Share this
John Kanumbo
“A política é demasiado séria para ser deixada apenas aos políticos.” — Charles de Gaulle
Ser revolucionário em Moçambique nunca foi, e nunca será sinónimo de carregar camisolas partidárias. A verdadeira revolução é ter água potável, energia que não falhe, hospitais com medicamentos, escolas com professores pagos e jovens com empregos. Ser revolucionário não é vestir camisolas partidárias, nem muito menos alinhar-se atrás de slogans repetidos. Ser revolucionário, em Moçambique, seria garantir água potável em Muidumbe, garantir escolas em Nangade, garantir que em Palma as crianças tenham pão e não cadáveres para enterrar. Ser revolucionário seria não permitir que Cabo Delgado sangrasse ao ponto de a terra cheirar mais à pólvora e sangue do que à mandioca e mar. A revolução é pão, dignidade e futuro. Mas aqui, na terra onde a política é muitas vezes comédia de mau gosto, ser “revolucionário” virou título clubista, selo partidário, passaporte de sobrevivência.
A política é a arte de enganar os homens sem que eles percebam que foram enganados. – dizia Voltaire, com ironia. E em Moçambique, este axioma parece ter sido tomado como método de governo. Na recente intervenção de Daniel Chapo nas Nações Unidas, vimos o retrato desse vazio. a baleia e o elefante coexistindo em harmonia na reserva de Maputo. É esta a nova diplomacia moçambicana: metáforas de circo, que arrancam risos lá fora enquanto aqui dentro o povo chora de fome, de guerra e de abandono. Pergunto: é possível uma baleia e um elefante coabitarem o mesmo espaço? Se formos literais, admitamos: sim, é possível. Num parque natural ou numa reserva cuidadosamente organizada, um observador sentado pode, de facto, avistar ambos os habitats adjacentes. A baleia em seu tanque ou mar, o elefante na savana, a girafa espreitando de longe, o crocodilo a espreitar nas margens do rio. Tudo perfeitamente visível, tecnicamente coexistindo. O sujeito pode estar ali, tranquilo, captando os dois mundos com os próprios olhos. Uma mimese da natureza, como diriam os antigos filósofos: a representação do real ao alcance da visão humana.
Mas a vida real não é uma reserva. E se fosse, a quem aproveitaria essa metáfora? Ninguém. Absolutamente ninguém. Que impacto real tem esse discurso na alma de uma nação? A mimesis aqui se converte em farsa política. A observação do zoológico não alimenta o camponês de Chókwe, nem protege a viúva de Mocímboa da Praia. A baleia não produz arroz, o elefante não traz remédios. O espectáculo, embora possível de ser visto, não altera a escassez, a guerra ou a fome. É um teatro para olhos de diplomatas, turistas e jornalistas, uma performance que oculta a ausência de acção concreta. O problema não é a impossibilidade física da metáfora; é a sua irrelevância existencial. A política, quando transformada em zoológico, substitui o compromisso com a vida real por encenação. O sujeito pode até sentar e contemplar a baleia e o elefante lado a lado, mas fora do palco, no país que governa, os elefantes da burocracia esmagam o povo, e as baleias da indiferença inundam de promessas vazias. Há, no mínimo, uma frivolidade insultuosa: discursar para os poderosos lá fora, os turistas, enquanto aqui dentro, no Norte, o povo não tem sequer o silêncio para enterrar os seus mortos. As grandes potências devoram África enquanto nos dão discursos de parceria. Mais uma vez, alimentamos os EUA, a Europa e a Ásia com declarações de circo, enquanto aqui o povo continua sem pão, sem energia, sem futuro.
Enquanto o mundo ri da alegoria, Moçambique sangra. Cabo Delgado continua em estado de guerra não declarada. As populações em Mocímboa da Praia, sem voz, enterram os seus mortos em silêncio. O Estado não protege sequer o direito básico à vida, mas insiste em vender ao mundo a imagem de um país estável. Que significa “vamos trabalhar” (ou “kazi yendelee”, o plágio mal feito do Magufuli) quando o Estado não protege sequer o direito à vida? Trabalhar em quê? Trabalhar como? Trabalhar para quem?
A política, escreveu Bismarck, é a arte do possível. Em Moçambique, é a arte do impossível: discursos que não alimentam, promessas que não se cumprem, e slogans roubados de vizinhos. Para quem não sabe o presidente Chapo inovou com o seu “Vamos trabalhar”. Engano. John Pombe Magufuli, na Tanzânia, já havia lançado o “Tushape kazi”. Depois, Samia Suluhu herdou o trono e, no embalo, repetiu: “Kazi iendelee” (continuar com o trabalho). MSó que, na realidade, Samia não continuou, descontinuou. Comeu e deixou comer. E a Tanzânia, que parecia respirar novo ar, voltou ao mesmo estado de decadência política. Aqui, Chapo fez o mesmo: copiou um título e vestiu-o como se fosse dele. A originalidade morreu e, junto dela, a esperança de que houvesse ideias próprias. Se até o slogan é cópia, que esperar das políticas? Como Marx diria: a história repete-se, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.
Na Tanzânia, Magufuli dizia “tushapekazi” — vamos trabalhar — e, goste-se ou não, o povo via obras, vias, escolas e hospitais a nascer. Hoje, com Samia, o slogan virou “kazi yendelee”, mas a continuidade foi apenas da corrupção e da decadência.
Em Moçambique, porém, a narrativa se degrada. Daniel Chapo, como aprendiz perdido de um manual africano de governança, olhou para essas máximas e disse: “Vamos trabalhar.” Mas não há substância no gesto. É apenas eco vazio, máscara de acção que não move nada, copiando sem compreender, plagiando sem coragem de enfrentar a realidade. É como se tivesse comprado o livro de Magufuli, sublinhado as frases mais bonitas, mas esquecido de abrir a mente para o verdadeiro conteúdo. Como alertava Maquiavel, “o governo de um príncipe se mede não pelas promessas, mas pelos resultados”. Palavras que soam como eco distante em Maputo, onde Chapo parece mais interessado em repetir slogans do que em exercer liderança.
“Vamos Trabalhar” deveria ser chamado de “Vamos Copiar… ou Apenas Vamos Comer”. Porque no fundo, Chapo não trabalha; apenas se apropriou de lições alheias, repetiu slogans de campanhas estrangeiras, e hoje assina como se fossem dele. É fácil tomar a palavra e não o caminho. É fácil prometer e não entregar. Mas a história não se contenta com frases bonitas. Ela exige frutos, e os frutos exigem suor.
Pior: o Presidente rodeia-se de ministros que são caricaturas da incompetência. Roberto Mito Albino permanece no cargo, mesmo sem reunir atributos mínimos de probidade. Outros, ainda mais jovens, transformam a governação num festival de selfies e populismo pueril. É a institucionalização do vazio. Ou estamos a cultivar uma nova geração de nyonguistas, bajuladores que fingem crítica só até que lhes atirem uma cadeira ministerial?
O risco é evidente: a Frelimo caminha para 2029 carregando o peso de escolhas equivocadas, de ministros desqualificados, de promessas não cumpridas. O eleitorado observa, pondera, critica e, se não houver mudança, sabe que a responsabilidade será do partido que insiste em confundir imagem com acção, palavras com resultados, ego com serviço público. Como ensinava John Locke, o governo existe para proteger e servir o povo, não para enriquecer poucos ou adiar soluções. Ignorar essa lição é condenar-se à decadência política.
Não tenho da política uma visão clubista. Mas às vezes me obriga a ter. Nunca fui militante. E nunca quis ser. Sou independente, seria de centro social e democrático verdadeiro e africanista, existencialismo e humanismo e liberal. A militância em Moçambique é muitas vezes equivalente à servidão intelectual: repete-se a linha do partido, recitam-se slogans, veste-se a camisola e cala-se a consciência. A política vira estádio de futebol dos Mambas, Costa do sol, Matchedje, Sporting x, y, w, z, torcida organizada, paixão cega. Quem critica o partido A é automaticamente chamado militante do partido B. Quem critica o governo é taxado de oposição. Quem critica a oposição é taxado de governo.
Por isso, quando critico, não é por amor ou ódio a uma bandeira, mas por fidelidade ao interesse da comuna. Alguns pensam que me atacam quando devolvem críticas. Enganam-se. Atacam-se a si mesmos, porque a crítica, como ensinava Sócrates, é antes de tudo um espelho.
E assim seguimos, confundindo política com clubismo, debates com insultos, cidadania com fanatismo. Hannah Arendt dizia que “a política é o espaço da acção e da pluralidade”. Mas aqui, a pluralidade é castigada: só é aceito quem se encaixa no molde do partido, seja no poder, seja na oposição. A política moçambicana tornou-se futebol: quem critica a Frelimo é acusado de ser da oposição; quem critica a oposição é acusado de ser do governo. É o clubismo doentio que mata o debate. Arendt lembrava que “a política é o espaço da pluralidade”. Aqui, pluralidade é pecado: ou estás com a manada ou és traidor.
A política moçambicana tem-se reduzido a um duelo de fragilidades: de um lado, um poder que sobrevive de slogans e clientelismos; de outro, uma oposição que confunde emoção com maturidade, populismo com política, manipulação com mobilização. Arendt lembrava que o poder surge quando homens agem em conjunto. Aqui, em vez de acção conjunta, temos disfarces: um governo que promete sem entregar e adversários que denunciam sem propor.
A fragilidade do Estado é usada como combustível para manipular populações, como se a solução fosse apenas trocar o timoneiro. Mas quem leu Maquiavel sabe que o príncipe, para governar, deve antes conquistar a confiança do povo. E quando os opositores recorrem à ingenuidade popular para alcançar o poder, terminam embrutecendo o povo. É uma política de infantilização. Como a autora Gramsci dizia: a política não é a arte do possível, mas do necessário.
Muitos partidos — de governo ou oposição — não praticam política: praticam manipulação e politiquice. Tomam a fragilidade do Estado como pretexto para enganar as populações. Prometem mundos e fundos, insinuam que fariam tudo perfeito, escondem que a natureza humana e a política são feitas de limites. Maquiavel já alertava: “É melhor ser amigo do povo do que dos poderosos.” Mas os nossos príncipes modernos esqueceram a lição. Não se aproximam do povo para servir, mas para manipulá-lo. Distribuem camisolas, oferecem cervejas e feijão em comícios, e em troca exigem fidelidade cega. O eleitor é reduzido à massa de manobra — não a sujeito histórico.
Em Moçambique, a política virou caricatura de si mesma: não é o espaço do necessário, mas do clubismo, da manipulação e do cálculo mesquinho. Ser revolucionário não é apoiar partido político — é lutar por água, por pão, por escolas, por saúde, por dignidade. Mas no nosso teatro político, a palavra “revolução” virou camisola, slogan, senha de acesso ao banquete do poder. Quem ousa criticar é logo acusado de traidor, como se a crítica fosse um crime e não uma forma superior de patriotismo. Temos hoje um novo “Gatsi Rucere”? Talvez. O traidor não é aquele que expõe a podridão, mas aquele que se cala diante dela.
Fanon, em Os Condenados da Terra, advertia que as elites pós-coloniais facilmente substituem o colono sem alterar a lógica de exploração. E Moçambique confirma essa maldição. A Frelimo, que outrora dizia ser a voz do povo, tornou-se a sua própria caricatura. O partido vive mais de manipulação do que de maturidade.
De repente, os mesmos que defendiam integração de vozes críticas no Estado agora acusam de traidor quem aceita cargos públicos fora da cartilha partidária. Esquecem as palavras que ecoaram nas campanhas: “Ninguém deve ser vedado só porque pensa diferente e critica o sistema. No nosso governo teremos membros de todos os partidos comprometidos em servir o povo, incluindo da Frelimo.” Não são sábias estas palavras? São. Mas aqui só valem se vierem dos “nossos”. Quando vêm dos outros, são vistas como traição. É a incoerência que desarma discursos, a tal rajada de tiros na própria cabeça de que falava um amigo meu.
Eis o conselho gratuito: se Chapo nomeasse cidadãos críticos, de elevado sentido ético, a oposição enlouqueceria. Não teria mais ideia de fundar um partido. Perderiam a bússola, negariam as próprias convicções e revelariam ao povo o seu verdadeiro rosto: não querem integrar o país, querem apenas o protagonismo.
Outro veneno é o profissionalismo político. Partidos que têm milhares de militantes, mas permitem que sempre os mesmos ocupem cargos, acumulando funções, construindo currículos para futuras nomeações internacionais. A política, que deveria ser serviço público, virou carreira vitalícia. Como dizia Marx, “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem”; aqui, fazem-na sempre os mesmos, como se o país fosse propriedade herdada. A limitação de mandatos não devia ser só lei: devia ser cultura. Para que houvesse rotatividade, para que a política fosse espaço de participação plural e não de eternização. Mas o que vemos é a política como profissão e o político como funcionário de si mesmo.
Ou seja, maturidade política não é apenas governar bem; é reconhecer que nenhum partido tem o monopólio da verdade. É aceitar que adversário não é inimigo. É compreender que crítica é correcção, não afronta. Infelizmente, o que domina é a intolerância. Partidos recusam rotatividade interna, acumulam cargos como se não houvesse mais ninguém no país. Criam “carreiras políticas” onde o serviço público se torna trampolim para benefícios pessoais. E assim surge o político profissional, o homem que vive da política mas nunca viveu para o povo.
Aos irmãos activistas sociais, uma palavra: não é necessário descer tão baixo assim. Ativismo não é camisola, é consciência. Não é ódio, é ética. Não é partidarismo, é cidadania. Não é simpatia, é crítica. Fanon já advertia: “Cada geração deve descobrir a sua missão, cumpri-la ou trai-la.” Trai-la é transformar a política em insulto, em religião de partido, em bandeira vazia. Cumpri-la é lutar por dignidade concreta, mesmo contra a maré dos slogans.
A sociedade civil, que deveria ser espaço de lucidez, tornou-se muitas vezes fábrica de ressentimentos. Vive de inveja e de ódio. E neste país — impróprio para cardíacos — a intolerância política obriga muitos a se declararem revolucionários apenas para evitar represálias. Mas a revolução não é camisola. É pão, água, energia, saúde, educação.
Ser revolucionário, no nosso contexto, não é berrar slogans de Marx ou de Mondlane, mas lutar contra as condições concretas de exclusão. É garantir água potável em Mueda vocês generais makonde que desde que começaram comer nunca pensaram os outros, energia em Mocuba, medicamentos em Angoche, emprego em Matola, etc. Amílcar Cabral dizia: as massas não se libertam com rezas, mas com luta. Em Moçambique, muitos se declaram revolucionários apenas para evitar represálias, mas não lutam por nada além do seu próprio estômago. A revolução virou caricatura: revolucionários de camisola, revolucionários de Facebook, Instagram, Tik Tok, revolucionários de conveniência.
Nietzsche dizia que o homem maduro é aquele que reencontra a seriedade que tinha quando criança ao brincar. A maturidade política é reencontrar a seriedade da missão pública: servir, e não servir-se. Moçambique precisa de sair da política de manipulação para a política de maturidade. Do clubismo para a cidadania. Do ódio para a convivência. Não precisamos de políticos profissionais, precisamos de servidores temporários que devolvam a dignidade ao poder. Até lá, continuaremos a viver nesta comédia trágica, onde partidos se confundem com igrejas, líderes com deuses, críticas com traições, e o povo com plateia. E o mais triste: todos se dizem revolucionários. Mas poucos têm coragem de revolucionar.
Precisa de políticos que entendam que o povo não é massa de manobra partidária, mas sujeito histórico. Precisa de partidos que respeitem o mérito e a rotatividade, e não carreiras vitalícias. Precisa de cidadãos que façam política sem ódio e sem camisola. A manipulação é curta; a maturidade é longa. A manipulação fragiliza; a maturidade fortalece. A manipulação infantiliza; a maturidade emancipa. Ser revolucionário não é apoiar partido político: é lutar pela vida. E a vida, neste país, ainda espera por quem tenha coragem de governar com verdade, com justiça e com dignidade.
E termino com Marx, porque Marx sabia o que era trabalho real: “O trabalho é a condição básica e fundamental de toda a vida humana; foi o trabalho que criou o próprio homem.” Mas, em Moçambique, o trabalho real continua proibido para muitos — proibido pelo medo, pela fome, pela guerra, pela incompetência.

Facebook Comments