Homens continuam a fugir do rastreio por medo de toque no ânus

DESTAQUE SAÚDE
  • Mais de 50% dos casos de cancro da próstata são diagnosticados em estágios avançados
  • Psicólogo defende que homens devem ser educados desde a mocidade sobre o cancro de próstata

O cancro de próstata é uma das doenças mais comuns entre os homens e, ao mesmo tempo, uma das mais silenciosas e carregadas de estigma. Em Moçambique, as estatísticas mostram um quadro preocupante, sendo que 70% dos casos são diagnosticados em estágios avançados, por sinal quando as opções de tratamento já são limitadas. A doença, que é a segunda maior causa de morte por câncer entre os homens no mundo, tem como principal inimigo a falta de informação e a resistência cultural aos exames preventivos. Nesta edição, o Evidências traz histórias de luta, dor e superação que revelam não apenas os desafios médicos, mas também os emocionais e culturais enfrentados pelos pacientes.

Luísa Muhambe

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que cancro de próstata representa cerca de 15% de todos os diagnósticos de cancro em homens. Apesar de ser altamente tratável nos estágios iniciais, em Moçambique muitos homens ainda enfrentam dificuldades no diagnóstico precoce devido a estereótipos, desinformação e acesso limitado a serviços de saúde especializados.

Em Moçambique, estima-se que a maioria dos casos de cancro de próstata seja diagnosticada em estágios avançados, ou seja, quando as possibilidades de tratamento bem-sucedido diminuem.

Dados do Ministério da Saúde apontam que cerca de 70% dos homens com problemas prostáticos só procuram cuidados médicos quando os sintomas estão avançados. Além disso, globalmente, o cancro de próstata tem maior incidência em homens negros e em pessoas com histórico familiar da doença.

Hélio Langa, médico fito terapeuta com vasta experiência, falando recentemente em uma palestra sobre a prevenção do cancro da próstata, alertou para o facto de que, na maioria dos casos, as doenças da próstata são assintomáticas durante anos.

“É possível viver com um problema na próstata por 10 anos sem perceber. 70% das doenças no organismo não têm sinais, e o câncer de próstata é uma delas. Por isso, precisamos fazer exames preventivos regularmente, mesmo sem sentir sintomas. A melhor forma de tratar é a prevenção”, declarou, Langa

Segundo o especialista, o cancro da próstata pode causar sintomas como dificuldade para urinar, jato urinário fraco, necessidade frequente de urinar à noite, dor na parte inferior das costas e, em casos mais avançados, presença de sangue na urina. No entanto, enfatiza que esses sinais só aparecem quando a doença já está avançada.

“A próstata inflamada pode comprimir o tubo urinário, causando retenção urinária. Nos casos mais graves, o câncer pode levar à infertilidade e até à impotência sexual. Esses problemas afectam não apenas o corpo, mas também o emocional e os relacionamentos”.

Homens continuam a fugir do rastreio por medo de toque no ânus

As histórias de homens diagnosticados com cancro de próstata que contadas a seguir revelam um padrão comum: a demora em buscar ajuda médica, motivada pelo medo do diagnóstico e pelo preconceito associado aos exames.

Armando Matos, de 60 anos de idade, conta que o seu maior medo era o exame de toque no ânus, nunca lhe passou pela cabeça que para salvar a sua vida teria que passar por algo tão evasivo.

“Eu nunca me preocupei em fazer exames. Sempre pensei que era saudável, que nada disso ia me atingir. Mas, um dia, percebi que algo estava errado. Eu ia ao banheiro e não conseguia urinar como antes. O fluxo estava fraco, e a sensação de alívio nunca vinha. Minha esposa insistiu muito para eu ir ao médico. Relutei, mas fui. Quando o médico pediu o exame e o toque retal, quase desisti. Eu tinha medo, vergonha. Pensava: ‘Isso não é coisa para homem’.  Mas, quando os resultados vieram, foi como se o chão tivesse desaparecido: era câncer. Eu me perguntei: ‘Por que eu?’. Pensei nos meus filhos, que já tinham suas vidas, mas, principalmente, pensei na minha esposa. E se ela ficasse sozinha? Eu sou o homem da casa, cuido dela. Quem cuidaria se eu não estivesse aqui?’’

A relutância e o preconceito quase lhe custaram a vida e hoje compreende a importância que cuidar de melhor de si. ‘‘Fiz o tratamento e hoje levo uma vida normal. Mas aprendi uma lição: o preconceito quase me custou a vida. Todos os homens precisam fazer os exames de rastreio regularmente. Cuidar da saúde não diminui a masculinidade de ninguém. Pelo contrário, é um ato de coragem.”

João Dimas,de  57 anos de idade, é outro que quase perdeu a vida por banalizar os sinais de alerta que o seu corpo constantemente lhe dava. “Comecei a sentir dificuldades para urinar. Era como se algo estivesse a bloquear. Mas, em vez de procurar ajuda, decidi esperar. Achei que era só uma dor que ia passar. E assim passaram dois anos. O problema só piorava, mas eu tinha medo. Medo de descobrir que era algo grave. Eu era o sustento da minha família, não podia mostrar fraqueza”, contou.

Os especialistas advertem que o cancro de próstata não é uma sentença de morte, visto que com diagnóstico precoce e tratamento adequado, a taxa de sobrevivência é alta. Entretanto, para isso, é preciso romper o silêncio, superar o medo e deixar de lado os preconceitos e no caso de Dimas, mais uma pequena demora teria sido fatal.

‘‘Adiei muito minha ida ao médico e quando decidi procurar ajuda já era tarde. O cancro estava lá. Senti que tinha falhado com a minha família. E se eu morresse? Como eles iam sobreviver sem mim? Fiz a cirurgia, e graças a Deus correu tudo bem. Mas não consigo esquecer o medo que senti. Eu quase perdi minha vida por causa de descuido,” desabafou.

Psicólogo defende que homens devem ser educados desde a mocidade

Paulo Massango, psicólogo, aborda com profundidade os efeitos psicológicos do diagnóstico de câncer de próstata, destacando que o impacto emocional e psicológico da doença é frequentemente subestimado. Ele observa que a reacção inicial de muitos pacientes é negação do diagnóstico, um mecanismo de defesa comum que pode levar a sérios problemas.

“O primeiro passo é negação, ao contrário de doenças como a malária, o câncer de próstata traz um estigma que afecta profundamente a identidade do homem. Esse medo, pode afectar o seu estado emocional, o seu estado psicológico e automaticamente esse indivíduo pode estar debilitado fisicamente, o diagnóstico de cancro pode levar a uma perda significativa de qualidade de vida, tanto na área profissional quanto na área familiar, pois ele vai se sentir já sem poder, sem ter a mesma força como o pai de família”. Reforça.

Massango também enfatiza a resistência cultural ao diagnóstico e ao tratamento. Para ele, ‘‘os homens frequentemente associam o exame de toque retal à perda de masculinidade e isso cria uma barreira significativa. Nenhum homem aceita nesse sentido”, ele explica, indicando que, devido às expectativas culturais e sociais sobre a masculinidade, o exame se torna visto como algo humilhante, algo que desafia a percepção de ser um homem.

O psicólogo explica ainda que a educação cultural impõe que os homens sejam fortes e não se permitam vulneráveis. “Nós educamos o homem a ser forte e a ser machista. Essa visão distorcida de masculinidade impede muitos homens de se submeterem ao rastreamento adequado, o que retarda a detecção e o tratamento precoce’’

O psicólogo também toca na questão das sequelas psicológicas que surgem após o diagnóstico, especialmente no que diz respeito à impotência sexual. Massango sugere que a perda da capacidade sexual pode afectar directamente a auto-estima do paciente, já que “a masculinidade está no exercício, na prática de relações sexuais”. A impotência pode gerar um impacto emocional devastador, levando o paciente a se sentir “inútil” e “como um indivíduo que não vale dentro da sociedade.

No entanto, Massango não se limita a relatar os desafios. Ele acredita firmemente na psicologia preventiva como uma forma de combater os tabus culturais e ajudar os pacientes a lidarem melhor com o diagnóstico.

“Eu apoio muito a psicologia preventiva e não interventiva, é necessário trabalhar com as famílias desde cedo, educando-as sobre o câncer e outros problemas de saúde e para que a psicologia tenha um impacto positivo, é necessário que o psicólogo tenha um conhecimento clínico sobre a doença com a qual está lidando. Caso contrário, a intervenção pode ser ineficaz. O psicólogo deve estar unido de informações clínicas sobre essa doença”, ele afirma, sugerindo que o profissional precisa entender os aspectos médicos da condição para oferecer um suporte adequado.

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