Governo sacou quase meio bilião de dólares das Reservas Obrigatórias do Banco Central

DESTAQUE ECONOMIA POLÍTICA
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  • BdM emprestou quase 420 milhões de dólares ao Estado em 2025
  • Rogério Zandamela garante que empréstimo sem juros está “normalizado”
  • Xerife não presta contas a ninguém e não respeita nem a Assembleia da República

Tal como o Jornal Evidências alertou na sua edição 229, de 07 de Outubro, o Governo recorreu silenciosamente às reservas obrigatórias do Banco de Moçambique (BdM) para financiar parte da despesa pública, accionando um mecanismo excepcional previsto na lei, mas raramente utilizado com tamanha intensidade. A confirmação desse movimento surge agora com novos dados oficiais, que revelam que, até Setembro do presente ano fiscal, o BdM concedeu ao Estado 29,1 mil milhões de meticais em empréstimos directos, o equivalente a 419,6 milhões de dólares. Segundo apurou o Evidências de fontes do Ministério das Finanças, esse montante expressivo foi mobilizado para suprir necessidades imediatas de tesouraria no quadro do esforço contínuo de gestão e mitigação do défice orçamental. A revelação surge num momento particularmente sensível, marcado por crescente desconfiança em relação ao Governador do BdM, Rogério Zandamela, que tem ignorado solicitações da Assembleia da República para prestar esclarecimentos sobre matérias de gestão do Banco Central, aumentando o clima de opacidade institucional

Luísa Muhambe

Sob a escuridão que ainda envolve a gestão das contas públicas e com beneplácito de uma gestão pouco transparente do Banco de Moçambique, o Governo tem feito uso recorrente das reservas obrigatórias, longe do olhar atento da opinião pública.

Na sua edição 229, os moçambicanos ficaram escandalizados quando o Jornal Evidências revelou que, afinal, o Governo tinha recebido recentemente um “NÃO” quando tentava silenciosamente recorrer às reservas obrigatórias para poder financiar a despesa pública corrente.

Nunca antes o Governo tinha recorrido àquele mecanismo legal, mas com limitações, mesmo que com o mesmo apetite de agora. Só este ano, o Governo solicitou e o BdM concedeu 29,1 mil milhões de meticais em empréstimos directos, o equivalente a 419,6 milhões de dólares, só nos primeiros nove meses do presente ano. O valor que foi sendo sacado de forma sistemática não está a ser amortizado.

O esvaziamento das reservas obrigatórias do Banco Central começou no ano passado, quando o Governo de Filipe Nyusi, segundo o relatorio da Conta Geral do Estado de 2024, apertado pela situação calamitosa da tesouraria do Estado foi ao pote protegido do Xerife Zandamela buscar 24.500 milhões de meticais (382,8 milhões de dólares) só nos primeiros quatro meses daquele ano para o pagamento de salários e outras despesas. O valor também não foi amortizado, contrariando o estatuído no nº2 do artigo 18 da Lei nº1/92, de 3 de Janeiro (Lei orgânica do Banco de Moçambique)”.

O Governo passou a apostar nessa linha de crédito devido ao facto de os bilhetes e títulos de tesouro à base dos quais vinha fazendo a despesa pública, durante grande parte dos 10 anos do governo, terem ficado pouco atractivos por causa de atrasos e falhas de pagamento. A particularidade dessa linha de crédito reside no facto de ser concedida sem a aplicação de juros.

A revelação dos saques que até aqui vinha sendo feito praticamente às escondidas surge num momento particularmente sensível, marcado por crescente desconfiança em relação ao Governador do BdM, Rogério Zandamela, que tem ignorado solicitações da Assembleia da República para prestar esclarecimentos sobre matérias de gestão do Banco Central, aumentando o clima de opacidade institucional.

Mais de 402,1 milhões de dólares em Bilhetes de Tesouro

Os empréstimos directos do Banco de Moçambique estão previstos ao abrigo do Artigo 18.º da Lei Orgânica da instituição. Essa provisão legal faculta expressamente ao BdM, na sua função de banqueiro do Estado, a prerrogativa de conceder crédito sem juros em moeda nacional.

No entanto, a lei estabelece um limite máximo anual para esse tipo de empréstimo: o montante não pode exceder 10% das receitas ordinárias que foram arrecadadas no penúltimo exercício orçamental, o que visa garantir a sustentabilidade e a responsabilidade fiscal na utilização deste recurso.

O Governo não só não devolveu o dinheiro devido à pressão crescente das dívidas acumuladas e seus juros, como também tentou voltar a recorrer às reservas. No entanto, essa operação não foi frutífera, pois o Banco Central negou de conceder mais um saque ao executivo, o que não só frustrou a expectativa do executivo de Daniel Chapo, como também gerou perturbações na execução da despesa pública, devido à crise de liquidez.

A situação fez com que o Governo enfrentasse dificuldades até para pagar salários, cenário que se arrastou até ao princípio do presente mês. Até ao fecho desta edição, havia relatos de funcionários que não tinham recebido os seus ordenados.

A mobilização destes fundos do Banco Central não foi o único instrumento utilizado pelo Governo para financiar o défice. O relatório mais recente sobre a execução orçamental detalha uma intensa actividade de captação de recursos no mercado, indicando que foram realizadas um total de 107 operações de crédito de curto prazo. Adicionalmente, essa estratégia foi complementada pela emissão de Bilhetes do Tesouro, que resultaram na captação de 402,1 milhões de dólares em financiamento adicional.

Legalidade e flexibilidade do financiamento ao Estado

Desde a divulgação do Jornal Evidências, o recurso do Estado a essa modalidade de financiamento directo, por parte da entidade emissora de moeda, tem sido objecto de análise e debate nos círculos económicos e financeiros. Face a esse escrutínio, a liderança do Banco de Moçambique, cuja transparência tem sido colocada em causa por se recusar sistematicamente a prestar contas na casa do povo, sentiu a necessidade de vir a público prestar esclarecimentos detalhados sobre a base legal que suporta essa tipologia de operação.

O governador Rogério Zandamela sublinhou que, apesar de ser um direito do Estado, a sua utilização varia consoante as necessidades de tesouraria ao longo dos anos económicos. A intervenção surge num momento em que o crédito do BdM ao Tesouro demonstrou um crescimento 52% em 2024, ultrapassando a marca de 1,5 mil milhões de dólares, intensificando o debate sobre o financiamento interno do défice.

Zandamela afirmou categoricamente que o recurso do Estado ao financiamento do Banco Central não é uma anomalia, mas sim uma prática legalmente estabelecida e normalizada na legislação financeira do país, apesar de a sua utilização não ser uma constante anual.

“Na nossa lei orgânica está previsto, está normalizado, é de direito que o Estado tenha uma linha de crédito do BdM equivalente até 10% das receitas dos dois anos anteriores. Então, está lá. Em alguns anos o Estado usa, em alguns anos não usa. Logo, os valores que estão a ser mencionados a favor do Estado estão dentro dessa rubrica, mas está previsto, está na lei orgânica do Banco,” clarificou.

O dirigente detalhou que a efectiva utilização desta linha de crédito é determinada pelas necessidades conjunturais do Tesouro Público. Os valores recorridos pelo Governo até à data mencionada encontram-se rigorosamente dentro dos parâmetros legais definidos para este instrumento financeiro. O Governador reiterou a importância de o público e os agentes económicos entenderem a base jurídica desta operação, desmistificando qualquer interpretação de que o financiamento teria sido realizado fora das normas estabelecidas.

Condições de empréstimo, prazos e o risco de incumprimento

 O enquadramento legal que regula esta linha de crédito estabelece um conjunto de exigências estritas relativas a prazos e condições que devem ser integralmente cumpridas pelo Ministério das Finanças. Os montantes que são emprestados, embora isentos de juros no momento da concessão, são disponibilizados ao Tesouro através de uma conta corrente específica, criada unicamente para este fim.

A condição mais importante para a manutenção da isenção de juros é o reembolso total da dívida, que deve ser liquidado impreterivelmente até ao último dia do respectivo ano económico. Esta obrigatoriedade anual visa assegurar que o empréstimo mantenha o seu carácter de crédito de tesouraria de muito curto prazo e que não se transforme numa fonte permanente e inflacionária de financiamento do défice.

Projecções orçamentais e o cenário Macroeconómico

A pressão sobre a tesouraria pública é um reflexo da situação macroeconómica mais ampla do país. Esta pressão é confirmada por indicadores como o défice acumulado que superou os 320 milhões de dólares no segundo trimestre e pelo substancial limite de emissão de Bilhetes do Tesouro, fixado em quase 7 mil milhões de dólares, o que denota a ampla necessidade de captação de liquidez.

No entanto, em contracorrente com esta necessidade imediata de financiamento, o Governo mantém uma projecção de melhoria nas contas públicas para os próximos anos. Esta previsão de alívio surge num contexto de ajustamento orçamental em curso e de expectativas renovadas de uma retoma gradual e sustentada da actividade económica nacional.

O Governo moçambicano projecta uma descida notável do défice orçamental nominal para 1,6 mil milhões de dólares em 2026. Se esta projecção se concretizar, o valor representará o défice mais baixo registado nos últimos anos em termos nominais, correspondendo a 6,9% do Produto Interno Bruto (PIB), um sinal de algum reequilíbrio nas contas do Estado.

A tendência de redução do défice projectada pelo Ministério das Finanças está intrinsecamente ligada à antecipação de um crescimento económico mais robusto. As previsões apontam para um crescimento do PIB que deverá atingir 3,2% em 2026, o que representa uma aceleração face aos 2,9% previstos para o presente ano e aos 2,2% verificados em 2024.

Este último ano foi particularmente desafiador, tendo sido influenciado negativamente pelos efeitos prolongados da instabilidade política pós-eleitoral, que causaram perturbações significativas em diversos sectores da economia. A concretização destas projecções depende fundamentalmente da estabilidade política interna, da recuperação dos preços internacionais das commodities e, crucialmente, do avanço dos megaprojectos de gás natural, que prometem transformar a base económica do país.

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