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- Entre o jornalismo e o mito
Testemunhou-se, na noite da passada quarta-feira, 29 de Outubro, na Galeria de Maputo, mais do que um simples lançamento literário. Assistiu-se a um ritual de passagem do jornalismo para a literatura, da notícia para o mito, do rio que seca para as lágrimas que fertilizam a memória. Azael Moiana, conhecido pela sua escrita factual nos seus tempos de jornalismo de redação, apresentou “As Lágrimas do Rio Chilovecane”, uma obra que se ergue como uma ponte frágil e necessária entre dois mundos: o da reportagem e o da tradição oral.
Elísio Nuvunga
Não se trata de um livro que se limita a contar uma história; é um acto de resgate. Moiana escava a terra de Taninga, no distrito da Manhiça, para desenterrar vozes adormecidas. A sua escrita é uma cerimónia de evocação, onde o Rio Chilovecane não é um acidente geográfico, mas um personagem vivo, um arquivo líquido que chora, recorda e interpela.
A estrutura da obra reflecte essa dualidade criativa. O prefácio, assinado por Salomão Moyana, seu pai e figura histórica do jornalismo moçambicano, e o posfácio, da responsabilidade do editor Cremildo Bahule, enquadram o livro entre duas gerações e duas formas de olhar a palavra: a que regista o real e a que o transcende.
Moiana explicou, numa entrevista ao Jornal Evidências, que a literatura lhe permitiu “reconstituir, pela via do mito e da metáfora, uma cartografia afectiva de Taninga”. E é precisamente isso que o leitor encontra: uma geografia íntima, povoada por figuras como Mamadzala, “o tambor que lembra”, ou a entidade Nwahulwana, seres que personificam uma sabedoria ancestral ameaçada pelo ruído da modernidade.
Há, na sua prosa, um diálogo consciente com a tradição literária moçambicana. Jorge Ferrão, reitor da Universidade Pedagógica de Maputo, não hesitou em inscrevê-lo na linhagem de Mia Couto, Paulina Chiziane e Ungulani Ba Ka Khosa. A comparação é justa, mas Moiana não se limita a repetir fórmulas. Ele procura um “timbre próprio”, uma “mitopoética” que nasce da sua terra e da sua infância — dos provérbios à beira do fogo, dos batuques rituais, dos silêncios que também falam.
O grande triunfo deste livro está na forma como ele reconcilia o jornalista com o contador de histórias. Se o primeiro lida com os factos, o segundo mergulha nas verdades simbólicas. E é aí, nesse espaço híbrido, que “As Lágrimas do Rio Chilovecane” ganha a sua força singular: não como documento etnográfico, mas como acto de escuta poética.
Num país onde a oralidade resiste como forma de conhecimento, a obra de Azael Moiana chega não como um simples livro, mas como um tambor — um instrumento que chama, que lembra, que congrega. E, nesse chamamento, confirma-se: a literatura moçambicana continua viva, fluente e necessária.
Moiana afirmou que a leitura do seu pai (Moyana) “sublinha o livro como convocatória à reflexão sobre a moçambicanidade”, enquanto Bahule, no posfácio, “interroga os gestos de linguagem e os regimes de memória que a obra mobiliza”. A Kuphaya Editora garantiu curadoria editorial e materialidade coerentes com a vocação estética do texto, transformando-o num verdadeiro “objecto-livro” que comunica também visualmente.
Azael Moiana é licenciado em Filosofia pela Universidade Pedagógica, em Direito pela Unisced e Mestre em Gestão dos Media Digitais pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane.



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