A sabotagem silenciosa de Cabo Delegado

EDITORIAL
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A narrativa mais repetida é a de um terrorismo que nasce e se alimenta de fora, encontrando na desesperança local o seu combustível imediato. Não que ela não seja verdadeira. É uma explicação que faz sentido, mas que talvez nos mostre apenas a superfície de uma história muito mais intrincada.

Quando se ousa ir além da superfície, escavando por entre as camadas de silêncio e conveniência, emerge um retrato mais complexo e sobretudo mais perturbador. O relatório do GIFIM traz à luz um dado que abala a leitura simplista, é que por detrás da retórica da fé e da insurgência, latejam motivações económicas e redes de poder bem terrenas. E o financiamento que mantém acesa a evolução de violência não é apenas produto de canais obscuros vindos de fora. Ele brota, circula e se entranha dentro do próprio país, movimentando-se por contas bancárias, por sistemas de transferências móveis e por esquemas engenhosamente montados com a participação de actores nacionais. Actores que têm rosto, estatuto social e influência  e que, paradoxalmente, se apresentam como parte do mesmo tecido que a violência ameaça destruir.

Este facto abre uma ferida difícil de encarar, de moçambicanos com poder de influência que se mostram interessados na destruição da sua própria casa. Que benefício encontram em sabotar missões das Forças de Defesa e Segurança (FDS), em travar investimentos necessários ou em minar a logística destinada a revitalizar um exército que, em última análise, existe para proteger a soberania do país? Estas perguntas não são meras acusações lançadas ao ar – são interrogações que se impõem quando se compreende que a desestabilização, mesmo sob roupagens religiosas, é também uma fonte de lucro, uma forma de garantir controlo sobre recursos e zonas de influência.

Há, portanto, um paradoxo doloroso, ao mesmo tempo que jovens são sacrificados como peões de uma guerra sem rosto, figuras com poder e assento na sociedade exploram as cinzas do caos como terreno fértil para os seus interesses. Isto explica por que, tantas vezes, operações das FDS parecem condenadas ao fracasso antes mesmo de começarem. Não se trata apenas de fragilidade institucional, mas de sabotagens calculadas, executadas por dentro, com conhecimento de quem deveria estar do lado da defesa nacional.

Não é fácil aceitar que há mãos moçambicanas a alimentarem o fogo que consome o seu próprio chão. Mais difícil ainda é reconhecer que estas mãos não são as dos jovens desesperados, mas, frequentemente, as de quem já tem muito poder, influência, acesso a recursos e ainda assim encontra na instabilidade uma forma de manter privilégios. Esta é, talvez, a faceta mais dura e mais amarga desta crise, a de um inimigo interno que, protegido pelas sombras da conveniência, se alimenta do sofrimento colectivo.

Olhar para esta realidade exige coragem. Exige que não nos deixemos iludir por explicações fáceis nem pela tentação de culpar apenas as vozes externas. O terrorismo em Moçambique não é apenas uma guerra de ideologias, mas uma confluência de interesses, desde internos até externos; enquanto não tivermos a ousadia de encarar essa verdade, continuaremos a lutar contra fantasmas, deixando impunes aqueles que, do interior, lucram com a dor e a destruição do país.

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