“O partido no poder olha para a polícia como instrumento para manter os seus ideais”

DESTAQUE SOCIEDADE
  • Presidente da associação dos polícias denuncia instrumentalização da polícia
  • Há comandantes que não foram nomeados por competência, mas, sim, por vontade política”
  • Muanambane defende despartidarização da Polícia da Republica de Moçambique

A resposta desproporcional da Polícia da República de Moçambique (PRM) à onda de manifestações degradou ainda mais a imagem da corporação junto da população. O excesso de zelo da PRM mereceu críticas a nível nacional e internacional.  Numa entrevista concedida ao Evidências, o presidente da Associação Moçambicana de Polícias (AMOPAIP), Nazário Muanambane, reconheceu que os agentes da lei e ordem estão a ser usados de forma política, referindo que a corporação foi encontrada em contrapé e que o Comando-Geral não soube desenhar as estratégias certas para conter a onda de protestos pós-eleitorais. O líder da AMOPAIP denunciou que há no seio da corporação comandantes sem competências e que chegaram aos cargos que ocupam por influência política, tendo ainda referido que os mesmos olham para a associação por si liderada como se fosse um partido da oposição. Relativamente à onda crescente de suicídios dos agentes, referiu que este fenómeno deriva do assédio no local de trabalho e, sobretudo, das precárias condições de vida dos agentes que se sentem discriminados na sociedade.  Acompanhe, a seguir, os excertos mais importantes desta entrevista.

Duarte Sitoe

Durante a onda de manifestações em protesto contra os resultados eleitorais e má governação, o modus operandi da polícia, sobretudo a UIR, foi alvo de críticas a nível nacional e internacional. Como a associação olha a postura adoptada pelos agentes da lei e ordem neste período?

– Nós olhamos em duas vertentes. Primeiro, entendemos que a nossa polícia foi encontrada em contrapé. A nossa polícia foi surpreendida pela forma de actuação dos cidadãos reivindicando os seus direitos. Segundo, notámos que, afinal de contas, a nossa polícia está pronta para responder a qualquer desafio que surgir. A polícia estava habituada a ver manifestações, algumas delas consideradas ilegais, com 10 ou 20 pessoas, mas agora vimos um grupo organizado. Hoje fomos surpreendidos por manifestações em nos bairros e aí a polícia ficou sem capacidade de controlar a situação operativa que é garantir a segurança, ordem e tranquilidade pública.

Constatámos que a própria polícia era vítima de ataques, para além pessoas singulares. Assistimos esquadras e postos policiais a serem incendiados, enquanto os agentes eram vítimas de agressões e assassinatos. Isso fez com que de facto a nossa polícia fosse um pouco frágil na sua forma de actuação e a sua participação inactiva   na garantia de    segurança.

A nossa polícia mostrou que afinal de contas estava errada em algum momento. Se compararmos os tempos, agora a nossa polícia está a ganhar consciência de que a manifestação é um direito do cidadão e é preciso sempre ouvir quando as pessoas se organizam para manifestar. Não precisamos proibir pessoas de manifestar de forma violenta, é preciso sempre ter cautelas privilegiando o diálogo. Os polícias devem olhar para aquilo que é a aproximação ao cidadão. A polícia percebeu que não pode necessariamente disparar. Notamos infelizmente que há pessoas que estão a morrer vítimas de balas reais, mas temos vindo a assistir que estes resultados por parte dos manifestantes têm sido violentos porque percebeu que a polícia também é violenta, hoje há uma confrontação directa entre as nossas autoridades e o cidadão comum.

O número de cidadãos que morreram depois de terem sido baleadas pela Polícia da República de Moçambique tende a subir, tendo já ultrapassado os 300 óbitos. Na sua óptica o que está a falhar para que, ao em vez de proteger, os agentes da lei e ordem promovam chacina de civis?

– O que está a falhar é a estratégia desenhada pelas nossas autoridades. Quando há uma alteração da ordem pública é preciso estudar os fenómenos, as causas e desenhar uma estratégia de prevenção para que isso não ocorra. Hoje, a nossa polícia está sendo usada de forma política, não está a ser uma polícia republicana, soberana e que pertence ao Estado. Tanto para os partidos da oposição, assim como o que está no poder usam a nossa polícia para fazer face às preocupações. Os partidos da oposição olham para a polícia como seu inimigo. O partido no poder olha para a polícia como instrumento para manter os seus ideais e aí há problemas. É preciso que a nossa polícia seja apartidária, deve se eximir completamente das acções políticas e olhar para a sua tarefa que é a de proteger as pessoas e perceber os problemas da sua sociedade e, se for necessário, ajudar para o ultrapassar os problemas.

“Não há aproximação porque a polícia acaba sendo confundida como polícia do partido”

O que está a falhar para que a polícia seja efectivamente do Estado em vez do partido com tem acontecido no presente?

– Há um vazio de aproximação entre a polícia e o cidadão comum, porque a polícia acaba sendo confundida como polícia do partido. É preciso mudar a estratégia do trabalho. É preciso que olhemos para as estruturas e reformas pontuais da polícia. Ser comandante não pode depender da vontade política. Uma das reclamações comuns é o facto dos comandantes provinciais pertencerem ao partido no poder. A partir do momento que estas forças pertencem ao partido X, mesmo que no exercício das suas funções sejam imparciais acaba não fazendo sentido porque se desconfia que esteja a cumprir ordens do partido. O polícia é livre de pertencer a qualquer partido porque é um ser humano normal, mas não deve ser obrigado a se filiar e a sua actuação deve ser isenta de compromissos partidários.

Está a afirmar categoricamente que há comandantes dentro da PRM que não foram nomeados por competência?

– Se formos a ver aqueles que são os comentários públicos e forma de estar e ser nas actividades políticas e operativas vamos descobrir que sim. Quando há reuniões dos comités distritais, da zona e provincial os polícias vestem as camisolas daquele partido e a partir de momento que participa nestas reuniões acaba a opinião pública concluindo que a nossa polícia, de facto, é partidária porque ela participa nas reuniões do partido.

AMOPAIP defende que Parlamento deve reflectir sobre condições da polícia

O que pode ser feito para a Polícia da República de Moçambique recuperar a confiança dos moçambicanos?

– Temos que despartidarizar a nossa polícia. A nossa polícia não pode ser militarizada e nem partidária. A nossa polícia deve ser republicana e deve servir aos interesses do Estado. É preciso adoptar estratégias para que a nossa polícia seja polícia dos moçambicanos, não pode pertencer a um determinado partido. É preciso que todos os dirigentes do ramo da polícia não sejam escolhidos na base da confiança política. É preciso que dentro da corporação haja concurso para serem nomeados comandantes com qualidade e com requisitos para servir o Estado. É preciso, igualmente, que as políticas aprovadas ao nível do parlamento olhem para aquilo que são as condições próprias da nossa polícia. É preciso criar condições mínimas para que a nossa polícia tenha orgulho e não dependa do Governo do dia, mas, sim, do Estado. Os governos passam e os Estados ficam.

No seu juramento, um elemento da Polícia da Republica de Moçambique compromete-se a garantir a ordem e tranquilidade pública. Contudo, alguns agentes acabam reforçando os grupos do crime organizado. O que pode estar por detrás deste fenómeno? 

– A nossa polícia está inserida numa sociedade perturbada, violenta e que precisa de refrigeração. Isso acaba afectando a nossa polícia. Temos que primeiramente olhar para os polícias como pessoas e temos que ver que quando não há condições mínimas de trabalho, salário dignos e habitação, o agente sente-se marginalizado, o que o torna facilmente aliciável para o cometimento de vários crimes. Se encontra um cidadão que está a transportar uma quantidade considerável de droga e promete balúrdio ao agente, que recebe 10 mil, não restam dúvidas de que vai pensar que em casa não tenho nada para comer, não tenho casa e vai ceder. É preciso criarmos conduções mínimas para que um agente da autoridade não seja facilmente aliciado.

Há quem defende que o défice na formação influencia na actuação da corporação. Alinha com essa tese?

– Quando estamos diante de um polícia que para entrar na corporação foi na base de corrupção, pagou 200 mil e a formação não foi adequada, por ter sido feita na base de nepotismo, amiguismo, “conteranismo”, nunca vamos ter melhores policiais. A formação contribui bastante para ter o tipo de polícia que temos hoje. Precisamos de reformas estruturais no funcionamento hierárquico para ter uma polícia republicana.

A Tabela Salarial criou expectativas no seio da corporação, mas, debalde, acabou parindo decepção. Até que ponto o instrumento contribuiu para o actual estágio da PRM?

– Tudo o que acontece no presente resume-se à falta de vontade dos políticos. No parlamento quando discutem questões de polícia abandonam no meio. Dizem que querem aumentar instrumentos para se reprimir o povo, não olham para as questões do agente para a defesa da soberana. Muitas vezes, os políticos quando se expressam publicamente em relação àquelas que são as políticas que devem ser aprovadas só falam da educação, saúde e saneamento, condições de básicas e não falam da segurança. A segurança é prioritária. O parlamento deve reflectir sobre as condições da polícia, devem rever o salário de um agente para que este tenha orgulho de ser um agente da autoridade e possa ajudar a população e não só para reprimir.

Acredita que o grosso das preocupações da PRM podem ser resolvidas pelo Executivo que, recentemente, tomou posse?

– Quando aparecem novas ideias temos que acarinha-las até ver como as mesmas serão implementadas. Estamos com a expectativa de ver, não podemos desprezar, não podemos dar uma opinião diferente mesmo que não possamos comparar as boas ideias que aparecem para o bem do cidadão, temos que ter esperança e apoiar para ver até ponto a sua implementação vai trazer mudanças.

“Há dirigentes corruptos e arrogantes na PRM”

Nos últimos anos, o suicídio infiltrou-se nas fileiras policiais. Na análise minuciosa da associação, o que está por detrás deste fenómeno e quais são as acções levadas a cabo para mitigar o fenômeno?

– Muitas vezes o assédio no trabalho tem sido um dos problemas. Outro problema tem sido questões sociais que os policias enfrentam devido às más condições de trabalho. Quando um polícia na sua casa não tem pão na mesa, não é respeitado pela sociedade começa a contrair dívidas para necessidades básicas e depois não recebe a tempo e hora, sendo rotulado de burlador, abre-se espaço para que se sinta frustrado. Há varias situações pelas quais o agente da polícia passa no seu sector do trabalho, na família e na própria comunidade. Quando um polícia não se sente integrado na sociedade, ele sente-se isolado pelos seus amigos, pela família, colegas de trabalho e olhando para as suas condições acaba acontecendo o que temos vindo a assistir.

Na polícia temos uma associação que não é acarinhada por alguns dirigentes da polícia porque nos olham como oposição, querem continuar a espezinhar os agentes da PRM. Contudo, temos arranjado espaço para mobilizar agentes para que eles sintam que são seres humanos e têm famílias. É preciso enfrentar os desafios da actualidade, é precisa a criação de uma estrutura para fazer o acompanhamento. O serviço social da polícia acaba sendo um sector que é para servir os interesses de alguns dirigentes e não para o agente. A partir da altura que entra na polícia sofre desconto para assistência social, mas apenas quem está na cidade de Maputo é que se beneficia.  Aquele que está nas zonas rurais não tem uma assistência social quando enfrenta problemas.

Disse que há dirigentes que olham para a associação por si liderada como oposição. Como é que esta “perseguição” afecta as actividades da associação?

– Parte dos dirigentes são corruptos e arrogantes. Temos dirigentes que quando assumem o poder esquecem que para estar no poder dependem dos que estão embaixo e fazem de tudo para manter este poder. Alguns dirigentes se sentam incomodados porque no seio da polícia não querem que alguém tenha opinião diferente. Nós como associação temos que opinar sobre o que não anda bem para que o nosso dirigente possa dirigir melhor  e não só para impor orientações. O nosso objectivo é fazer acompanhamento da vida social do polícia, perceber como ele vive e  de que assistência precisa. Alguns dirigentes não querem isso. Temos polícias que não respeitam os direitos humanos, temos polícias que matam, que roubam. Outros não respeitam os seus superiores, mas também temos dirigentes de má fé.

Recentemente, alguém veio a público dizer que a associação era ilegal, uma instituição que trabalha com ela há bastante tempo, isso criou desinformação para fazer acreditar aquilo que está alinhado com ele.  Ficou provocado que existem dirigentes de má fé que querem impor as suas ordens, sem ninguém dar opinião.

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