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Das águas turquesa do Arquipélago das Quirimbas, onde o tempo parece ter-se rendido ao vaivém das marés, emerge uma voz há muito guardada nas memórias de calçada e nas paredes de coral da Ilha do Ibo. Não é a de um historiador de fora, nem a de um viajante de passagem. É a voz íntima de um filho da ilha. Omar Abdala Anláwè, engenheiro de formação e contador de histórias por herança, estreia-se na literatura não para descrever um posto turístico, mas para reivindicar um chão. Em “IBO ou WIBU? Viagem à Minha Juventude”, ele não apresenta um estudo e oferece um regresso.
Elísio Nuvunga
Nascido na Ilha do Ibo, Cabo Delgado, nos anos 1950, o autor cresceu num território largamente estudado por filósofos, historiadores, sociólogos, arquitectos, religiosos, turistas e curiosos de várias partes do mundo. Para Anláwè, embora a ilha tenha sido intensamente descrita, faltava-lhe a voz de quem verdadeiramente a habita: a de um nativo. É nesse impulso que se ancora o livro, escrito a partir de experiências e memórias que a sua juventude guardou intactas.
O autor conta que a intenção de escrever acompanha-o há décadas. Começou por investigar fábricas caseiras da ilha, ainda antes do ano 2000, mas percebeu que estava a misturar temas e interrompeu o projecto. Um amigo incentivou-o a fotografar, catalogar e deixar o trabalho para futuras gerações.
“Achei a ideia muito boa, mas não a pratiquei”, comentou, lembrando que naquela época ainda estudava nos Estados Unidos.
A escrita ganhou corpo quando regressou ao país e viajou com o filho para Cabo Delgado. Ao reencontrar o Ibo da sua infância, as memórias começaram a fluir.
“Levei o meu filho a passear na ilha onde nasci. Mostrei onde jogava bola, onde ia caçar morcegos, onde pescava, onde aprendi a nadar com bóias de coqueiros, onde apanhava castanha. Eu disse: isto pode ser uma coisa boa, se continuarmos com apontamentos.”
As noites foram dedicadas à escrita, impulsionada pela presença da mãe, que, segundo diz, “tem uma memória fora de sério” e o ajudou a recuperar nomes, canções, lugares e histórias.
A escolha da Ilha do Ibo/Wibu deve-se também ao impacto que a sua infância teve entre 1962 e 1964, período marcado por grandes transformações, incluindo a celebração dos 200 anos da vila, em 1963.
“Houve muita atenção sobre a ilha. Navios chegavam, faziam demonstrações, havia actividades culturais e desportivas. Tudo isso me galvanizou e ficou muito presente na minha memória.”
O título do livro reflecte duas identidades: “Ibo”, o nome oficial em língua portuguesa, e “Wibu”, a pronúncia tradicional dos nativos, e por sinal, também registada em mapas antigos do século XVIII.
Para o autor, esta dualidade carrega a tensão entre o olhar externo e o olhar interno sobre a ilha.
“Há muita gente que escreveu sobre esta ilha, às vezes de forma distorcida. Não sou escritor nem sociólogo, sou engenheiro, um aperta-parafusos. Mas sou sensível como nativo. Quero fazer jus ao nativo. Podemos descrever-nos a nós próprios.”
Anláwè explica que o livro traz um pouco de tudo: histórias, canções, vestuário, culinária e hábitos dos moradores. O objectivo era apresentar um retrato amplo, ainda que não aprofundado, antes que essas memórias se perdessem.
O autor revela que guarda outros manuscritos por publicar, muitos centrados em vozes femininas e tradições de diferentes pontos de Cabo Delgado.
Contudo, critica as dificuldades enfrentadas pelos escritores iniciantes. O livro ficou engavetado de 2008 a 2025.
“As editoras não estão para nós iniciantes. Estão para as grandes figuras com nome. Uma vez levei o livro a uma fundação. A directora disse que falava de coisas do Norte e não podiam fazer nada. Disse que no Norte não se escreve. Eu respondi: nós escrevemos, mas não somos recebidos”, denunciou indignadamente.



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