Apenas 16 milhões (53%) dos moçambicanos estão em situação de segurança alimentar

SOCIEDADE
  • Apenas 16 milhões (53%) dos moçambicanos estão em situação de segurança alimentar
  • Estudo sobre Segurança alimentar diz que 90% conseguem comer para se manterem em pé
  • Celso Correia insiste que os moçambicanos “conseguem” três refeições por dia
  • “Só não comem por causa dos seus hábitos alimentares” – atira super-ministro
  • Desculpas do ministro deixam o próprio FDC perplexo

Sala repleta. Homens e Mulheres, desde adolescentes a adultos, entre esclarecidos e até camponeses. Um ministro vestindo a sua típica camisa verde militar que virou seu principal adereço quando vai confirmar vitórias nas suas campanhas de média. Chama atenção a arrumação da sala, com uma plateia composta por insuspeitos analistas, jornalistas e políticos softs na parte frontal do auditório da Arena 3D na Catembe. Parece uma plateia combinada à moda da Gestapo nos tempos áureos da propaganda de Hitler, mas surpresas estavam para o fim. Não demora, o ministro Celso Correia coloca-se à frente e lê o relatório. Os números são claros. Nada que confirme de forma explícita as três refeições por dia. O Estudo fala de cerca de 90% da população moçambicana teve uma dieta aceitável para satisfazer as suas necessidades diárias de energia no período pós-colheita, ou seja, o suficiente para se manterem em pé. Mas não pára por aí. É esclarecedor, somente 16.026.000 de pessoas é que se encontram em situação clara de Segurança Alimentar, o que corresponde a cerca de 53 porcento da população moçambicana. A dúvida sobre as três refeições paira depois da apresentação do estudo, mas o ministro mostra-se pronto com trocadilhos como veremos a seguir.

Reginaldo Tchambule e Duarte Sitoe

Na passada quarta-feira à saída da Arena 3D na Ka-Tembe, o ministro da Agricultura e Desenvolvimento Rural era dos mais leves e felizes homens no País. Não era para menos. Afinal, acabava de “driblar” um auditório e humilhar, com direito a um insólito pedido de desculpas, a uma das mais reputadas organizações da Sociedade Civil no País, a Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC).

Arrancou aplausos e “vuvuzeladas” numa plateia montada à sua imagem, mesmo quando não se dignasse a responder as perguntas da plateia e simplesmente se socorresse do humor e ironia para “fugir” com alguma mestria.

Na apresentação do Estudo, começou por apresentar a metodologia usada para a produção do Relatório de Segurança Alimentar no País e em dezenas de países no mundo. Chama-se IPC, um instrumento que usa um conjunto de ferramentas e procedimentos para classificar a gravidade e as características de crises alimentares e de nutrição agudas, bem como a insegurança alimentar crónica, com base em padrões internacionais.

A metodologia, segundo o ministro, classifica a Insegurança Alimentar Aguda (InSAA) em 5 fases. Sendo que na FASE 1 as pessoas conseguem satisfazer as necessidades essenciais alimentares e não alimentares sem recorrer a estratégias atípicas e insustentáveis. Na FASE 2, considerada de stress, os agregados familiares têm um consumo alimentar mínimo adequado, mas não dispõe de meios para responder a algumas despesas essenciais.

Já na FASE 3, considerada de crise, as pessoas passam por faltas de consumo alimentar demonstradas por desnutrição aguda elevada ou acima do normal. Na FASE 4, de emergência, as pessoas passam períodos longos de falta de consumo de alimentos demonstrados por uma desnutrição aguda muito elevada e excesso de mortalidade. Por seu turno. Na FASE 5, considerada catástrofe, as pessoas sofrem uma falta extrema de alimentos e/ou de outras necessidades básicas, mesmo após utilizarem todas as estratégias de resposta a crises.

Ainda na metodologia, Celso Correia apresentou o dado que viria a mudar o rumo do debate. Afinal, os dados apresentados pelo Estudo foram colhidos durante o período pós-colheita, abrangendo uma amostra de 12.890 agregados familiares, ou seja, correspondente a menos de um porcento da população moçambicana. Este aspecto foi problematizado durante a discussão pelo deputado Venâncio Mondlane.

Apenas 53 porcento dos moçambicanos estão em segurança alimentar

Durante a apresentação do estudo sobre a segurança alimentar em Moçambique, a maior expectativa dos moçambicanos era perceber de que forma se encaixam as três refeições no Estudo. Para a surpresa de todos, em nenhuma linha o Estudo feito pelo Secretariado Técnico de Segurança Alimentar e Nutricional (SETSAN) em parceria com parceiros internacionais, há referência das três refeições por dia.

“No período em análise, não houve registo de pessoas no nível 5 (catástrofe/fome). Cerca de 958.600 pessoas encontram-se no nível 4 (emergência) e necessitam de assistência alimentar”, anuncia a boa nova o ministro Celso Correia, para depois aprofundar que, afinal, “2.188.000 pessoas em Situação de Crise, na dita FASE 3, enquanto 12.974.000 pessoas estão em Situação de Stress na FASE 2”.

Mas a maior surpresa de todos ainda estava por vir. Afinal, somente “16.026.000 pessoas estão numa situação de Segurança Alimentar, o que corresponde a FASE 1”. Contas feitas pelo Evidências, mostram que são cerca de 53 porcento as pessoas em situação alimentar considerada segura.

Em relação aos 90% apresentados em Roma pelo ministro, mais um dado curioso. O estudo fala somente de “cerca de 90% da população moçambicana teve uma dieta aceitável para satisfazer as suas necessidades diárias de energia no período pós-colheita”, ou seja, tiveram o que comer, pelo menos, para se manterem de pé.

“Em Moçambique, 38% da população consegue satisfazer as suas necessidades alimentares mínimas, mas tem de recorrer a estratégias de sobrevivência para suprir as suas necessidades não alimentares (stress). Enquanto isso, cerca de 10% da população moçambicana analisada está em insegurança alimentar aguda em níveis de crise e emergência”, disse o ministro acrescentando que “no período em análise, registou-se uma redução na proporção de pessoas que enfrentaram níveis de insegurança alimentar aguda (IPC3 ou superior) de 13% em 2022 para 10% em 2023”.

“… conseguem três refeições, só não comem por causa dos hábitos alimentares”

A pergunta com mais insistência na sala, feita sobretudo por alguns insuspeitos, foi sobre as suas declarações à margem do encontro que manteve com o director-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) em que declarou que 90% dos moçambicanos tem três refeições por dia.

Respondendo, muitas vezes recorrendo ao humor, trocadilhos e ironia, o governante mudou o discurso. Disse que “não disse que os moçambicanos tem três refeições, mas sim que conseguem, só não comem três vezes por dia por causa dos seus hábitos alimentares”.

“Há muita gente que não tem, tivemos um deputado na Assembleia da República que sabemos que tem bom rendimento, mas não tem. Aqui na sala muitos tem rendimento para três refeições, mas não tem por causa dos seus hábitos alimentares e sua dieta, sendo que muitos não usam o que tem. É por isso que na afirmação a gente acrescentou melhorar a sua dieta e ter mais estabilidade porque 40% não tem estabilidade, 50% tem”, disse o ministro, para depois dizer que pensou em pedir desculpas, mas foi aconselhado a não fazê-lo porque isso iria virar um lema.

O governante não tem dúvidas de que Moçambique está num bom caminho e deve ser corajoso para alcançar a independência alimentar,

“Acho que estamos no caminho no caminho certo no que diz respeito à segurança alimentar, acho que estamos no caminho certo porque não temos todo o problema resolvido. De longe temos muito que fazer, mas quando todos indicadores começam a indicar o caminho, nós estamos no caminho certo. A nossa independência alimentar vai precisar de coragem”, referiu para depois deixar uma bicada ao ocidente.

“Você moçambicano não tem capacidade de gerir o seu próprio dinheiro. Ficaste 45 sem ter receitas, mas quando chegam as receitas já és corrupto. Tiveram 500 para cometer os seus erros, mas quando chega a nossa vez querem gerir até o nosso próprio dinheiro”, atacou.

“Não contem comigo para perpetuar a indústria da fome e da pobreza”

Mostrando não ter engolido a seco a reacção da sociedade civil às suas declarações em Roma sobre as três refeições, Celso Correia saiu em contra-ataque referindo que o FDC pretende projectar um País de miséria para mobilizar recursos. No momento de grande calor, rematou “não contem comigo para perpetuar a indústria da fome e da pobreza”.

No entender do ministro, o FDC fez uma crítica técnica e juízo do valor, adiantando que a mesma equivocou-se quando falou dos dados da desnutrição crónica, uma vez que falou de 42,3 ao invés dos 38%, tornados públicos pela IOF, ou seja, o FDC comparou dados da pobreza e dados alimentares.

É muito difícil comparar. Não aconselhamos a comprar dados da pobreza e dados alimentares. Não quero dizer que não tenha ligação, mas, por exemplo, no estudo de 2013 em Moçambique tínhamos indicação de 23% da população que estava em segurança alimentar crónica, mas os dados da pobreza indicavam 53 ou 54% da pobreza e depois não descreve que tipo de pobreza que está a falar porque existe pobreza alimentar que é esta que estamos a falar, existe pobreza de rendimento e existe pobreza multidimensional e cada pobreza tem a sua definição”, explicou.

O Fundo para o Desenvolvimento da Comunidade apoiou-se nos dados avançados pela IOF 2019/20, que apontam que o grosso dos moçambicanos gasta cerca de 56,5 meticais por dia, e na situação do terrorismo na província de Cabo Delgado para concluir que é impossível 90% dos moçambicanos conseguir três refeições por dia. O super – ministro do Governo de Filipe Nyusi justificou que o grosso dos moçambicanos consome o que produz e jurou de pês juntos que nunca lançou um programa denominado “Fome Zero”.

“A maior parte da população não usa rendimento para se alimentar, usa o que produz. Em Moçambique, pelo menos o meu ministério de tutela, não lançou nenhum programa Fome Zero. A Fome Zero é um indicador da ODS. Portanto, os programas que nós lançamos, lançamos um plano estratégico e temos um programa de integração da agricultura familiar e cadeias de valor, não tem nenhum programa denominado Fome Zero”, rebateu.

Ainda no contra – ataque, o governante acusou a FDC de vender “uma narrativa de que provavelmente que o ministro não tem sensibilidade dos problemas reais do País e que está indiferente ao sofrimento que das pessoas”, tendo igualmente considerado que a mesma induziu um debate que criou alguns problemas.

Numa outra abordagem, o ministro da Agricultura de Desenvolvimento referiu que as organizações da sociedade estão a par dos programas que estão a ser implementados no sector da agriculta, advertindo que Moçambique não pode continuar a ser laboratório de experiências.

Embora esta questão tenha dominado o debate, houve outras questões sobre o estágio da agricultura no País, a segurança alimentar, entre outras contudo, o ministro procurou sempre esquivar, muitas vezes ironizando e ou usando o humor. Pelo meio uma e outra intervenção de algumas pessoas, incluindo da oposição, para saudar o ministro e por vezes vincando a fiabilidade dos números, o que levou a desconfiança de que podia se tratar de uma plateia meticulosamente montada para fazer sala para o ministro.

De resto, o momento mais hilário estava por vir. O representante do FDC tornou-se objecto de gozação da sala, depois de pedir “desculpas ao ministro Celso Correia se se sentiu ofendido”. Antes havia reconhecido que o FDC pode não ter sido feliz na sua abordagem sob ponto de vista de abordagem usada na sua carta. Evidências sabe que a posição daquele representante não é consensual e nem sequer caiu bem dentro da organização dirigida por Graça Machel.

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