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- 43 feminicídios em nove meses: a violência não dá tréguas às mulheres
- De 01 de Janeiro a 11 de Setembro foram contabilizados 43 casos mediatizados
- Sociólogos explicam como a cultura patriarcal alimenta a onda de feminicídios no país
- São crimes geralmente premeditados, o que torna a investigação complexa, dizem autoridades
O sorriso de Yumily Mara Bazar, 13 anos, já não ilumina o bairro de Malhampsene, na Matola. Conhecida pela família como uma menina alegre, divertida e amorosa, a estudante da 8ª classe foi encontrada a flutuar, sem vida, num rio, quatro dias depois do seu desaparecimento. A 10 de Setembro, a sua história interrompida converteu-se no 43º caso de feminicídio mediatizado em Moçambique este ano, somando-se a uma estatística cruel que expõe a vulnerabilidade das raparigas e mulheres no país. O destino que deveria ser feito de cadernos escolares e sonhos adolescentes foi marcado pela violência e pela indiferença de um crime que ainda não tem resposta. Yumily tornou-se, assim, o rosto mais jovem e inocente de uma crise que insiste em crescer. O seu caso junta-se a estatísticas de um padrão persistente de outras mortes brutais de mulheres e raparigas que reforçam o sentimento de insegurança, ante a inépcia das autoridades policiais, que até aqui ainda não apresentaram nenhum resultado das infindáveis investigações que disse ter aberto a cada um dos casos. Ao Evidências, as autoridades reconhecem a impotência diante da sofisticação do crime. São crimes geralmente premeditados, o que torna a investigação complexa, dizem, num tom que mais se assemelha à capitulação.
Luísa Muhambe
O bairro de Malhampsene, na Matola, ainda guarda o silêncio pesado do luto. Nas ruas de terra batida, o riso de uma menina foi substituído por murmúrios de incredulidade. Aos 13 anos, Yumily Mara Bazar, descrita pelos familiares como sorridente e cheia de vida, tornou-se mais uma vítima de feminicídio em Moçambique. O seu corpo foi encontrado a boiar num rio próximo de casa, quatro dias depois de desaparecer, transformando um quotidiano familiar em tragédia e dor irreparável.
Dados do Observatório da Violência Baseada no Género indicam que, entre Janeiro e Agosto, a média foi de cinco casos mediatizados por mês, sem contar com os que nunca chegam a ser noticiados. A maioria envolve mulheres entre os 18 e 35 anos, mas casos como o de Yumily revelam que a violência atinge também crianças e adolescentes.
O mistério começou na noite do dia 06 de Setembro, um sábado. Segundo a prima da vítima, Isabel Gimo; Yumily teria saído de casa por volta das 22h00, indicando que a decisão pode ter sido precipitada após presenciar uma discussão entre os pais.
“A Yumily saiu de casa às 22:00 de sábado, ao que tudo indica depois de ouvir uma discussão dos pais. Eles pensaram que ela estaria a dormir com as duas irmãs mais velhas e só se aperceberam do sumiço no dia seguinte”, relata Isabel Gimo.
O alarme só soou na manhã de domingo e o caso foi reportado à família na segunda-feira. Imediatamente intensificou as buscas com publicações nas redes socias. A angústia familiar terminaria na quarta-feira, com a pior das notícias. A descoberta do corpo de Yumily no rio, precedida pelo achado das suas roupas próximo do local, o que levantou imediatamente à suspeita de que a adolescente tivesse sido vítima de violência sexual antes de ser assassinada.
O caso de Yumily Mara Bazar, uma criança-adolescente, choca pela sua brutalidade e pela falta de resolução. É mais um número que ganha rosto e que clama por justiça num País onde a violência de género atinge proporções de crise.
Natália Macheve, outro número que ganha rosto
A tragédia de Yumily não está isolada. O seu caso é precedido por outras mortes brutais que reforçam o sentimento de insegurança entre as mulheres e raparigas moçambicanas. Uma dessas histórias é a de Natália Macheve, uma estudante universitária de 19 anos.
Natália foi encontrada em estado crítico a 27 de Agosto no bairro Zintava, no distrito de Marracuene, Província de Maputo. Transportada para o Hospital Central de Maputo, acabaria por morrer devido à gravidade das agressões.
Segundo Carmínia Leite, porta-voz da Polícia da República de Moçambique (PRM) na Província de Maputo, Natália foi atraída para fora de casa pelo namorado, de 21 anos, por volta das 22 horas, sendo brutalmente agredida e abandonada a 500 metros da sua casa.
“A vítima foi encontrada pela prima, às 4h da manhã, com sinais vitais fracos e indícios de agressão. Foi socorrida e encaminhada ao Hospital Central de Maputo, onde infelizmente perdeu a vida”, confirmou Leite, à data dos factos.
As investigações preliminares indicam que conflitos no relacionamento foram a causa do crime, e a premeditação foi sugerida por elementos encontrados no telefone do acusado. O quadro de brutalidade foi reforçado pela família, que encontrou quatro preservativos usados no local onde Natália foi abandonada. O agressor está detido, e a família, tal como a sociedade, espera que a justiça seja célere e que este crime sirva de marco na luta contra o feminicídio em Moçambique.
Yumily e Natália juntam-se a uma lista de vítimas em que constam nomes como Tatiana Liasse, Amina Mussagy e Finoca. Mulheres e raparigas cujos rostos, sem justiça efectiva, arriscam-se a perder-se no esquecimento.
Os 42 casos de feminicídio mediatizados em pouco mais de oito meses de 2025 em Moçambique representam um alarme social e um desafio urgente às autoridades. Este aumento sublinha a necessidade de medidas mais robustas, não só na punição dos agressores, mas na prevenção da violência de género que continua a roubar o futuro de raparigas e mulheres.
Esses crimes são motivados, em geral, por questões passionais
Júlio Vinho, do Gabinete de Atendimento à Mulher e Criança Vítima de Violência, oferece uma perspectiva crucial sobre a natureza dos feminicídios, descrevendo-os como crimes altamente premeditados e, frequentemente, mortes encomendadas. A sua análise expõe os motivos passionais, a complexidade da investigação policial e as medidas de auto-protecção para as mulheres.
Vinho começa por desvendar o que ele crê ser o modus operandi subjacente a muitos casos de feminicídio não esclarecido. O especialista enfatiza que estes crimes são, quase sempre, premeditados. Há um estudo minucioso dos passos da vítima.
”São mortes encomendadas, bem estudadas, o modus operandi é bem diferente e dificilmente encontramos os autores porque são crimes planeados”, justifica.
A motivação principal destes crimes está profundamente ligada a questões passionais e à mentalidade de posse. Vinho descreve o cenário clássico de um relacionamento rompido, onde o agressor não aceita o fim. Esta recusa em aceitar a perda está ligada a um sentimento de traição e ao medo do investimento falhado.
“São histórias ligadas a componentes de ciúmes, uma relação mal acabada, aquele sentimento de se não for minha, não será de mais ninguém”, sublinha.
Questionado sobre a dificuldade da polícia em investigar estes casos, Júlio Vinho aponta o dedo para dois aspectos críticos: a natureza do crime e a capacidade de resposta institucional.
“A maior dificuldade está no factor tempo. O tempo é vital porque, ao contrário de homicídios menos planeados; os feminicídios, por serem crimes bem preparados e encomendados, requerem uma investigação mais longa e organizada”, sustenta.
Vinho reconhece a lentidão e as lacunas no aparelho de investigação: “Dificilmente se esclarece esse tipo de caso. O Estado deve aprimorar os seus mecanismos e combater esse tipo de crime, dotando as autoridades dos meios de investigação necessários para desvendar acções tão bem organizadas”.
No que toca à prevenção, Júlio Vinho dirige-se às mulheres, apelando a uma mudança de mentalidade e a uma maior vigilância sobre as suas escolhas de vida, sobretudo no contexto das relações. Ele aconselha as mulheres a “manter vigilância” sobre com quem se estão a relacionar. A sua recomendação final é clara: “é muito importante que as mulheres se mantenham vigilantes”
Análise sociológica do feminicídio revela as raízes da violência
Uma complexa teia de fatores culturais e falhas institucionais está na base da violência extrema contra mulheres em Moçambique, segundo a análise dos sociólogos Vasco Adão e Lénio Lisboa. Os investigadores identificam o patriarcado e a impunidade como solo fértil para o feminicídio no país.
Vasco Adão aponta falhas em vários pilares do sistema de proteção às mulheres. Citando o Gender Equality Profile da ONU Mulheres (2022), destaca o despreparo das instituições de administração de justiça e não só, ainda existe a polícia que possui fraca formação especializada para lidar com casos de género, os tribunais com morosidade processual, a escassez de magistrados sensibilizados para questões de género”, destaca.
Na educação, enfatiza a “ausência de programas consistentes de educação para a igualdade de género e prevenção da violência, o que perpetua estereótipos e normaliza comportamentos abusivos”.
Para enfrentar esta realidade, o pesquisador propõe uma intervenção em quatro frentes: educação transformadora com conteúdos sobre igualdade de género, campanhas de sensibilização envolvendo homens e rapazes, mobilização comunitária para transformar normas culturais e empoderamento feminino através de programas de liderança e educação sexual.
O também sociólogo Lénio Lisboa complementa esta análise, focando na distorção de práticas tradicionais. O sociólogo explica como o lobolo é frequentemente pervertido.
“O homem que paga sente-se legitimado a controlar a vida da esposa, desde os seus horários até às suas decisões mais íntimas. Isso alimenta uma lógica de posse: a mulher não é vista como cidadã livre, mas como propriedade da família do marido”, descreve.
Um dos aspectos mais críticos identificados por Lisboa é a cultura de impunidade: “Quando a mulher resiste, o sistema cultural valida o uso da violência como forma de corrigir ou reafirmar autoridade”.
A prática de resolver a violência de género fora do tribunal, ou seja, “em casa”, é vista como um dos maiores catalisadores da impunidade. Quando um caso de agressão é tratado através de mediação familiar, o agressor raramente sofre consequências legais.
“Cria-se a percepção de impunidade, os homens sabem que podem agredir ou até matar sem enfrentar punição severa e reforça-se a ideia de que a vida da mulher vale menos, já que o conflito é encerrado com um pedido de desculpas ou pagamento simbólico”, desdramatiza.
Como soluções, ambos defendem mudanças simultâneas na cultura e nas instituições. Lisboa insiste que “as Campanhas de Sensibilização devem ser permanentes e não apenas em datas comemorativas”, utilizando o peso das instituições locais e envolvendo rádios comunitárias, igrejas e líderes tradicionais para que a mensagem de igualdade se enraíze na sociedade moçambicana.
Sociedade civil endurece o tom contra o feminicídio e entra em vigília permanente
Perante um ano marcado pela violência extrema contra mulheres e raparigas, o Observatório das Mulheres iniciou, há dias, uma vigília permanente em Maputo. A iniciativa surge como resposta aos 43 feminicídios já documentados em 2025, número que expõe uma crise de direitos humanos e exige medidas urgentes por parte das autoridades moçambicanas. O alerta ganhou maior dramatismo após o brutal assassinato da menina de 13 anos na Matola.
“Tornou-se comum ouvir que uma mulher foi assassinada em circunstâncias inexplicáveis, por desconhecidos, dentro da própria casa ou mesmo enterrada num quintal. Esta situação tem de parar. O feminicídio não pode continuar a ser normalizado”, declarou Quitéria Guirrengane, secretária executiva do Observatório das Mulheres.
Além dos assassinatos, a organização reportou 42 casos de violação sexual contra mulheres e menores apenas em 2024.
“Longe de serem meras estatísticas, estes números representam vidas interrompidas e traumas profundos nas comunidades”, sublinhou Guirrengane.
A vigília permanente simboliza, segundo a organização, não apenas um luto colectivo, mas também um apelo por acções concretas.
“Exigimos do governo medidas reais e eficazes. Queremos ruas, escolas e locais de trabalho seguros. Não vamos calar até que todas as mulheres e meninas possam viver sem medo”, concluiu a secretária executiva.

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