Falta de denúncia contribuiu para que crimes de violência sexual continuem impunes

SOCIEDADE
  • Medo de exposição e perda de reputação entre as causas
  • Uma em cada sete mulheres sofreram violência sexual antes dos 18 anos
  • Falta de confiança em relação ao justiça coíbe vítimas de denunciar

Apesar dos esforços visando a consciencialização da sociedade sobre os impactos negativos da violência sexual, estatísticas mostram que ainda é significativo o número de vítimas que preferem abraçar o silêncio, o que faz com que os violadores permaneçam impunes. Entre as causas da falta de denúncia está o medo, a resolução a nível familiar ou comunitário – de forma particular ou informal – a discriminação e a vergonha, aliados ao facto de, em Moçambique, o problema ainda ser pouco discutido e assuntos ligados à sexualidade serem considerados privados.

Neila Sitoe

Dados do Inquérito Sobre Violência Contra a Criança em Moçambique (INvic2019), lançado há dias, indicam que uma em cada sete mulheres (14,3%) sofreram violência sexual antes dos 18 anos. Entre as mulheres, 6,6% sofreram toque sexual indesejado, 6,1% sofreram uma tentativa indesejada de sexo, 5,6% sofreram sexo pressionado ou coagido e 3,5% sofreram sexo pressionado e 3,2% sofreram toque sexual indesejado.

Entre as mulheres que sofreram violência na infância, apenas 32,2% já contaram a alguém sobre a sua experiência. Entre as mulheres que contaram, 35,8% revelaram a um parente e 33,5% a um amigo ou vizinho.

Sobre o perfil do agressor, as vítimas de violência sexual relataram que os perpetradores comuns dos mais recentes incidentes sofridos pelas mulheres nos últimos 12 meses incluíam um parceiro íntimo actual ou anterior (64,3%) e um amigo (21,9%). Mais do que uma em cada quatro mulheres (27,6%) que sofreram qualquer violência sexual nos últimos 12 meses afirmaram que o perpetrador dos mais recentes incidentes era, pelo menos, cinco anos mais velho.

Para Maria Artur, pesquisadora e activista social, a prevalência significativa de casos de vítimas de violência sexual que não denunciam às autoridades para a responsabilização dos agressores deve-se ao facto de a sociedade moçambicana ser marcada por fortes desigualdades de género, onde as mulheres são as que mais sofrem violência sexual, e como este tipo de violência faz parte dos crimes contra a honra, muitas vítimas calam-se por medo de perder a sua reputação.

“As mulheres que são violadas sexualmente muitas das vezes têm vergonha de denunciar, porque quando denunciam são questionadas, discriminadas e até mesmo julgadas pela sociedade, onde procuram saber como ela estava vestida, por que estava a altas horas sozinha fora de casa, se estava embriagada ou não, como se ela fosse a culpada por ter sido violentada”, lamentou.

Medo de expor a família faz com as mulheres não denunciem

Maria Artur, pesquisadora e activista social

Para a pesquisadora, as mulheres nem sempre denunciam casos de violência por medo de expor a família, de serem discriminadas mesmo dentro das próprias famílias, por vergonha e porque não confiam na justiça, pois muitos agressores continuam impunes devido a ineficiência na recolha das provas do crime.

“A discriminação é a pior forma de retirar os direitos das pessoas e quando a pessoa tem noção de que se denunciar irá sofrer discriminação, e muitas das vezes o agressor nem é preso por falta de provas, prefere optar pelo silêncio, por isso a violência sexual é um tipo de violência que mais impunidade tem, o que faz com que a multiplicação deste tipo de crime seja maior”, afirmou.

Maria Artur acrescenta que várias vezes a vítima tem vergonha de dizer que foi violada porque elas são culpabilizadas devido ao sistema patriarcal que define estruturas de poder baseadas na diferença sexual e hierarquizam na desigualdade, onde a mulher não tem voz, o que pressupõe todo um sistema de valores que justifique essa desigualdade e a reproduza, influenciando tanto homens como mulheres.

“Há uma necessidade de se combater o patriarcado, desconstruindo-o através do questionamento dos valores discriminatórios com que fomos educados e defendendo, acima de tudo, a solidariedade, o amor, a empatia, o respeito pelo outro para que este tipo de crime não continue impune só porque se quer manter o bom nome da família, a custo de proteger um agressor que se não denunciado várias mulheres continuarão vítimas dele”, apelou.

Activista defende reflexão sobre a transformação social no país

Elda Homo, departamento de género da PGR

Por seu turno, Elda Homo, chefe do departamento do género da Procuradoria-Geral da República, diz que apesar dos desafios que as mulheres estão sujeitas ao denunciar crimes de violência sexual, elas não se devem calar, devem optar sempre por denunciar, para que o responsável por este crime seja penalizado pelo seu acto e só assim a sociedade ficará consciente sobre a necessidade de não praticar tal crime porque sofrera sansões.

“Todo o cidadão tem direito a vida e a não ser violentado, e a violência sexual, apesar de ser mais incidente nas mulheres, há homens que também são vítimas deste tipo de violência, e tanto homens assim como mulheres não podem ter vergonha de denunciar”, explicou.

Gilberto Macuacua, activista social, diz que a violência é uma opção, as pessoas têm alternativas para não praticar a violência sexual, mas preferem ignorar as alternativas e optar por recorrer a força e ameaças para satisfazer actos tão bárbaros, e agravam a situação culpabilizando a vítima.

“Não devemos culpabilizar a vítima de violência sexual, ou de qualquer outro tipo de violência, porque as pessoas não pedem para ser violadas, e culpabilizando-as estamos a dar mais força ao agressor, para que continue com estes actos que muitas das vezes resultam em impunidade”.

Gilberto Macuácua

Para Gilberto, o facto de a mulher ter medo de denunciar crimes de violência está associado à pressão social que ela sofre e às ordens sociais de género que matam os sonhos das pessoas, dos homens assim como das mulheres, atrasam o desenvolvimento da sociedade.

Por isso, o activista considera importante a reflexão sobre a transformação social e a necessidade do envolvimento de todos (do indivíduo, da família, da comunidade, instituições sociais e do sistema) para que tais práticas sejam eliminadas.

“Há uma pressão social que faz com que as mulheres tenham medo de denunciar, porque geralmente são conotadas com certos estereótipos, são culpadas e por vezes a sociedade as discrimina, por isso toda essa questão deve ser quebrada, para que não se dê mais espaço a violência que é algo que acarreta custos e perpetua a pobreza no país”, finalizou.

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