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- Estão a roubar sonho de Carlos Tembe, dizem os vendedores e os munícipes da Matola
- Município da Matola diz que local nunca foi destinado à construção do mercado
- Edilidade contraria a sua própria deliberação e a placa que acabou sendo vencida pelo tempo
- Um documento oficial “esquecido” prova que o espaço foi mesmo destinado para um mercado
- Entre os acusados de se beneficiar da terra usurpada está o director da Escola Central da Frelimo
No coração da Matola-Gare, um vasto terreno no bairro de Tchumene é hoje o epicentro de uma batalha acesa que opõe dezenas de vendedores a uma poderosa aliança entre o poder político e empresarial. De um lado, uma comunidade que se agarra à promessa antiga do consulado de Carlos Tembe, falecido edil, da construção do maior mercado grossista da província de Maputo e quiçá, do País, um sonho que dizem ter sido roubado. Do outro, o Conselho Municipal da Matola, que nega a existência dessa promessa e defende a legalidade de concessões privadas no local, acusando os vendedores de invasão, burla e desordem. O espaço, palco de construções de armazéns e condomínios, transformou-se num campo de narrativas irreconciliáveis, com algum indício de compadrio e tráfico de influências, onde a verdade parece tão disputada quanto cada metro quadrado de terra.
Evidências
A génese do conflito, segundo os vendedores, remonta há mais de duas décadas, quando aquele que é considerado o melhor presidente da Matola de sempre, Carlos Tembe, falecido, desenhou um plano de desenvolvimento que previa um futuro próspero e organizado local para o comércio grossista.
Carlos Tembe, em vida, não só projectou, como também reservou um espaço de 13 hectares no Bairro Matola-Gare, concretamente no Tchumene, posto administrativo da Machava, para a construção do que seria o primeiro e maior mercado grossista da Matola. Mas, com a sua morte, veio também a morte do projecto acompanhada por uma teia de corrupção que envolve quadros seniores do partido Frelimo.
Segundo nativos e vendedores locais, o espaço foi-lhes oficialmente destinado, uma garantia que se desvaneceu com o tempo, quando, de forma reiterada, o município chegou a alegar que o grande problema estava na falta de recursos financeiros para a colocação das infra-estruturas planificadas.
Uma resolução da Assembleia Municipal, com o n.º 39/2010, datada de 15 de Dezembro de 2010 e assinada pelo então presidente daquele órgão, António Matlhava, não deixa espaço para dúvidas dos planos que a autarquia, sob liderança do visionário Carlos Tembe, tinha para a autarquia, ao recomendar o reassentamento de algumas famílias que habitavam no local, para dar lugar ao Mercado Grossista.
Mas as sucessivas administrações de Arão Nhancale e Calisto Cossa colocaram o projecto em banho-maria, dando lugar a movimentações secretas, muros que dividiram o terreno e a chegada de empresários chineses e figuras ligadas à elite do partido Frelimo.
Sentindo-se traídos e ignorados, os nativos e os membros de uma suposta comissão do mercado, formada por vendedores que foram inscritos para ocupar o mercado, decidiram ocupar a parcela de terra que restava, num acto de desespero para reclamar o que acreditam ser seu por direito.
A memória da promessa e a chegada dos “Donos”
Rosária Mesquita é uma das vozes que materializam a angústia e a resistência dos vendedores. É membro da comissão do mercado e, com a voz carregada pela memória de uma longa luta, detalha a origem da promessa e a subsequente desilusão.
Para Rosária, que assumiu o papel de porta-voz do grupo, a intenção do município de entregar o espaço à comunidade era clara, mas foi deliberadamente sabotada.
“Isto aqui são treze hectares. E as quatro famílias que estavam aqui cederam o espaço para fazer o mercado grossista. Nós, como filhos e netos, é que retirámos as famílias daqui. E daí, apareceram os chineses, que vieram dividir o próprio mercado. Levaram a parte traseira. Quando a população aproximou para entender o que estava a acontecer, eles disseram que estavam a acampar para poderem iniciar as obras do mercado. Nós nos conformamos, porque era o que nós também queríamos”, começou por dizer.
A conformação, no entanto, deu lugar à suspeita e, finalmente, à acção directa. A comissão viu o espaço remanescente ser dividido novamente, desta vez por destacados membros da Frelimo, com destaque, segundo eles, para Gulamo Taju, director da Escola Central da Frelimo e um membro bastante respeitado dentro do sexagenário e na opinião pública.
Percebendo que, se não agissem, perderiam tudo, a ocupação foi a única resposta que encontraram. Foi então que o conflito escalou, com o município a intervir através do chefe de posto administrativo da Machava, que, segundo Rosária, tentou negociar uma saída, mas escondeu a identidade dos verdadeiros donos do projecto que tomava forma.
A descoberta do nome por detrás do empreendimento foi, para eles, a confirmação das suas piores suspeitas.
“Pedimos ao chefe de posto que nos dissesse ‘Quem é essa pessoa?’, porque quem veio nos primeiros passos não foi alguém, foi o município. Ele escondeu, não aceitou dizer-nos quem era. Só mais tarde descobrimos, este ano mesmo. Um moçambicano que trabalhava com o chinês disse que o chinês veio em nome do senhor Tajú. E quando nós aceitámos receber o chinês, a secretária do senhor Tajú solicitou um encontro comigo. Eu neguei. Eu disse que não podia assumir essa reunião, porque quem está aqui dentro deste mercado é a população”, denuncia.
A recusa em negociar nos bastidores trouxe consequências severas. Rosária e outros cinco membros da comissão foram alvo de um processo judicial movido por Gulamo Taju, uma figura associada à direcção da Escola Central do partido Frelimo.
As notificações e as idas ao tribunal tornaram-se rotina, juntamente com o que descreve como ameaças veladas. A percepção de Rosária é a de que o município joga um jogo duplo, fingindo apoiar a população enquanto, na prática, favorece os interesses dos concessionários.
“O processo agora está no tribunal da Machava. O senhor Tajú meteu um processo para as seis pessoas que foram eleitas pelo chefe do posto. Não é para a população. E a gente já não está entendendo se está em guerra com o senhor Tajú ou com o próprio município. O município faz de contas que está do nosso lado, mas pelos vistos está do lado do senhor Tajú. E hoje, no tribunal, a doutora que me atendeu diz que ali haveria chuva de bala. Porque a qualquer momento podem mandar a polícia para aqui”.
A defesa da edilidade: “Não se pode politizar uma invasão”
A versão da edilidade é diametralmente oposta. O município alega que o terreno em questão sempre foi uma reserva municipal destinada a projectos industriais e comerciais de grande escala e nunca para um mercado grossista.
Para a vereação, o problema começou com a necessidade de realocar vendedores afectados pela ampliação da Estrada Nacional N4, a quem foram oferecidas alternativas que rejeitaram. A ocupação do espaço em Tchumene é, portanto, classificada como uma invasão ilegal, agravada por denúncias de que a comissão de vendedores está a demarcar e vender talhões ilegalmente, enganando outros cidadãos desesperados por um lugar para trabalhar.
Contactado pelo Evidências para prestar esclarecimentos sobre o caso, o Município da Matola indicou Aurélio Salomão, vereador de Planeamento Territorial do Município da Matola, que à chegada informou à nossa equipa de reportagem que não iria responder às mais de 14 questões formuladas pelo jornal, mas sim iria dar uma informação geral. Durante o encontro tentamos interpela-lo com questões, mas declinou terminantemente.
Na sua comunicação quase robótica, negou veementemente a existência de qualquer plano para um mercado grossista naquele local e enquadra a situação como um caso claro de invasão de propriedade privada por um grupo que se aproveitou de um momento de instabilidade social.
“Explicámos que aquele espaço não se trata de nenhum espaço para mercados, mas sim era uma área para empreendimentos industriais, comerciais. Dissemos que não era necessário fazerem invasões em espaços concessionados. Só que, sucede naquele período das manifestações, é quando eles decidem fazer a justiça com as próprias mãos. Fomos, de novo, sensibilizar. Trata-se de invasão e burla. Estão a burlar pessoas. Temos informações que estão a vender espaços a 50.000, 25.000 meticais, a enganar pessoas”, rebateu.
O vereador insiste que o município tentou a via do diálogo, oferecendo locais alternativos aos vendedores da N4, que recusaram. Quando a ocupação começou e as construções ilegais se iniciaram, a edilidade agiu dentro da sua competência: embargou as obras. A resposta dos ocupantes, segundo ele, foi de total desacato, pichando e invalidando os avisos de embargo, o que esgotou a via pacífica e administrativa.
“O que nós temos como informação é que os concessionários vieram pedir aqui ao Conselho Municipal um embargo da obra. Nós fomos lá fazer o embargo. No mesmo dia, esses ocupantes, esses invasores, picharam, invalidaram o embargo que o Conselho Municipal foi lá fazer. Foi daí que percebemos que a via pacífica não seria favorável. Caberia já aos proponentes [concessionários] desencadear outros processos, porque o Conselho Municipal foi desacatado”, destacou.
Questionado sobre as acusações de que o município apoia figuras da Frelimo, como Gulamo Taju, em detrimento dos cidadãos comuns, Aurélio Salomão é taxativo. Ele afirma que a filiação partidária de um concessionário é irrelevante. Para ele, o município é um órgão técnico que gere o território e deve proteger o direito à propriedade, independentemente de quem seja o titular.
“Como é que o município vai apoiar um munícipe para prejudicar outro munícipe? Isso não é verdade. O município não lida a gestão de terra em função da filiação partidária. Nenhum cidadão, independente da sua cor de partidária, é proibido de ter alguma propriedade. Não se pode politizar uma invasão. São concessões antigas. Alguém tem um projecto para implementar, o Conselho Municipal atribuiu. Aquele espaço sempre foi uma reserva municipal para empreendimentos”, disse de forma reiterada
O vereador conclui a sua argumentação afirmando que, com o caso já em instâncias judiciais por iniciativa dos próprios concessionários, o município está de mãos atadas. A sua actuação dependerá das decisões dos tribunais, que são de cumprimento obrigatório. Ele reitera que a responsabilidade recai sobre uma comissão sem legitimidade que, a seu ver, logrou intentos criminosos aproveitando-se de um clima de manifestação.
Resolução Esquecida: O papel que desmente a versão oficial
No entanto, a narrativa de que o espaço “nunca foi destinado à construção desse mercado” é directamente confrontada por documentos oficiais do próprio município. As denúncias já apontavam para uma “teia de corrupção que envolve quadros seniores do partido Frelimo” e nomes como o de Gulamo Taju, após a morte do antigo edil Carlos Tembe, que teria sido o mentor do projecto do mercado.
A prova mais contundente que abala a versão da vereação é a Resolução n.º 39/2010, de 15 de Dezembro de 2010. No documento, a Assembleia Municipal da Matola, órgão máximo deliberativo do município, deixa uma recomendação inequívoca ao executivo municipal. Na alínea b) do Artigo 2, o texto delibera que o Conselho Municipal “acelere a transferência das famílias do Mercado Grossista para o Bairro da Matola-Gare (Tchumene)”.
É o que viria a acontecer, de tal sorte que dentro da área dos 13 hectares são visíveis os escombros das casas dos antigos moradores que foram transferidos pelo município. Aliás, Evidências ouviu alguns dos antigos moradores do local, agora reassentados, que confirmaram que o mote de sua transferência do local era para dar espaço à construção do mercado grossista.
Para além de documentos, os moradores contam que durante largos anos naquele local onde hoje o Município diz nunca ter sido intenção construir um mercado, havia uma placa bem visível com a seguinte inscrição: “Reserva Municipal para a Construção do Futuro Mercado Grossista”.
A referida placa que acabou não resistindo ao tempo e à acção da natureza, bem como a resolução não só confirmam a existência de um plano para um “Mercado Grossista” em Tchumene, como valida a reivindicação histórica dos vendedores, contradizendo frontalmente a afirmação do Município de que tal projecto nunca existiu para aquele local.
O Evidências contactou Gulamo Taju, que curiosamente já foi vereador municipal da Área de Planeamento Territorial e Urbanização, por tanto com jurisdição sobre a terra e informação privilegiada, sendo o principal acusado pela comissão de mercado de estar por detrás da usurpação.
Ao Evidências não negou ter interesses económicos conexos ao espaço em disputa, mas declarou desconhecer o referido terreno que a comunidade e a comissão do mercado o acusam de usurpar, tendo aconselhado a nossa equipa a contactar o município, que, no seu entender é única entidade com legitimidade de posse de terra.
Enquanto isso, o conflito permanece num impasse. De um lado, uma comunidade munida de uma memória colectiva e de uma resolução oficial que legitima a sua reivindicação. Do outro, uma administração municipal que se escuda na legalidade de concessões atribuídas e num processo judicial em curso. No meio, um terreno que deveria gerar desenvolvimento e emprego, mas que hoje é um símbolo da desconfiança, do clientelismo e da luta desigual entre o cidadão comum e as elites. Enquanto os tribunais não decidem, a tensão em Tchumene cresce, e sobre o pó das construções paira a questão: a quem pertence, afinal, o futuro da Matola?



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