Denunciar tribalismo com discurso tribalista

OPINIÃO

Alexandre Chiure

Em 1975, aquando da independência nacional, havia uma única Frelimo dentro da Frelimo, a Frelimo de Samora Machel. Uma Frelimo que se guiava através dos ideais de Eduardo Mondlane, centrados na unidade do povo moçambicano.

Uma Frelimo que defendia a democracia num regime monopartidário. Uma democracia marcadamente socialista. Sem pluralismo de ideias. Sem liberdade de imprensa. Sem a lei de acesso às fontes. Sem alternância do poder. Uma democracia que se resumia na participação do povo moçambicano na tomada de algumas decisões.

Esta Frelimo, a Frelimo de 75, coesa, com uma linha política virada para a construção de uma sociedade em que tudo é de todos, cujos dirigentes estavam ao serviço do povo, tinha um projecto político para o país baseado na igualdade entre os cidadãos.

O discurso do general Alberto Chipande sobre o tribalismo, que me parece ser um discurso também tribalista quando questiona a exclusão de macondes (sua tribo), ndaus e macuas do negócio das dívidas ocultas, remeteu-me a esta Frelimo, a Frelimo de Samora, à estilo da Frelimo de Eduardo Mondlane. Levou-me a lembrar-me da forma enérgica com que combatia o tribalismo, o regionalismo e o racismo.

Defendia uma sociedade igualitária onde não há moçambicanos de primeira, de segunda, muito menos de terceira. Uma Nação em que as pessoas não sofrem qualquer tipo de discriminação baseada na sua cor da pela e na religião. O nepotismo e o amiguismo também não eram bem-vindos.

Com a Frelimo de 75, não havia ndaus, cenas, macuas, machanganas, machuabos, nhandjas, bitongas e matsuas, mas moçambicanos. Não havia brancos, mestiços, indianos e negros, mas sim moçambicanos. É isso que a Frelimo de Samora incutia nas cabeças de todos os moçambicanos.

Nessa época, não era politicamente correcto um dirigente político ou de Estado, quer seja ministro, director nacional ou provincial ou mesmo Presidente da República, nomear seu amigo ou familiar ou ainda alguém por ser da sua tribo para exercer algum cargo. Hoje, há tribalismo e regionalismo de assustar nas instituições públicas.

A mesma Frelimo, a Frelimo de 75, sem alas a dentro, desenvolvia um trabalho político forte no seio das populações. Os discursos do Presidente Samora, dado à sua carga política e ideológica, eram objecto de estudo a nível das células do partido. Parecendo que não, isso era muito importante para despertar a consciência política no seio do cidadão e elevar os seus níveis de patriotismo.

Trinta e seis anos depois da era samoriana, as coisas mudaram radicalmente. Surgiram outras frelimos dentro da Frelimo. As frelimos de Chissano, Guebuza (hoje alas) e agora de Nyusi. Mudou a filosofia de abordagem da política. A forma de olhar para as coisas e de ser e estar na política. A forma de relacionamento entre as várias frelimos dentro da Frelimo e o povo moçambicano.

O que não se devia fazer nos tempos da Frelimo de 75 a 86 faz-se hoje, com muito gosto e naturalidade. É normal, por exemplo, um Presidente da República, um ministro, um director nacional ou provincial ou ainda presidente de um município nomear seu amigo, familiar ou alguém da sua tribo ou região para algum posto.

A outra mudança radical que se verificou é que as células do partido deixaram de ter o papel importante de educação política e patriótica dos cidadãos e transformaram-se em clubes onde alguns camaradas promovem intrigas, tráfico de influências e, sobretudo, de disputa de poder.

Nas reuniões das células são elaboradas e lidas “sentenças” contra outros camaradas sem a mínima possibilidade do contraditório, num claro abuso de poder. Infelizmente, ao invés dos camaradas privilegiarem o debate de ideias, preferem debater pessoas.

Desenham-se nomeações e exonerações de PCAs de empresas públicas. Identificam-se os que são mais camaradas do que os outros, entre dirigentes que servem ou não os seus interesses como detentores do cartão vermelho e que se acham com o direito de serem servidos.

Conta-se a história de um professor, na Macia, em Gaza, cuja nomeação para um certo cargo não ia sair porque alguém da célula disse aos outros camaradas que o visado era do MDM, ao confundir uma camisete com a imagem de David Simango com que ele foi visto com a de Daviz Simango, ex-líder do movimento. Não se tinha em conta a sua competência profissional.

Quando o general Chipande, que, por coincidência, pertenceu a todas as frelimos, incluindo a de Eduardo Mondlane, aglutinador, se queixa de tribalismo e egoísmo dentro da Frelimo significa que falhou o projecto de um Estado uno e indivisível. Um Estado sem tribalismo, regionalismo e racismo a que a Frelimo se propunha construir no país.

Falhou porque, em parte, as várias frelimos dentro da Frelimo abandonaram por completo o discurso nacionalista que embandeirava a acção política da Frelimo de 75. Os políticos de hoje acomodaram-se por completo. Têm outros interesses.

Ao que parece, estão mais preocupados em olhar para os seus umbigos do que propriamente desenvolver a política. Os seus discursos são ocos em termos político-ideológicos. Não transmitem valores e linhas políticas orientadoras ao cidadão e ao país.

Deixaram de figurar, nos discursos, palavras de ordem como “Unidade, Trabalho e Vigilância”, apesar de continuarem actuais. Deixamos de ouvir, nos comícios e reuniões dos camaradas, gritos contra o tribalismo, regionalismo, racismo, nepotismo e amiguismo porque estariam a disparar para o seu próprio pé.

Alguém já parou para pensar porque é que cidadãos de cor branca e indianos não são recrutados para o Serviço Militar Obrigatório, sendo eles moçambicanos como os outros? Será que os moçambicanos são mesmo iguais perante a lei? Gozam dos mesmos direitos e têm as mesmas obrigações? Eu acho que não. Esse é outro problema. O outro lado da história. O racismo que se manifesta de outra forma.

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