“Quando o Governo não tem argumentos fica mais fácil culpar a mão externa”

DESTAQUE SOCIEDADE
  • Professor Simango rebate tese de ONGS estrangeiras financiarem as manifestações
  • “Posicionamento das FDS é por influência da Frelimo para desvalorizar manifestações”
  • “O que se assiste hoje já era previsível, apenas faltava um líder”
  • “A solução para as manifestações é política e não jurídica”

Recentemente, o Governo, através do Ministério do Interior, denunciou uma suposta ingerência externa de Organizações Não-governamentais (ONGs) estrangeiras serem apontadas como financiadores das manifestações. Este argumento não convence, de todo, o académico moçambicano Samuel Simango, para quem o pronunciamento das Forças de Defesa e Segurança (FDS) deve-se à falta de argumentos para justificar ou contrapor uma determinada realidade, neste caso os protestos que se assistem no país em reivindicação contra os resultados eleitorais e má governação. Aliás, Simango entende que há uma tentativa do Governo e da Frelimo de desvalorizar as manifestações, para esconder os problemas estruturais de governação que as originaram, até porque “o que se assiste hoje já era previsível, apenas faltava um líder”.

Elísio Nuvunga

Desde o dia 21 de Outubro até nos dias que correm, Moçambique assiste a uma escalada de tensão devido às manifestações convocadas pelo candidato presidencial suportado pelo Partido Optimista pelo Desenvolvimento de Moçambique (PODEMOS), Venâncio Mondlane.

Tais manifestações, fortemente aderidas por jovens, sobretudo nas cidades de Maputo e Matola, muitas vezes têm motivado uma actuação abusiva por parte da polícia, o que resultou perto de uma centena de mortos e centenas de feridos. Mas também há casos de vandalização e saque de bens públicos e privados, gerando enormes prejuízos.

Apesar do nível avassalador de adesão destas manifestações, desde o início, o governo se recusa a assumir que as pessoas estão nas ruas por causa da má governação, sobretudo dos últimos anos. No início, culpava Venâncio Mondlane pela convocação dos protestos, mas agora, vai para além disso. Culpa organizações da sociedade civil estrangeiras, com apoio de nacionais, de estarem a financiar os distúrbios com fim único de desacreditar o Governo da Frelimo.

Esta narrativa foi apresentada pelo vice-comandante geral da PRM, Fernando Tsucana, para quem “estas manifestações estão a ser financiadas por organizações da sociedade civil e pessoas singulares, nacionais e estrangeiros de má-fé, com intenção de perpetuar o caos e subverter a ordem no país”.

Entretanto, este argumento não convence ao professor universitário e comentador de política Samuel Simango, para quem este argumento é resultado de falta de argumentos, por parte do governo, face às manifestações que a cada dia registam uma escalada.

“Esta narrativa não é de hoje. Durante a luta pela libertação nacional o governo português tinha essa narrativa de que a FRELIMO não é genuína representante dos moçambicanos; que a FRELIMO não estava a lutar pela independência de Moçambique, mas sim era um instrumento dos chineses, era instrumento dos soviéticos, era instrumento dos coreanos. Normalmente os Estados quando não tem argumentos para contrapor uma determinada realidade que todos conhecem fica mais fácil endossarem a culpa a responsabilidade a mão externa”, explicou.

Para sustentar o seu argumento, o acadêmico recordou que em vários momentos da história do país, sempre que o Governo não encontrasse solução para um certo problema, embandeirava no discurso de “mão externa”.

“Não é a primeira experiência que nós temos. Isso aconteceu também quando a RENAMO iniciou a sua luta, até aos acordos oficiais do país, o discurso era de que a RENAMO não tinha ideias, não tinha dirigentes, não tinha cabeça e que era apenas um prolongamento do regime de ´Ian Smith´ e mais da tarde da África do Sul’”, referiu.

“Posicionamento das FDS é por influência da Frelimo para desvalorizar manifestações”

Para Simango, o posicionamento das FDS deve-se por outro lado pela influência do partido dominante com finalidade última de desvalorizar as próprias manifestações.

“Eu acho que o que as Forças de Defesa e Segurança o que estão a fazer ao emitir este posicionamento é mostrar que estão alinhadas a Comissão política da FRELIMO. As forças de Defesa e Segurança neste momento obedecem ao comando do governo e o governo por sua vez recebe o comando do partido FRELIMO. Portanto me parece que é apenas o seguimento da ideia que se quer dar sobre as manifestações, de que elas não só são legítimas elas não trazem a tona dos problemas que o país tem”, rebateu o acadêmico.

Segundo ele, à medida que são desvalorizadas as manifestações, vende-se a ideia de que o país está estável e o único problema são as organizações não-governamentais e a sociedade civil a criarem caos no país.

“Há uma ideia da parte das Forças de Defesa e Segurança de que o país está bem, não tem problemas de fome, o país não tem problema de educação, o país não tem problema de desnutrição e que tudo isso está bem. Portanto, o que não está bem são as pessoas que se estão a se instrumentalizar pelas organizações da sociedade civil e as Organizações não-governamentais estrangeiras”, ironizou.

“Esse argumento vai acontecer sempre quando não há argumentos para convencer as pessoas”

O discurso das FDS é ecoado em todo canto pelos quadros seniores da FRELIMO que defendem que as manifestações não são “genuínas”, por isso defendem a ideia de que, de facto as manifestações não são do interesse dos moçambicanos, mas sim dos estrangeiros.

No entender de Samuel Simango, é mais fácil responsabilizar a famosa mão externa pelos problemas, mesmo quando se trata de assuntos domésticos. No caso em concreto, entende o acadêmico, há mais possibilidades de se apontar mais financiadores para justificar o caos que se intensifica a cada dia, muito mais pelo cenário urbano festivo que se assiste em alguns pontos do país nas estradas, por isso todas narrativas visam “amainar as manifestações”.

“Esse discurso vai acontecer sempre quando o argumento para convencer as pessoas não é um argumento forte e não me admira agora, que se acuse a Holanda e Suécia, de estarem a financiar as manifestações de tal forma que se diz, inclusive, que aquelas comidas preparadas nas ruas são financiadas por essas organizações. Como se de facto as pessoas nas suas casas não podem ter um quilo de farinha para fazerem aquela demostração”, considerou.

“O que está falhar para o diálogo é uma resposta política e não jurídica”

A primeira tentativa para o estabelecimento do diálogo, falhou. Para o académico o fracasso deveu-se a uma má leitura do Governo que não compreendeu que a resposta para travar as manifestações jaze na política e não necessariamente na ala jurídica.

“O que está a falhar para o diálogo é uma resposta política e não jurídica. A solução para as manifestações é política. Neste momento ainda não apareceu ninguém do Estado a reconhecer que os manifestantes têm as suas razões para se manifestarem”, criticou Simango.

Para o acadêmico, as reivindicações dos manifestantes vão para além de simples “zanga” devido a alegada fraude ou busca pela reposição dos resultados eleitorais, mas sim, resultam de um sentimento comum de injustiça e má governação.

“Como pode ver ao invés de aparecer os líderes políticos a aceitarem que há uma certa dose de razão por parte dos manifestantes. O que os manifestantes exibem nos cartazes são realidades que cada um de nós vive. Quando nós vemos os manifestantes a falarem de salas sem carteiras é uma realidade, quando falam de hospitais sem medicamentos, quando falam da greve silenciosa dos professores e médicos. Está a faltar por parte da política governante alguma humildade para reconhecer a situação catastrófica que os pobres vivem. Estes pobres também colocam uma questão muito importante que é a riqueza está concentrada em poucas famílias dificilmente estas famílias a vão satisfazer todo o povo”, observou.

“Os manifestantes estavam à espera de um líder”

Para o académico, as manifestações protagonizadas pelo povo são justas porque os dísticos e cânticos dos manifestantes reflectem a realidade de Moçambique, desde o desemprego, degradação e precariedade da educação, saúde e diversos, pelo que, a seu ver, o que se assiste hoje já era previsível, apenas faltava um líder para guiar o povo saturado de descontentamento e, o tal líder apareceu. É, segundo ele, Venâncio Mondlane.

“A causa principal neste momento são as eleições mas, o país já vive problemas sérios que a qualquer momento podiam dar nisto. Podiam não dar como estão a dar agora porque apareceu um homem chamado Venâncio Mondlane que conseguiu capitalizar esta realidade que os moçambicanos. Os manifestantes estavam à espera de um líder e este líder e este líder apareceu que é Venâncio Mondlane”, apontou.

Em linhas gerais a revolta e o descontentamento não é só daqueles que estão empobrecidos, Também têm a classe média, os funcionários do estado, abrange as forças de Defesa e Segurança porque “já vimos polícia e militares a reclamar da sua situação”.

Por conta da gravidade da razão das manifestações, as ondas de protestos “entraram em universidades porque quando os estudantes concluem seus cursos por quatro cinco anos não tem emprego, então preferem exteriorizar seus descontentamentos e fazer eco a liderança do Venâncio Mondlane do que o presidente legítimo”.

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