Proposta de Lei da Comunicação Social levanta alarmes entre a classe jornalística

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  • Entre armadilhas e ratoeiras
  • Para Chiure, o artigo 48 é um erro inaceitável
  • A ARCOS é problemática por definição, diz Mabunda

 Moçambique discute uma nova Lei da Comunicação Social que visa substituir a Lei de Imprensa de 1991 por um novo diploma que, sob o pretexto de modernizar a comunicação social, carrega no interior cláusulas vistas como verdadeiras ameaças à liberdade de expressão. A proposta, actualmente em auscultação pública, introduz restrições no acesso à informação, dá poderes quase ilimitados a uma Autoridade Reguladora e, segundo críticos, transforma o Presidente da República numa figura acima da lei. Pontos como a restrição na obtenção de informações por “meios ilícitos ou desleais” e a criação de uma Autoridade Reguladora com poderes sancionatórios são vistos como “armadilhas legais” que podem comprometer o trabalho da imprensa e a transparência. Para jornalistas e especialistas, trata-se de um “cavalo de Tróia legal” que, em vez de fortalecer a democracia, pode inaugurar uma era de censura institucionalizada, ameaçando o futuro do jornalismo independente no País.

Luísa Muhambe

A urgência desta discussão não se deve a meras especulações, mas a pontos concretos e inequívocos que os jornalistas e especialistas já identificaram. A restrição na obtenção de informações por meios considerados “ilícitos ou desleais” e a criação de uma Autoridade Reguladora com poderes sancionatórios são apenas a ponta do aicebergue.

Estes e outros artigos, intrinsecamente problemáticos, configuram para alguns um cenário de “armadilhas legais” meticulosamente elaboradas para comprometer o trabalho de investigação e a capacidade de a imprensa fiscalizar o poder.

A proposta de lei, agora em discussão, não é totalmente desprovida de pontos positivos. Segundo o director executivo do Misa-Moçambique, Ernesto Nhanale, a nova versão representa, em certos aspectos, um avanço em relação às propostas anteriores de 2020 e 2021.

Nhanale destaca que as atribuições da futura Autoridade Reguladora já se encontram regulamentadas por uma lei própria, o que, em tese, confere-lhe maior autonomia face a um regulamento governamental.

O governo retirou-se da gestão da carteira profissional e a participação de capital estrangeiro em empresas de média foi aumentada de 20 para 30 por cento.

“É preciso mostrar que há avanços, mas também é preciso discutir os pontos críticos,” defende Nhanale.

Contudo, o que se segue na análise destas disposições deixa pouco espaço para optimismo, expondo a fragilidade de tais “avanços” perante um conjunto de ameaças muito mais graves.

“Morte” do jornalismo investigativo?

Apesar dos aparentes progressos, o texto legal levanta preocupações significativas. Entre os pontos mais sensíveis e perigosos, está a criação da Autoridade Reguladora da Comunicação Social (ARCOS). Se, por um lado, Nhanale vê um avanço na sua regulamentação por lei, a maioria dos especialistas e jornalistas receiam, por outro lado, que esta entidade, revestida de amplos poderes de supervisão, fiscalização e sanção, se torne um instrumento de controlo político, disfarçado sob o manto de uma falsa autonomia.

O facto de a sua criação e funcionamento serem definidos pelo próprio Governo, Assembleia da República, gera uma suspeita incontornável de que a sua independência será, na melhor das hipóteses, meramente teórica.

Lázaro Mabunda, jornalista investigativo e docente universitário, é categórico na sua suspeita. Para ele, a mera iniciativa governamental na criação de um órgão que deveria ser auto-gerido pela classe jornalística já é, em si mesma, uma bandeira vermelha que não pode ser ignorada.

“Sendo o governo a ter a iniciativa de criação desse órgão, é problemático. Os políticos são suspeitos, os políticos têm interesse em controlar a comunicação social”, denuncia Mabunda.

A proposta de lei impõe uma série de restrições ao trabalho dos jornalistas, em especial, no que tange à obtenção de informação. O texto proíbe a aquisição de dados por “meios ilícitos ou desleais”, definindo o termo de forma ampla, incluindo “escutas não autorizadas” e “desvio de documentos”.

Esta definição, que parece razoável à primeira vista, pode ser, na verdade, uma armadilha legal concebida para inibir o jornalismo de investigação. Ao criminalizar a obtenção de documentos confidenciais ou a gravação de conversas para expor a corrupção e o abuso de poder, a lei impede o trabalho de escrutínio que é vital para a saúde de qualquer democracia. A interpretação desta cláusula, segundo Nhanale, é perigosamente vaga e arbitrária.

“A ideia de que os jornalistas são guardiões do segredo de Estado e de justiça é problemática, pois permite interpretações subjectivas que colidem com os princípios do jornalismo”, sublinha.

Mabunda, apesar de concordar que a lei deve coibir práticas anti-éticas, como a chantagem, teme que essa redacção abra espaço para calar reportagens que exponham a corrupção. Para ele, a lei deveria incentivar o jornalismo investigativo, e não o contrário.

A percepção generalizada é a de que o jornalismo moçambicano tem sido historicamente frágil na sua capacidade de investigar a fundo. A lei, em vez de corrigir esta deficiência, parece, segundo ele, projectada para aprofundá-la e cimentar o status quo.

“Eu penso que a lei devia ter estimulado mais essa investigação, porque, em discursos, a queixa é que nós investigamos pouco”, sublinha.

A prova da verdade e o “escudo” do Presidente

O ponto mais polémico, o qual já está a gerar um intenso e justificado debate, é o Artigo 48. Este artigo, que aborda a difamação, contém uma cláusula que proíbe a prova da verdade quando o ofendido é o Presidente da República. Esta excepção não é apenas uma anomalia legal; é um assalto directo à liberdade de imprensa e ao princípio de que todos são iguais perante a lei.

Ao remover a principal defesa de um jornalista em casos de difamação, a lei não apenas restringe a sua capacidade de se defender, mas também cria uma zona de impunidade para a mais alta figura do Estado.

Alexandre Chiure não poupa críticas a este ponto. A sua indignação reside no facto de que o jornalista, mesmo que tenha provas irrefutáveis de uma acção corrupta ou de um desvio de conduta por parte do Presidente, não poderá apresentá-las em tribunal para se defender.

“O legislador falhou, porque se um jornalista tem provas, ele tem de se defender. Isso não está correcto”, critica Chiure, defendendo que a ausência de defesa cria um claro “efeito de intimidação” nos profissionais da média, levando-os à auto-censura para evitar sanções. A lei, ao proibir a prova de veracidade, remove o incentivo para a investigação séria, garantindo que qualquer reportagem que possa ser interpretada como crítica ao Presidente seja, por definição, indefensável em tribunal.

Chiure acredita que este artigo “vai colocar o jornalista em uma posição em que vai ter medo de escrever ou de criticar a figura do Presidente, com o risco de ser processado e não poder apresentar provas materiais sobre essa mesma matéria.” Esta restrição é um ataque directo ao direito do público de ser informado sobre as acções de quem está no poder, e, ao fazê-lo, subverte o próprio propósito da imprensa numa democracia.

“O artigo faz do Presidente um Deus”

A mesma preocupação é partilhada pelo jornalista investigativo Lázaro Mabunda. Para ele, o artigo faz do Presidente “um Deus” e, de forma inconstitucional, coloca-o acima de todos os outros cidadãos. Mabunda é claro na sua argumentação, expondo a flagrante contradição com o espírito da Constituição moçambicana.

“A Constituição estabelece que todos os cidadãos são iguais perante a lei. E, se este artigo coloca um presidente diferente de todos os outros cidadãos, o jornalista pode apresentar a verdade dos factos, ou seja, pode comprovar que, de facto, o que escreveu é verdade. E o cidadão pode, dependendo, processar o jornalista, exigindo que ele apresente as provas. E o jornalista pode apresentar as provas no tribunal. O chefe do Estado já não pode ser”, denuncia.

Esta distinção legal, que concede imunidade de prova apenas ao chefe de Estado, é vista por Chiure como uma tentativa de isolar a figura do chefe de Estado, protegendo-a e colocando-a como sendo uma figura que não erra, que não comete falhas. A mensagem, para ele, é clara e inequivocamente ameaçadora: “Podem criticar todos, menos os chefes de Estado.”

A lei, ao criar esta excepção, não apenas enfraquece a capacidade dos jornalistas de se defenderem, mas também mina, segundo Chiure, o papel fundamental da imprensa na fiscalização dos poderosos. A exclusão da prova da verdade para o Presidente da República contradiz o espírito da própria lei e pode ser utilizada para calar vozes críticas e limitar o acesso do público a informações de interesse vital.

Capital estrangeiro e a propriedade estatal

A proposta de lei também aborda a propriedade dos órgãos de comunicação social, limitando a participação de capital estrangeiro a 30% e exigindo que os directores sejam de nacionalidade moçambicana. O jornalista Alexandre Chiure defende esta medida, vendo-a como uma forma de empoderar os profissionais moçambicanos e de salvaguardar os interesses nacionais, evitando que a comunicação social seja dominada por forças externas que possam não ter o melhor interesse do país em mente.

“Isso vai dar a oportunidade de nós, jornalistas moçambicanos, dirigirmos os órgãos de informação. Temos que ser nós os patrões”, defendeu.

No entanto, Mabunda discorda da restrição. Para ele, a limitação de capital estrangeiro para os 30% é economicamente contraproducente, podendo limitar o investimento na média, especialmente num país onde os moçambicanos não têm o mesmo poder financeiro. Mabunda questiona a lógica por trás da restrição, destacando que em outros sectores da economia, a presença de capital estrangeiro é massiva e, em muitos casos, crucial para o desenvolvimento.

Outro ponto de preocupação é a possibilidade de o Estado adquirir participação em empresas privadas de comunicação social. Alexandre Chiure e Lázaro Mabunda vêem esta cláusula como uma tentativa de oficializar uma prática que já existe informalmente: a compra de meios de comunicação por figuras ligadas ao poder para os silenciar.

“Quando o estado aplica isso, se transforma num sócio que já não pode ser criticado,” defendeu Chiure.

O jornalismo independente é um pilar da democracia. A liberdade de imprensa não é um privilégio dos jornalistas, mas um direito do público de ser informado. A Proposta de Lei da Comunicação Social, ao colocar tantos obstáculos ao trabalho da imprensa, ameaça este direito fundamental. A auscultação pública é uma oportunidade para a sociedade moçambicana se unir e exigir uma lei que proteja, em vez de restringir a liberdade de imprensa. O futuro da democracia no país depende disso.

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