Lixeira de Hulene continua a ameaçar vidas e o ambiente

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  • Enquanto promessas de encerramento permanecem por cumprir
  • Estudo ambiental identificou presença de elementos químicos nocivos à saúde
  • Conselho Municipal diz que lixeira vai continuar a receber resíduos e a tratá-los até 2028
  • MAAP não possui plano de gestão ambiental e reconhece que a lixeira viola as leis ambientais

João, de quatro anos, e Belinha, de seis anos (nomes fictícios), transformam restos em brinquedos no meio da imensidão da Lixeira de Hulene. Entre montes de lixo e o cheiro intenso que paira no ar, os irmãos correm descalços num espaço improvisado, sob o olhar atento da mãe e avó, que dividem a atenção entre o cuidado com os petizes e a procura incessante por qualquer objecto reciclável que possa garantir o sustento do dia. É o retrato cru de vidas que crescem à margem, onde a infância convive com a sobrevivência, e o brincar se mistura com a luta diária pela dignidade. São duas vidas cujo destino lhes reservou um berço feito de resíduos sólidos. A mãe e avó ganham a vida como catadores de lixo na maior lixeira a céu aberto do País. Ali, casas, plantas e água que ali escorrem, já perderam a cor e outras propriedades originais, enquanto a saúde dos moradores, condenada pela exposição diária à poluição, se deteriora em silêncio, em meio a promessas de encerramento da maior lixeira a céu aberto do País, promessas essas que nunca saem do papel.

Edmilson Mate

Mais de mil toneladas de resíduos sólidos são depositados diariamente na Lixeira de Hulene, junto à Avenida Julius Nyerere, uma das principais vias da cidade de Maputo. Em 2018, um deslizamento de resíduos ceifou a vida de pelo menos 17 pessoas. Hoje, entre o cheiro intenso e a fumaça constante, crianças, adultos e mulheres grávidas vivem condenados à exposição diária e a agentes poluentes que ameaçam a saúde e o meio ambiente.

João, de quatro anos, e Belinha, de seis anos (nomes fictícios)

O País não dispõe de infectologistas disponíveis para estudar os impactos da constante exposição a agentes poluentes e contaminantes diversos. Muitos dos que ali trabalham e dos que vivem nas redondezas queixam-se de diagnósticos recorrentes de cólera, malária e tuberculose, incluindo doenças cancerígenas que matam no silêncio.

Se as vidas já estão sentenciadas a uma morte lenta, o ambiente também já pede socorro. Os níveis de pouição e contaminação são altos e às promessas do Conselho Municipal de Maputo (CMM) e das autoridades governamentais centrais somam-se promessas de encerramento que nunca se concretizam. O problema é tão grave que não existe sequer um Plano de Gestão Ambiental (PGA) para Hulene.

Apesar do drama humano e ambiental, o CMM garante que o espaço continuará a receber resíduos até à conclusão do aterro sanitário da Katembe — obras que, segundo constatou o Evidências, ainda nem sequer tiveram início.

Um estudo ambiental revelou a presença, nos arredores da lixeira de Hulene, na cidade de Maputo, de elementos químicos nocivos como chumbo, cobre, manganês e cobalto, entre outros prejudiciais à saúde humana. Trata-se do estudo “Modulação dos impactos ambientais e de saúde nos arredores da Lixeira de Hulene”, desenvolvida pelo investigador Bernardino José Bernardo, da Universidade Pedagógica de Maputo (UP-Maputo), no âmbito da sua tese de doutoramento.

A nossa equipa constatou no terreno que parte da lixeira não possui vedação lateral, expondo moradores e transeuntes. Na frente, o muro de contenção está destruído, e o lixo avança para a Avenida Julius Nyerere. Mas a violência mais brutal não é visível ao trânsito: ela atinge silenciosamente os corpos e os sonhos de quem sobrevive do lixo.

“Sinto dores no pulmão direito e tenho tosse que nunca passa’’

Constância Eugénio, 50 anos de idade, mãe de cinco filhos, trabalha como catadora de resíduos sólidos há 28 anos. A sua vida é um retrato da luta diária de milhares de pessoas do bairro de Hulene, que foram condenadas a respirar ar impróprio.

“Sinto dores no pulmão direito, tenho uma tosse que nunca passa. Já fui ao hospital muitas vezes, deram-me medicamentos, mas continuo doente”, contou, ofegante, com o olhar cansado de quem carrega não apenas sacos de resíduos, mas também a incerteza do amanhã.

Constância recorda que, quando começou, a lixeira era apenas um amontoado modesto e nunca imaginou que fosse se transformar numa montanha.

“Trabalhava com o meu marido, mas ele acabou por perder a vida. Hoje já não tenho forças, compro de outros catadores, mas continuo doente”, desabafou.

Apesar da degradação da sua saúde, Constância não abandona o lixo. Não porque não saiba dos riscos, mas porque não há alternativas. Em lágrimas, contou que, no ano passado, perdeu a casa devido às enchentes provocadas por um lago próximo à lixeira.

“Agora vivo de renda e tenho filhos para sustentar. Se tivesse apoio do governo para abrir uma pequena banquinha, poderia deixar este trabalho. Mas sem ajuda, não consigo”, confessou.

“Não tenho com quem os deixar”

Enquanto Constância luta pela própria saúde, Violeta Novele, de 64 anos, luta também pelo futuro dos netos. Há mais de três décadas que sobrevive da lixeira, e agora, já com idade avançada, continua a recolher resíduos recicláveis.

Encontrámo-la acompanhada de duas crianças, de apenas quatro e seis anos, respectivamente, que a ajudavam a separar plásticos para vender a quatro meticais o quilo. Questionada sobre o perigo de expor os netos ao lixo, respondeu que não tem com quem os deixar.

“Não tenho com quem os deixar. Eu ganho a vida aqui. Se o governo quiser fechar a lixeira, não sou contra, mas precisava de nos apoiar. Se a levarem para longe, vai ser difícil para mim, porque não sei fazer outro trabalho”, lamentou, alerta a uma promessa que ecoa a mais de 20 anos e que a cada ano é renovada.

“As crianças, às vezes, apanham tosse, malária ou cólera”

Jeremias Augusto Simbine, de 34 anos

Jeremias Augusto Simbine, 34 anos, um dos moradores do bairro de Hulene, que encontra no lixo a sua fonte de sobrevivência, mas também encontra a doença, vive a menos de 30 metros da lixeira de Hulene  num dos lados sem barreiras de contenção. O tempo deixou marcas visíveis, olhos cansados, corpo visivelmente cansado, sinais de uma vida exposta diariamente à poluição.

Catador de lixo desde os 19 anos, foi ali que o encontrámos ao lado da esposa, Cândida André. O casal, com três filhos menores, sobrevive do que consegue recolher no lixo.

“Vivo aqui de renda, pago 1.500 meticais por mês. O trabalho é muito difícil. Acordo de madrugada até ao fim do dia, a revirar lixo, a respirar cheiro e fumaça, mas não tenho outra saída. As crianças às vezes apanham tosse, malária ou cólera e as vezes demora passar. É tudo por causa de viver perto da lixeira. Nós sabemos disso, mas para onde vamos?  Não temos casa noutro lugar. Só temos isto. Só ouvimos dizer que querem fechar a lixeira. Mas quando fecharem, o que vai ser de nós, Dependemos disto. Aqui é onde tiro o pão de cada dia. Os meus filhos cresceram e nasceram a partir desta lixeira. É daqui que vem a nossa sobrevivência”, diz preocupado com o futuro.

A memória do deslizamento de 2018 ainda pesa na sua memória, mas conta que não tem outra opção porque se não arriscar a sua saúde no lixo para sobreviver, a fome pode o levar mais cedo.

“Perdi grandes amigos nesse dia. Pessoas que trabalhavam comigo, que estavam ao meu lado. Foi muito doloroso. Mas mesmo assim continuo aqui, porque não tenho para onde ir. Todos os anos, acontecem acidentes aqui. Aqui é sempre assim: morre gente, mas no dia seguinte temos de voltar, porque dali vem o nosso sustento. Já me acostumei ao cheiro, já me acostumei ao perigo. É triste dizer isso, mas é a verdade”, concluiu Jeremias, com a voz embargada.

“A Lixeira de Hulene vai continuar a receber resíduos sólidos até 2028”

O retrato de vidas consumidas pela incerteza cela um destino silencioso de quem tenta sobreviver a fome, mas vê sua vida se deteriorar silenciosamente, sem sequer saber do que padece. Sem infectologistas disponíveis para estudar e compreender os impactos dos agentes químicos presentes no ambiente, em consequência da lixeira, os moradores de Hulene e catadores como Constâncio morrem um pouco a cada dia, sem saber sequer o que os apoquenta.

Em resposta a carta de pedido de informação do Evidências, o Conselho Municpal de Maputo, que vem prometendo o encerramento daquele espaço há mais de uma década, afirma que a lixeira vai continuar a operar até o início da construção do novo aterro sanitário da Katembe, em 2028.

“A lixeira irá continuar a receber resíduos e a trata-los ate o inicio da operação do aterro Sanitário da Katembe, A previsão da construção do aterro é até inícios de 2028, depois do início, a lixeira de Hulene não vai mais tratar e depositar resíduos, só irá servir de centro de transferência, onde os camiões de recolha, transferem os resíduos para viaturas maiores que por sua vez irão transportar para o aterroa”, disse a autarquia.

Questionado sobre os sucessivos adiamentos do prazo de encerramento, o Município disse que a lixeira não foi encerrada ainda porque não dispõe de outro espaço que possa servir de aterro sanitário.

“Não foi encerrada porque a cidade de Maputo não dispunha de outro local para a deposição de resíduos, e não sendo simplesmente uma questão de transferência do problema identificando um novo “buraco” desde então tem se trabalhado no sentido de se identificar um local que responda as questões básicas de instalação de um aterro, ate porque nesta procura se fez um estudo de impacto ambiental de um areeiro na distrito de Marracuene, que durante o a Avaliação de Impacto Ambiental (AIA) foi chumbado por questões sociais”, assegura.

MAAP reconhece que a permanência da lixeira viola as normas ambientais

Francisco Sambo – Director Nacional de ambiente e mudanças Climáticas

O Ministério da Agricultura, Ambiente e Pescas, através da Direcção Nacional de Ambiente e Mudanças Climáticas, reconhece que a permanência da lixeira de Hulene numa zona densamente habitada constitui uma violação às normas ambientais.

Em entrevista, o director da instituição, Francisco Sambo, admitiu que “a permanência da lixeira viola a legislação ambiental”, apontando os impactos mais visíveis: poluição do ar, das águas subterrâneas e do solo.

“Estamos a criar um impacto, um dano naquela zona”, referiu, para depois quando questionado sobre quem deve ser responsabilizado pela violação da legislação ambiental resultante da permanência da lixeira de Hulene, afirmar sem pestanejar que é o Conselho Municipal de Maputo.

“Devemos ser responsabilizados todos nós. Todos temos alguma responsabilidade. Eu não diria que é apenas o Município, porque o Município somos todos nós. Agora, é verdade que a responsabilidade final de gestão dos resíduos sólidos e do próprio Município”, disse.

Segundo Sambo, o futuro da gestão de resíduos em Maputo passa pela construção de dois novos aterros, sendo o mais avançado o de Matlemele, na Matola.

“É um projecto antigo, mas que finalmente tem pernas para andar. A área inicial de cerca de 100 hectares foi invadida pela população, restando apenas 55. Essa ocupação atrasou o processo, porque foi preciso criar condições de indemnização e reassentamento. Agora, já temos condições para avançar e até previsão para o lançamento da primeira pedra”, revelou.

O director fez questão de sublinhar que o aterro de Matlemela não deve ser confundido com uma simples lixeira: “O termo técnico é aterro sanitário, um centro de tratamento de resíduos. Serão respeitados todos os parâmetros ambientais para evitar contaminação, ao contrário do que acontece hoje no Hulene.”

Ambientalista vê potencial energético na lixeira de Hulene

Marisa Mate – Ambientalista

A ambientalista Marisa Mate defende que a lixeira de Hulene em vez de problema, com a tecnologia adequada, poderia gerar gás, transformando resíduos em recurso útil.

“Em países com aterros modernos, os resíduos não são simplesmente descartados, eles são processados e muitos líquidos e gases liberados durante a decomposição são aproveitados para gerar energia. Com tecnologia apropriada, é possível transformar a lixeira de Hulene, num energético. Não se trata de deixar o ambiente abandonado, pelo contrário, pode-se tirar um grande proveito do que hoje é apenas poluição”, sublinha

Mathe acrescenta que a experiência internacional mostra que aterros podem se tornar fontes de energia limpa e sustentável, reduzindo impactos ambientais e trazendo benefícios económicos.

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