- Lei que regula a criação, organização e funcionamento das organizações sem fins lucrativos
- Conselho de ministros aprovou a Lei “sem dialogar com nenhuma associação”
- “Governo quer, a todo custo, controlar as Organizações da Sociedade Civil”
- Sociedade civil diz que “lei que regula a criação, organização e funcionamento das organizações sem fins lucrativos foi trabalhada às escondidas”
Em Setembro do corrente ano, o Conselho de Ministros aprovou a proposta de lei que regula a criação, organização e funcionamento das organizações sem fins lucrativos, com o objectivo de combater o branqueamento de capitais e o financiamento ao terrorismo, ao abrigo da qual estas devem apresentar, consecutivamente, dois relatórios de actividades à entidade responsável pelo seu reconhecimento, ou seja, o Ministério da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos. Com a proposta de lei que já foi submetida à Assembleia da República, reiteram as Organizações da Sociedade Civil, o Governo pretende controlar e silenciar as Organizações Não Governamentais (ONGs) que, para além de monitorar as suas actividades, têm despoletado escândalos de corrupção envolvendo os servidores públicos. Recentemente, reunidas num único fórum, as principais organizações da sociedade civil no país organizaram uma auscultação que vai servir de base para uma acção ampla de advocacia, e já avisam que irão lutar para que os seus direitos sejam salvaguardados.
Duarte Sitoe
Advinham-se tempos difíceis para as organizações da sociedade civil. Sob pretexto de combate ao branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo, o Governo, sem apresentar um único caso de uma ONG envolvida em tais actos atentatórios contra a integridade do Estado, acaba de aprovar uma proposta de lei que está a ser alvo de grande contextação.
É que, em caso de ser aprovado pela Assembleia da República, a proposta de lei que regula a criação, organização e funcionamento das organizações sem fins lucrativos, as Organizações da Sociedade Civil serão obrigadas, entre outras exigências, a apresentar, consecutivamente, dois relatórios de actividades à entidade responsável para o seu reconhecimento, o que de certa forma inquieta as organizações sem fins lucrativos em Moçambique.
Desta feita, depois das ocultações provinciais, várias organizações da sociedade civil, subscritoras da Campanha de Contestação a Proposta de Lei de Organizações Sem Fins Lucrativos, aprovada na 31ª Sessão do Conselho de Ministros, realizaram, no dia 14 de Outubro corrente, uma auscultação nacional com o claro objectivo de captar a percepção das associações e do público em geral sobre as implicações da presente lei, assinalar contribuições e saídas das consultas províncias, para que, com base nela, possa advogar junto aos tomadores da decisão em relação a esta matéria e adoptar o parecer jurídico, defesa e promoção do direito e da liberdade de associação em Moçambique.
De acordo com Quitéria Guirengane, do Observatório das Mulheres, em representação das organizações da sociedade civil, a proposta de lei de organizações sem fins lucrativos é inconstitucional e foi feita sem consulta pública.
“Queremos uma lei de associações que responda aos desafios que o país enfrenta no presente, mas, acima de tudo, a declaração universal dos direitos humanos, as directrizes da União Africana sobre o Direito da liberdade de associação, a carta africana dos direitos humanos, a Constituição da República de Moçambique”, sugere.
Governo quer fugir da fiscalização contra a corrupção e violação dos direitos humanos
Guirengane não tem dúvidas de que com a proposta de lei que regula a criação, organização e funcionamento das organizações sem fins lucrativos o Governo pretende fragilizar as organizações da Sociedade Civil que lutam pelos direitos humanos e contra a corrupção nas instituições públicas.
“Posso dizer que esta proposta de lei visa nos fragilizar. Não é a intenção, mas é o efeito e, em termos práticos, para as organizações o espaço é fechado. É uma lei que nunca vimos em qualquer outra paragem. Fizemos um estudo profundo da lei de branqueamento de capitais, das directivas das recomendações para o combate ao branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo e percebemos uma completa desconexão em termos de lógica entre previr o financiamento ao terrorismo, prevenir o branqueamento de capitais e instituir um controlo governamental sobre as associações”, disse Quitéria Guirengane, para depois tornar público que em nenhum momento as associações sem fins lucrativos negaram de prestar contas.
“A acção das Organizações da Sociedade Civil é incomodar em todo mundo, mas também monitorar e fiscalizar. Não é certo que as associações não querem prestar contas. Já decorre que as associações devem passar a publicar os seus relatórios de contas, se é uma questão de transparência vamos publicar as demonstrações financeiras, contudo ir entregar as contas e planos no ministério da justiça de três em três meses não garante em nenhum momento que não haja financiamento ao terrorismo e branqueamento de capitais. As medidas devem ser proporcionais aos objectivos que se pretendem alcançar, sob pena de apenas conseguirmos restringir o espaço cívico, silenciar as vozes discordantes, mas no fim não termos um resultado concreto em relação ao branqueamento de capitais”, adverte.
“Um claro sinal de ditadura em Moçambique”
Desde que Filipe Jacinto Nyusi chegou à Ponta Vermelha, Moçambique decidiu seguir os passos da Coreia do Norte e restringir uma série de direitos e liberdades, com destaque, ou seja, as únicas manifestações que tem luz verde são da Organização da Juventude Moçambicana (OJM), braço juvenil do partido no poder, para saudar os feitos do Presidente da República e da Frelimo.
Para Quitéria Guirengane, a proposta de lei que regula a criação, organização e funcionamento das organizações sem fins lucrativos é um claro sinal de que o Governo quer instaurar a ditadura em Moçambique.
“É preciso salvaguardarmos para que Moçambique não tenha uma ditadura assumida. Não sei se é uma questão de voltar ou uma situação que já estamos a viver. Entretanto, a verdade é que os direitos humanos que se conquistam também se perdem. Temos que fazer um esforço muito grande para salvaguardar que o direito à liberdade de associação, o direito à liberdade de reunião e manifestação não seja perdido, porque não são as organizações que perdem, o Governo vai também perder”, sublinhou.
A activista social não tem dúvidas de que em Moçambique vive-se uma ditadura, em que para além do governo se sobrepor sobre os outros poderes, tende a limitar ainda mais o espaço democrático.
“Estamos a viver uma ditadura a partir de um momento que o conselho de ministros aprovou uma lei das associações sem dialogar sequer com nenhuma associação. As nossas acções não vão terminar aqui, vamos dialogar com as instituições e salvaguardar que essa lei não entre na Assembleia da República”, defende.
“O Governo quer, a todo custo, controlar as Organizações da Sociedade Civil”
Por sua vez, Ivan Maússe, pesquisador do Centro de Integridade Pública, entende que o Governo sempre comete o mesmo erro de urdir leis sem antes promover um debate amplo e sério, que contribui para que as mesmas sejam deficientes.
“Infelizmente, em Moçambique, as leis são feitas e só depois é que vão ao debate público. Desta vez, é uma lei que mexe com as Organizações da Sociedade Civil, que tem sido muito importante naquilo que é a fiscalização e monitoria das actividades feitas pelo Governo, bem como na divulgação de alguns trabalhos de interesse social. Esperamos que através deste debate possamos colher as melhores contribuições com vista a melhorar essa proposta. Esse trabalho deve ser feito urgentemente, porque sabemos que em Moçambique as leis são feitas com muita pressa e isso contribui para que as mesmas tenham deficiência”, anotou.
Maússe refere ainda que os discursos das lideranças políticas em Moçambique mostram algum desconforto em relação aos trabalhos que estão a ser feitos pelas Organizações da Sociedade Civil e a proposta de lei que regula a criação, organização e funcionamento das organizações sem fins lucrativos é uma tentativa de cortar as pernas as mesmas.
“Sabemos que, em Moçambique, larga parte do aparelho do Estado está viciado, sabemos que as instituições da justiça em Moçambique estão viciadas, não fazem o seu devido trabalho por conta da ingerência política. Então, o trabalho que muitas vezes poderia caber a esta instituição acaba estando por égide das organizações da sociedade civil e isso incomoda os dirigentes. As Organizações da Sociedade Civil sempre vão incomodar a governação do dia e nós achamos que essa proposta de lei, da maneira que está desenhada, claramente, vem para cortar as pernas às organizações. O Governo quer, a todo custo, controlar as organizações”.
Quem também estava completamente revoltada com a proposta é Mirna Chitsungo da ActionAid, que prevê momentos sombrios para as organizações da sociedade civil, caso o anteprojecto seja aprovado no espírito e na letra.
“Na nossa forma de actuação precisamos ter todas as liberdades possíveis, não temos como trabalhar de forma livre sabendo que não enviamos dois relatórios consecutivos de actividades, podemos ser extintos. Estamos aqui para analisar esses pontos e ver o que podemos fazer para derrubar esses artigos que não estão em conformidade com a lei. Na verdade, o Governo tem estado a minar as nossas actividades e isso não é de hoje”, denunciou.
Chitsungo entende que, o Executivo, ao mobilizar um forte contingente policial quando as organizações da sociedade civil se fazem a rua é um claro exemplo de minar o trabalho daqueles que vigiam as suas acções, aqueles que lutam contra a corrupção e diferentes atrocidades que não beneficiam o povo.
Prosseguindo, o representante da ActionAid referiu que as organizações da sociedade estão unidas para reverter a lei que foi trabalhada às escondidas.
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