O que a pandemia (não) tem ensinado

OPINIÃO

Luca Bussotti

Um processo de remoção colectiva. É assim que pode ser definida a postura de governantes e cidadãos, um pouco por todo o mundo, diante do abrandamento (porque ainda não se pode falar de fim) da pandemia da Covid-19. Para alguns, este fenómeno pode ter sido um castigo divino, para outros a natureza que revoltou-se contra as manipulações que dele o homem está a fazer nos últimos tempos, para outro segmento da população uma conspiração, para outros um erro laboratorial… Em suma, uma série de explicações mais ou menos racionais, que recordam muito de perto o que se fazia nos séculos escuros da peste europeia, quer em 1300, quer em 1600, quando os “autores” que supostamente espalhavam o terrível morbo eram capturados, torturados e queimados, como se deles dependesse a pandemia.

Nada disso aconteceu no caso da Covid-19… Vários séculos passaram e as coisas mudaram, entretanto – poucos meses depois de a pandemia ter diminuído os seus efeitos –, parece que a vida voltou ao normal, e que nenhum ensinamento assinalável foi deixado como legado pela gestão desta doença.

Com efeito, se o processo de remoção colectiva dela está sendo generalizado, no debate político ela desapareceu, mesmo naqueles países que já tiveram campanhas para realizar as suas eleições. Os dois casos provavelmente mais gritantes são Itália e Brasil. A Itália foi o primeiro grande país ocidental a contabilizar centenas de mortos por dia logo no início de 2020. E o governo italiano, mediante o seu ministro da saúde, Roberto Speranza, assumiu um posicionamento firme diante da pandemia: fechamento de todas as estruturas públicas (salvo hospitais, obviamente), implementação de um programa de smart-working e e-learning, fundos de apoio para as actividades privadas entradas em crise, máxima prudência nas movimentações necessárias, com uso de máscara facial e distribuição gratuita de vacinas, logo que elas foram disponíveis no mercado. Óbvio que houve algum excesso, mas a ideia básica – salvaguardar as vidas humanas – foi tida como exemplo de gestão de um fenómeno de que ninguém estava à espera. Por outro lado, a oposição da direita italiana – desde o partido da actual primeira-ministra, Meloni, até a Liga de Salvini – teve um posicionamento ambíguo, nunca se sabendo se estava a favor ou contra as medidas do governo, alimentando um movimento bastante vasto de “no-vax”, contrários à campanha de vacinação contra a covid-19. A mesma postura céptica para com as vacinas foi defendida por outros expoentes da direita, tais como Trump e Bolsonaro.

Justamente no Brasil, Bolsonaro, repetidas vezes, definiu a covid-19 como sendo uma “gripezinha”. Ele atrasou a compra das vacinas, que em muitos casos foram adquiridas directamente por parte dos Estados (Brasil é um país federal), contribuindo (têm mais de 100 processos contra a ele para esta postura) ao agravamento da situação pandémica do Brasil. O país foi colocado na blacklist de todos os países ocidentais, e o cômputo dos mortos foi terrível, com até 5000 falecidos por dia devido à covid ou a complicações derivantes dela.

Quer no caso italiano, quer no caso brasileiro, as campanhas eleitorais que acabam de se realizar não tiveram a gestão da covid como elemento central; aliás, se no Brasil Lula recordou em algumas ocasiões o quanto Bolsonaro foi irresponsável na gestão da pandemia, na Itália praticamente nenhum partido levantou a questão, a não ser para declarar o que irá fazer no caso em que, futuramente, um fenómeno similar volte a se apresentar. Posicionamentos que estão a adquirir uma clareza ainda maior nestes últimos dias, em que Giorgia Meloni já formou o seu governo e começou a dar as primeiras dicas daquilo que fará. Um dos pontos toca a pandemia e a sua gestão (passada e futura). Acima de tudo, Meloni vai abrir uma comissão de inquérito contra o governo anterior e o ministro Speranza, devido aos supostos erros e às violações dos direitos relacionados com as medidas rigorosas adoptadas. A ideia é culpabilizar Speranza e o então primeiro-ministro, Conte, por ter adoptado medidas demasiadamente restritivas, que teriam colocado em risco a economia de milhões de italianos. O segundo ponto tem a ver com o futuro: Meloni declarou que nunca mais, nem em caso extremo, irá adoptar medidas de restrição máxima da liberdade de movimento das pessoas para salvar suas vidas. Em suma, se um fenómeno parecido ao da covid-19 irá voltar, a ideia é de que cada um cuide da sua saúde, sem que sejam tomadas medidas colectivas de saúde pública.

Nos dois casos acima citados, Itália e Brasil, os ensinamentos derivantes da gestão da pandemia poderiam ser inúmeros, e muito além de comissões de inquérito (que talvez o próprio Lula fará no Brasil contra a postura de Bolsonaro, num sentido oposto ao que se fará na Itália) contra os governos anteriores. Acima de tudo, o desmantelamento do sistema público de saúde – em proporções diferentes na Itália e no Brasil, mas presente nos dois países – foi um erro gravíssimo da vaga de neoliberalismo que tocou muita parte da Europa e da América Latina. Pensar (mais no caso italiano) de as famílias se livrarem dos seus idosos, colocando-os em asilos a pagamento geridos por privados, ao invés de construir uma rede de assistência socio-sanitária no território foi o principal elemento que contribuiu à eliminação, mediante a difusão da covid-19, de uma geração inteira de pessoas, as mais velhas e que melhor conservavam a memória colectiva de uma nação e de um povo. Em segundo lugar, e consequentemente (sobretudo no Brasil) hospitais públicos reduzidos a meras estruturas físicas, sem materiais essenciais para o tratamento dos doentes, tais como o oxigénio, resultaram no fracasso de todo o sistema de saúde, e na impotência dos médicos diante desta tragédia. Finalmente, a opinião pública dos dois países (e provavelmente do mundo) deparou-se imediatamente com o agravamento da situação económica derivante da guerra russo-ucraniana, esquecendo a pandemia e suas nefastas consequências. Por isso, provavelmente, este assunto foi removido das campanhas eleitorais dos dois países, como foi feito com a pandemia anterior, a influenza espanhola de 1919-20, de que podia-se ter aprendido muita coisa, mas que foi também removida, sem ter deixado nenhuma lição positiva a ser replicada hoje, cem anos depois.

Se a política, compreensivelmente, mas não justificadamente, tem uma pauta cada vez mais virada para o imediatismo, quem trabalha para ajudar a sociedade a reflectir (académicos, jornalistas, observadores) deveria chamar a atenção sobre os pontos rapidamente aqui arrolados: caso contrário, a próxima vez (que poderá não ser tão longe como se pensa) a humanidade terá de começar tudo de zero, com uma gestão ainda mais episódica e desordenada, e com ainda mais mortos que não nesta pandemia de covid-19.

Facebook Comments