Estamos a observar um aumento no consumo de bebidas destiladas, muitas delas caseiras e com teor alcoólico acima do habitual. Isso pode provocar inflamação aguda do fígado e danos irreversíveis, culminando em falência hepática, que pode ser fatal”, alerta a especialista.
Em Moçambique, esse fenómeno ocorre num contexto em que também se regista um aumento do consumo de drogas em áreas urbanas, inclusive entre adolescentes. Embora, no passado, o país tenha figurado entre os membros da CPLP com menor taxa de consumo de álcool, os especialistas alertam que o cenário actual caminha na direção oposta.
Dados do Serviço de Gastroenterologia do HCM indicam que 20% das doenças hepáticas tratadas na instituição estão associadas ao consumo de álcool. “Se um jovem começa a beber aos 15 anos, por volta dos 25 já pode desenvolver cirrose”, adverte Mondlane.
Um estudo do Instituto Nacional de Saúde (INS), baseado em dados do Inquérito sobre a Violência contra a Criança (InVIC 2019), revela que 29,7% dos jovens entre 13 e 24 anos consomem álcool e 22,5% fazem uso de drogas. O levantamento indica ainda que o consumo é mais elevado entre os jovens de 18 a 24 anos e que homens solteiros são os mais propensos ao uso de substâncias.
Apesar dos riscos, Mondlane lembra que a hepatite alcoólica pode ser tratada, especialmente nas fases iniciais: “A base do tratamento é a abstinência total. Se iniciado a tempo, o fígado pode recuperar. Mas, quando o paciente já apresenta sinais como barriga inchada ou olhos amarelados, provavelmente está em estágio de cirrose — e, nesse ponto, há pouco a fazer”.

Facebook Comments