GALP e o ultimato: quando o “direito à arbitragem” vira chantagem fiscal

DESTAQUE ECONOMIA
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O Estado moçambicano enfrenta uma situação inusitada: uma das suas principais parceiras no sector energético, a GALP, decidiu levar ao extremo um diferendo tributário ao notificá-lo para arbitragem internacional. A operação de notificação, longe de ser um acto meramente técnico, funciona como pressão diplomática e de agenda. A mensagem é cristalina: ajustem os termos ou iremos à arena internacional. Se a GALP estivesse apenas a reivindicar direitos, faria isso nos tribunais domésticos; mas ao pedir arbitragem, joga noutro patamar – o da percepção pública, dos mercados e da reputação internacional.

Este episódio não é isolado. É expressão de uma tendência global nos negócios petrolíferos e do gás, onde grandes empresas transformam a tributação controversa em moeda de negociação simbólica. No caso moçambicano, em vez de esperar a receita na conta pública, assistimos ao risco de ver a exigência fiscal convertida em litígio caro e prolongado. O terreno jurídico é claro: a alienação da participação da GALP na Área 4 resultou em ganhos de capital (as chamadas mais-valias) que, pela lei moçambicana, nomeadamente a Lei n.º 14/2017, estão sujeitos a tributação. Essa lei, específica para o sector de petróleo e gás, prevê que as mais-valias resultantes de transmissões de direitos neste domínio são tributáveis, inclusive quando envolvem entidades não-residentes, e define mecanismos de responsabilização solidária quando aplicável.

O Estado já incorporou nas suas projecções orçamentais, constantes do Cenário Fiscal de Médio Prazo, a expectativa de cobrar esse imposto entre 2025 e 2026, o que demonstra que o Executivo julga haver direito legítimo à receita. A divergência não é sobre se Moçambique pode tributar, mas sobre quanto e como. E é precisamente aí que a GALP procura usar a retórica da arbitragem para empurrar o Governo para uma renegociação disfarçada de disputa jurídica.

Notificar para arbitragem é mais do que um passo jurídico: é uma forma de pressão. Ao tomar essa iniciativa, a GALP leva o litígio para fora da jurisdição moçambicana e coloca o país perante investidores, agências de “rating” e mercados internacionais. É um modo subtil de advertir: cuidado com decisões fiscais “agressivas”. Essa estratégia produz efeitos imediatos, instala a ideia de incerteza regulatória, condiciona negociações futuras e constrói uma narrativa que apresenta a empresa como parte lesada e o Estado como infractor. A operação de comunicação é sofisticada: a empresa transforma-se em vítima antes de o tribunal existir.

Não é coincidência que a notificação surja pouco depois de o Governo incluir a previsão da receita no plano orçamental. A disputa deixa de ser apenas técnica e torna-se um acto político. É legítimo interpretar a iniciativa da GALP como uma tentativa de inverter o ónus da prova, de obrigar o Estado a justificar o que é, por definição, um direito soberano: cobrar impostos sobre riqueza gerada no seu território.

Contra essa narrativa há argumentos sólidos. Primeiro, o direito à tributação é inequívoco. A lei foi aprovada, está em vigor e foi reforçada com o regime fiscal do sector extractivo. O valor gerado pela venda da participação da GALP foi criado com base em concessões, infra-estruturas e riscos assumidos em solo moçambicano. Segundo, não há ilegalidade na cobrança de mais-valias. Em jurisdições maduras, as empresas não ameaçam arbitragens cada vez que um fisco cumpre o seu dever. Negociam, prestam contas, discutem critérios, mas não transformam a lei em refém. Terceiro, há uma questão de responsabilidade social e moral. A GALP lucra com um recurso nacional e beneficia da estabilidade institucional de Moçambique. Quando ameaça com arbitragem, exige da sociedade moçambicana um duplo sacrifício: abrir mão de receitas vitais ou entrar num processo caro e moroso, com advogados internacionais pagos a peso de ouro. Finalmente, há a questão da transparência. Se a empresa acredita que houve erro no cálculo, que apresente documentos, auditorias independentes, pareceres públicos. Redigir notificações discretas e comunicados ambíguos é menos um gesto jurídico do que um exercício de relações-públicas.

O comunicado recentemente emitido pela Autoridade Tributária de Moçambique veio reforçar essa leitura. A AT esclarece que o processo de cobrança das mais-valias segue o curso normal e que o Estado moçambicano continua a actuar dentro do quadro legal e contratual vigente. Precisa ainda que o diferendo se limita a aspectos de procedimento e de apuramento, e não à existência da obrigação fiscal. Essa explicação desmonta a narrativa da GALP: não se trata de um imposto indevido, mas de uma empresa que prefere o palco da arbitragem ao rigor da contabilidade. Ao reafirmar que Moçambique respeita os tratados internacionais de investimento e actua conforme as boas práticas da administração tributária, a AT expõe a dimensão verdadeira do caso: uma tentativa de pressão travestida de defesa jurídica.

Mais: a GALP deve ser desafiada a apresentar publicamente as suas garantias financeiras – cauções bancárias, mecanismos de escrow ou qualquer outro instrumento que demonstre ter provisionado os montantes correspondentes ao imposto em disputa. Se tais garantias existem, que sejam mostradas. Se não existem, então a arbitragem é apenas uma manobra para adiar o inevitável: pagar.

O que está em causa não é um número; é o princípio da soberania fiscal. Ceder a essa forma de pressão seria abrir precedente perigoso: qualquer multinacional que discordasse de uma cobrança poderia brandir a ameaça da arbitragem como arma negocial. Moçambique deve manter-se firme. Dialogar, sim; arbitrar, se for necessário; mas jamais abdicar do direito de tributar mais-valias geradas no seu território. O país não pode permitir que a chantagem se torne linguagem contratual.

Se a GALP quer protecção jurídica, que apresente as suas contas e os seus cálculos. Se acredita na força dos seus argumentos, que os apresente publicamente. O Estado moçambicano não deve negociar sob chantagem, nem permitir que uma disputa fiscal se transforme em instrumento de condicionamento político. Porque, no fim, a regra é simples: quem lucra com o nosso gás deve pagar – antes de falar em litígio.

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