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John Kanumbo
Moçambique entrou no mapa das democracias formais com as eleições de 1994 — um marco que, três décadas depois, ainda não se traduziu em alternância real de poder. O país vive uma democracia emprestada: aparência de pluralismo, substância autoritária. Como aquelas manas ou manos que se emprestam roupas. Desde 1994, repete-se um padrão de manipulação e normalização pós-eleitoral que impede mudanças estruturais.
As eleições de 1994, realizadas após 16 anos de guerra civil, priorizaram a paz sobre a competição política. O resultado foi a criação de instituições formais que convivem com práticas informais: um sistema onde a alternância é tolerada, mas rigidamente controlada. A lógica da “estabilidade a qualquer custo” abriu espaço para a consolidação de práticas autoritárias dentro de estruturas democráticas.
O ciclo recorrente. O mecanismo que se repete é claro: fraude → contestação → diálogo → normalização. Denúncias de irregularidades surgem a cada eleição, registos inflacionados, uso abusivo de recursos públicos, manipulação do escrutínio. Seguem-se protestos, críticas internacionais e, por fim, “diálogos nacionais inclusivo” que desarmam a contestação, cooptam lideranças e produzem uma narrativa de consenso. Assim, manipular resultados torna-se politicamente barato, e a ilegitimidade é normalizada.
Eleições e crise. Entre 2009 e 2019, e especialmente em eleições autárquicas de 2023 e gerias de 2024, as tensões agravaram-se. O peso dos recursos do gás Palma e sua guerra e da dívida pública aprofundou a disputa. As eleições de 2024 expuseram a sobreposição entre mecanismos formais e informais: irregularidades, intimidação e falta de transparência. Observadores internacionais, como a União Europeia, exigiram maior clareza, mas o processo terminou com contestação e repressão.
O caso de Venâncio Mondlane tornou-se símbolo de um mal-estar coletivo. A sua liderança carismática e narrativa anti-establishment mobilizaram jovens e sectores urbanos, mas o aparelho do Estado respondeu com prisões, repressão e judicialização. Mondlane mostrou tanto o potencial da mobilização popular quanto a fragilidade de lideranças personalistas diante de um Estado capturado.
Frelimo e a captura do Estado. A Frelimo, no poder desde a independência com a retirada do colono, consolidou uma rede que integra partido, Estado e economia. Essa captura manifesta-se em favorecimentos, concessões a aliados e nomeações por lealdade. O Estado tornou-se instrumento de reprodução de poder e a democracia, um ritual controlado.
E aqui nasce o Estado Sombra. O termo Deep State em inglês descreve as redes ocultas de poder que operam dentro do Estado formal, fora do controlo democrático. Incluem altos funcionários, militares, juízes, líderes religiosos, músicos, famílias, empresários e líderes locais ligados por interesses comuns. É o “governo que nunca sai”. Na África, o fenómeno tem raízes coloniais: partidos de libertação herdaram estruturas centralizadas e militarizadas, transformando-as em partidos-Estado. Em Moçambique, o Deep State combina captura institucional, clientelismo, nepotismo, lambebotismo, patriotismo e partidarização das instituições. Controla recursos, segurança, justiça e comunicação, mantendo uma aparência democrática enquanto protege os mesmos interesses.
O Deep State sobrevive porque cria normalidade: promove eleições controladas, fala em estabilidade e coopta opositores. Usa a pobreza e a religião como instrumentos de dependência e submissão, moldando mentalidades para aceitar o poder como destino.
Quando é desafiado? Sempre que surge um líder popular como Mondlane, Malema ou Sonko, o sistema reage com difamação, perseguição judicial e falsos diálogos. O Estado formal serve de fachada; o poder real opera nos bastidores.
Como desmontar. Romper esse ciclo exige transparência absoluta, despartidarização do Estado, reforma judicial e eleitoral, descentralização real, protecção a jornalistas e educação cívica para quebrar a cultura da obediência.
A oposição também tem responsabilidade. Parte age como satélite do poder, aceita diálogos que não mudam estruturas e privilegia interesses imediatos. Falta-lhe base social e organização durável. Assim, a política moçambicana combina dois vícios: um partido dominante que captura o Estado e uma oposição que raramente constrói alternativa.
Culpar apenas o partido no poder é insuficiente. O problema é sistémico: elites que governam nas sombras e adversários que se contentam com migalhas. O tempo da meiguice democrática passou. Moçambique precisa de um diagnóstico honesto para poder mudar — e devolver substância à sua democracia.

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