Conselho Constitucional apadrinha “expediente político” para manter Ndambi e companhia na cadeia?

DESTAQUE POLÍTICA
  • Acórdão mantém artigo que não fixa prazo de prisão preventiva
  • Acórdão do CC pode ter em vista legitimar “caça” aos arguidos das dívidas ocultas
  • Ndambi já havia denunciado que  “mudaram o Código Penal para me manter preso”
  • Ordem dos Advogados quer que haja prazos fixos de prisão preventiva
  • Decisão do CC acontece quando há cidadãos em prisão preventiva há mais de cinco anos

Muitos devem estar lembrados da célebre expressão de Armando “Ndambi” Guebuza, quando no segundo dia da audição sobre arresto de bens, no âmbito do processo das dívidas ocultas, perante os sujeitos processuais desabafou: “eles mudaram o Código Penal para me manter preso. Os outros são ‘fauna acompanhante’ aqui. Isto é político, meritíssimo”, mas poucos devem ter percebido o seu alcance. No entanto, na semana passada o desfecho de uma acção de pedido de declaração de inconstitucionalidade de alguns artigos do Código do Processo Penal veio reacender a possibilidade da Lei estar a ser usada para fins meramente políticos. Nem mesmo entre os juízes do Conselho Constitucional houve consenso sobre a questão da falta de fixação de prazos de prisão preventiva para todas as fases processuais até à decisão final, o que abre espaço para que muitos cidadãos possam permanecer detidos durante muito tempo, algumas vezes sendo inocentes. Nalguns corredores, há uma crença de que o polémico artigo tem em vista atingir os arguidos do caso das dívidas ocultas.

Evidências

Até semana finda, a expressão “mudaram o código penal para manter-me preso” não fazia qualquer sentido na cabeça de um cidadão moçambicano de diligência mediana. A expressão pertence a Armando Ndambi Guebuza, proferida na sua última aparição pública, numa audiência de contraditório diferido de arresto de bens no âmbito do processo das dívidas ocultas.

“Pergunte ao Ministério Público, Meritíssimo, por que é que eu estou preso até hoje? Eles mudaram o Código Penal para me manter preso. Os outros são ‘fauna acompanhante’ aqui. Isto é político, meritíssimo. O regime de Filipe Jacinto Nyusi, desde que entrou no poder, este foi o primeiro processo”, acusou, queixando-se mais uma vez da perseguição do regime de Filipe Nyusi à família Guebuza, a ponto de ter havido uma tentativa de envenenamento através de um pudim.

A alteração do Código Penal que Ndambi se referia na audição é na verdade a Lei n.° 18/2020, de 23 de Dezembro, Lei de Revisão do Código de Processo Penal, que resulta da revisão da Lei 25/2019, de 26 de Dezembro, ou seja, houve num espaço de um ano duas revisões do Código do Processo Penal, um instrumento doutrinal que serve para aplicar as balizas de como implementar o escrito no Código Penal.

Entre as alterações introduzidas pela nova revisão de Dezembro de 2020 consta uma polémica redacção do artigo 256 que, no entender da Ordem dos Advogados de Moçambique, requerente da inconstitucionalidade, viola a Constituição por não conter prazos de prisão preventiva para todas as fases processuais até à decisão final.

Antes da revisão mais rápida de sempre de um Código de Processo Penal, o artigo 256 da Lei 25/2019, de 26 de Dezembro, de Revisão de Código Penal, fixava prazos de duração máxima da prisão preventiva.

No número 1 determinava que “A prisão preventiva extinguir-se-á quando, desde o seu início, tiverem decorrido: (…) c) 14 meses, sem que tenha havido condenação em 1ª instância; d) 18 meses, sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado”.

Curiosamente, a revisão apressada, agora apadrinhada pelo Conselho Constitucional, teve lugar numa altura em que os prazos de prisão preventiva dos arguidos das dívidas ocultas estavam largamente extrapolados e os advogados estavam em cima do tribunal para soltá-los.

Com a supressão dos prazos no CPP fez-se um arranjo para manter Ndambi e companhia no Língamo, mesmo se recorrerem e a justiça demorar uma infinidade de anos para que a condenação transite em julgado, o que, agora, reforça a tese de que a justiça moçambicana pode estar ao serviço de expedientes políticos.

CPP extingue gozo de presunção de inocência dos arguidos

Na sua fundamentação, a Ordem destacou que “Com a revisão pontual do artigo 256 do CPP, efectuada pela Lei n.° 18/2020, já citada, o legislador ordinário não fixou neste dispositivo legal o prazo de prisão preventiva, desde a) pronúncia até à decisão judicial condenatória em primeira instância; b) decisão judicial condenatória em primeira instância até à decisão final com trânsito em julgado, violando, deste modo, o disposto no n.° 1 do artigo 64 e no n.° 1 do artigo 61, ambos da CRM, lançando a norma ao vício da inconstitucionalidade por omissão”.

Consideram que um tal entendimento violaria frontalmente o preceito constitucional plasmado no n.° 2 do artigo 59 da CRM, que confere aos arguidos o benefício e gozo da presunção de inocência até decisão judicial definitiva, princípio este que é igualmente consagrado no n.° 1 do artigo 3 do CPP

Entendem, os requerentes, que a inconstitucionalidade por omissão é reforçada pelo artigo 255 do CPP que estabelece sobre a extinção da prisão preventiva, em particular, as alíneas b) e e) dos n.° s 1 e 2, respectivamente, nos termos do qual as medidas de coacção extinguem-se de imediato: a) com a sentença absolutória, mesmo que dela tenha sido interposto recurso; ou b) com o trânsito em julgado da sentença condenatória.

Assim, em caso de condenação, os arguidos das dívidas ocultas, e não só, mesmo recorrendo da decisão de primeira instância, têm poucas chances de sair em liberdade provisória, segundo o polémico artigo do CPP.

Segundo juristas ouvidos pelo Evidências, se alguém for condenado em primeira instância e decidir recorrer a uma outra instância, deverá aguardar preso pelo tempo que durar a diligência do processo, o que não é razoável, sobretudo num país em que os tribunais de recursos são uma espécie de cemitério de processos.

Não há consenso até mesmo entre os juízes do Conselho Constitucional

As inquietações da Ordem dos Advogados foram analisadas pelos sete juízes conselheiros do Tribunal Supremo, nomeadamente Lúcia da Luz Ribeiro, Mateus da Cecília Feniasse Saize (Relator), Manuel Henrique Franque, Domingos Hermínio Cintura, Ozias Pondja, Albano Macie e Albino Augusto Nhacassa.

No que refere ao polémico artigo que não fixa os prazos de prisão preventiva não houve consenso entre os juízes conselheiros do Conselho Constitucional. Dos sete, cinco votaram contra a declaração de inconstitucionalidade do referido artigo, enquanto, dois (Ozias Pondja e Albano Macie) votaram a favor.

Na declaração de voto vencido, os dois juízes conselheiros destacaram que a prisão preventiva tem um carácter instrumental e é um instituto provisório que deve ser aplicado com razoabilidade. Por outro lado, entendem que a prisão preventiva carece de uma justificação excepcional que se exprime na exigência dos requisitos materiais da necessidade da adequação e da proporcionalidade.

“Parece-nos pacífico o entendimento de que quando o n.° 5 do artigo 256 do CPP dispõe que «O arguido ter sido condenado a uma pena de prisão…» tem-se em vista que o agente tenha sido condenado a uma pena que varia de 3 dias a 30 anos. Elucidando, através de exemplo: um agente é condenado a uma pena de 10 anos de prisão em primeira instância, e havendo recurso a prisão preventiva extinguir-se-á se ela tiver a duração da pena fixada em primeira instância, ou seja, extinguir-se-á decorridos 10 anos de prisão, que correspondem à condenação em primeira instância. Com semelhante prescrição normativa equivale a dizer que o agente antecipou o cumprimento da pena de prisão de 10 anos, com a prisão preventiva, porque na primeira instância, havendo recurso, não existe ainda condenação definitiva, ou seja, transitada em julgado. Nesse contexto, viola-se o princípio de presunção de inocência consignado no n.° 2 do artigo 59 da CRM que proclama: «Os arguidos gozam da presunção de inocência até decisão judicial definitiva»”, entende Ozias Pondja.

Por seu turno, Albano Macie entende que a omissão do prazo de duração da prisão preventiva, desde a acusação ou a pronúncia até a fase de julgamento e decisão em primeira instância, é incompatível com o regime constitucional previsto no n.º 1 do artigo 61 e n.º 1 do artigo 64, os quais impõem, respectivamente, que o legislador deve fixar os prazos de duração da prisão preventiva e que tais prazos devem ter duração definida e limitada, o que determina a sua inconstitucionalidade.

Ordem dos Advogados diz que falta de consenso no CC mostra que não estava errada

Reagindo à decisão do Conselho Constitucional, a Ordem dos Advogados de Moçambique considera que é inaceitável apenas inconstitucionalizar apenas o artigo sobre a dispensa do defensor. No entanto, mostra-se encorajado pelo facto de a falta de consenso entre os juízes do Conselho Constitucional legitimar a sua posição. Por isso, exige debate mais abrangente, atendendo ao carácter irrecorrível dos acórdãos do CC.

“No nosso ponto de vista, o texto que foi criado através da Lei 18/2020, de 3 de Dezembro, gera uma situação de inconstitucionalidade, na medida em que o indivíduo detido fica sem saber, exactamente, até quando vai permanecer em situação de prisão preventiva”, referiu o Bastonário da Ordem dos Advogados, Duarte Casimiro.

Numa outra abordagem, declarou que o Conselho Constitucional deve voltar a analisar o artigo que aborda a questão da prisão preventiva. “Estamos convictos de que este problema é muito sério e, naturalmente, vai ter o seu impacto se, efectivamente, nada for feito. Por isso, esperamos que o Conselho Constitucional volte a apreciar os artigos em causa para que se possa mudar o cenário actual”, terminou.

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