Paga-se para entrar no bloco operatório: Quando a falta de dinheiro pode sentenciar à morte ou à incapacidade permanente

DESTAQUE SAÚDE SOCIEDADE
  • Pacientes obrigadas a pagar valores monetários que variam entre 05 mil e 150 mil meticais
  • Profissionais de saúde cobram dinheiro para adiantar nome na lista de espera

São perto das 14 horas. Ouvem-se gritos de alegria. Cinco crianças, pálidas e roupa um pouco gasta, correm em direção à Rita que regressa a casa depois de um longo dia de trabalho na machamba. Desmancha a sua trouxa e entrega ao mais velho um tubérculo que é imediatamente repartido pelos petizes. Mãe solteira, Rita está visivelmente exausta, mas não tem como descansar. Tem que preparar aquela que será a primeira refeição para os seus três filhos e mais dois sobrinhos, que ficaram à sua guarda após ficarem órfãs na sequência do falecimento de sua sobrinha. Aos 32 anos perdeu a vida enquanto aguardava pela sua vez numa lista para uma cirurgia, porque não dispunha de condições financeiras para subornar profissionais de saúde para que fosse atendida em tempo útil. Com apêndice inflamado, prestes a romper, gritava de socorro, mas a sua voz não ecoava nos ouvidos dos profissionais da saúde que exigiam dinheiro para que fosse submetida à cirurgia imediatamente. Tal como ela, há milhares de moçambicanos que morrem ou vêem sua condição de saúde se agravar nas longas filas de espera por intervenções cirúrgicas ou outro tipo de serviços especializados. Regra geral, a média de espera entre a admissão até à operação chega a ser de dois anos ou mais. Nesta investigação, o Evidências traz os contornos de esquemas de corrupção para facilitação de cirurgias nos hospitais centrais de Maputo e Nampula, que envolve desde os guardas, passando por serventes, enfermeiros, técnicos até ao médico. Confrontadas, as direcções das duas unidades hospitalares de referência no país, apenas uma admitiu a existência de cobranças ilegais nos blocos operatórios e no manuseio das listas de espera, enquanto a outra se distancia da existência dessas práticas, desvalorizado qualquer indício apesar de casos reportados nesta matéria, os quais fizemos questão de partilhar

Elísio Nuvunga

O slogan “O Nosso Maior Valor é a Vida” do Ministério da Saúde está cada vez mais a se transformar em mero cliché. No lugar do humanismo que se espera de quem no seu juramento de carreira jurou salvar vidas, muitos profissionais de saúde, incluindo escalões mais baixos como guardas e serventes, têm feito cobranças ilícitas para facilitarem o atendimento, marcação e realização de cirurgias.

Pessoas com posses e dispostas a pagar para “furar a fila” são privilegiadas nos blocos operatórios, deixando, muitas vezes, quem não tem condições para alimentar uma rede de profissionais que cobram dinheiro para facilitar procedimentos cirúrgicos, à sua sorte, acabando por prolongar a sua espera, o que muitas vezes resulta no agravamento do seu estado de saúde e/ou na morte.

O Evidências investigou, durante cerca de três meses, os esquemas de favorecimento de pacientes pagantes para terem prioridade no Hospital Central de Maputo (HCM) e Hospital Central de Nampula (HCN) e seguiu histórias reais de pacientes que partilharam péssimas memórias e experiências vividas nos dois hospitais, quando a sua vida esteve condicionada à disponibilidade de dinheiro para poderem conseguir entrar no bloco operatório.

Regra geral, os pacientes são submetidos a um tortuoso processo de espera e vendo a sua vida a definhar são obrigados a pagar somas que variam de 5 mil meticais a 150 mil meticais, dependendo da gravidade de cada paciente. As vítimas relatam ainda que, como forma de pressão, os profissionais recorrem a consecutivos adiamentos de procedimentos à porta da sala de cirurgia.

Um paciente que aguarda desde meados de 2023 por uma cirurgia para remoção de amigdalites, que, em princípio, devia ter acontecido em Novembro do mesmo ano, auxiliou na presente investigação. Com recurso a um contacto fornecido por alguém que já fez o procedimento no departamento de otorrinolaringologia do Hospital Central, um repórter do Evidências, simulando ser acompanhante do paciente, entrou em contacto com uma facilitadora, que, desconfiada, marcou um encontro presencial para o dia seguinte no recinto do hospital.

Já no local, a pessoa, que é na verdade uma enfermeira, procurou saber mais dados do paciente, tendo colocado como condição para a intervenção o pagamento de 35 mil meticais, sob alegação de que precisaria de dividir o suborno com o médico cirurgião, anestesista e outros, para que o procedimento fosse feito em um mês.

Evidências apurou que os valores cobrados para a efectivação da cirurgia variam dependendo da doença de cada paciente e do grau de especialidade, mas dados recolhidos indicam que se cobram valores que variam de cinco a 150 mil meticais.

Como funciona o esquema?

As cobranças ilícitas nos hospitais acima referidos envolve vários actores, desde guardas, enfermeiros, serventes até médicos. Segundo apurou o Evidências, as cobranças, muitas vezes, começam com agentes de menor hierarquia, como guardas e serventes, que solicitam pagamentos para garantir a entrada rápida no hospital ou para fornecer serviços básicos, como levar os pacientes para exames e posteriormente para as salas operatórias.

Uma vez obtido o diagnóstico e feitos todos exames que confirmam a aptidão para a operação, o médico marca a data de cirurgia na fila da espera, por vezes com um ano de diferença. De seguida há quem se aproxima do paciente persuadindo-o/convencendo-o a receber “bom tratamento e mais rápido”, ou com oferta de facilidade para furar a fila de cirurgia.

As cobranças variam de acordo com a gravidade da doença e da simpatia que os agentes desenvolvem para aparentemente manifestar sua comoção/ aflição diante do “sofrimento” dos pacientes.

Os serventes e enfermeiros são, por sua vez, os primeiros na linha de contacto com o paciente desesperado e depois de negociar, dividem o dinheiro pela equipa e protocolam todo expediente burocrático, movimentando papéis de um departamento para o outro para viabilizar a operação.

Um destino sentenciado pela falta de dinheiro

Maria da Conceição (nome fictício) não sobreviveu para contar a sua história. Aos 32 anos, perdeu a vida porque não dispunha de condições financeiras para cirurgia. Com apêndice inflamado, prestes a romper, gritava de socorro, mas a sua voz não ecoava nos ouvidos dos agentes da saúde para a realização da cirurgia.

Em 2021, foi diagnosticada com apendicite no Hospital de Marere e, no mesmo ano, foi operada, sem nenhuma cobrança monetária. Mas porque a doença exigia mais de uma operação, quando mais tarde teve recaídas e foi evacuada para Hospital Central de Nampula (HCN), começou o seu drama.

Mais uma vez, foi observada e concluiu-se que, era urgente mais uma cirurgia, mas precisaria de sangue. A família criou condições para a transfusão. Ultrapassada a questão de sangue e quando esperavam que a sua paciente entraria no bloco operatório, eis que foram chamados para uma sala onde foram informados que deveriam pagar oito mil meticais.

Sem dinheiro de imediato, a vítima teve de aguentar mais de três meses as insuportáveis dores de apendicite, enquanto a sua família juntava dinheiro. Quando, finalmente, conseguiu juntar todo valor, já era tarde, pois esta entrou no bloco operatório debilitada e não resistiu.

Para além dos seus sonhos interrompidos, deixa duas crianças órfãs, hoje aos cuidados de sua tia, que se tornou mãe e avó.

“Ela me ajudava com as despesas. Quando eu ia à machamba, ela ia ao mercado. Agora é difícil porque tenho de cuidar das crianças”, desabafou, diante de um destino selado pela falta de dinheiro.

João tem 47 anos de idade, é natural de distrito Angoche, província de Nampula. É casado, tem 04 filhos. É homem batalhador. Tem machambas e é moto-taxista. Mas depois de algum tempo (2024), viu a sua vida a mudar drasticamente por conta de uma “hérnia” – um tumor mole formado pela saída anormal de parte do tecido de um órgão.

Em Março, foi submetido a uma cirurgia no Hospital Geral de Marere (HGM). Sucede que após a operação, a hérnia desenvolveu-se noutra parte do corpo.

O diagnóstico exige que seja feita uma nova intervenção cirúrgica no Hospital Central de Nampula, para aliviar as dores e evitar o pior. Desde meados do ano passado, aguarda pacientemente para que chegue sua vez e seja chamado para entrar na sala de operação. Durante este período, viu pacientes que iniciaram o tratamento depois de si, a entrarem e a saírem no bloco operatório. João e sua família precisam de aproximadamente 10 mil meticais para se desfazerem da dor, mas não têm.

“Operei pela primeira vez durante a campanha no hospital de Marere. Só que depois não sei o que aconteceu porque agora não saiu aqui em baixo (testículos), saiu aqui no lado e tem que ser operado”, disse justificando que ainda não foi operado porque ainda “não há dinheiro”, mas espera conseguir juntar com o pouco que consegue poupar do seu negócio de transporte para fazer a cirurgia ainda este ano.

“Meu pai pagou outro valor para aquele senhor me cuidar bem”

Milton Gonçalves é residente na Província de Maputo, distrito de Marracuene, é solteiro e cheio de sonhos. O jovem de 28 anos viu a sua vida a mudar drasticamente em 2018, quando teve acidente de viação e sofreu fractura no membro inferior e precisava de uma cirurgia urgente.

Transferido de Marracuene para o Hospital Central de Maputo, experimentou, durante mais de uma hora, a indiferença dos profissionais de saúde no Banco de Socorros. Cansado de ver o seu filho agonizando e perdendo sangue, sem que ninguém lhe ligasse a mínima, o pai teve que subornar os profissionais que ali estavam de serviço.

“Alguém foi falar com meu pai e depois me levaram para a sala de operação e já não lembro o que lá aconteceu porque só saí da sala no dia seguinte”, relata, para depois revelar que só ficou a par dos procedimentos que o levaram até à sala cirúrgica, quando no período de tarde recebeu a visita do seu pai.

“Meu pai disse que o senhor que foi ter com ele disse para ele que eu estava muito grave porque estava a perder sangue e se meu pai falasse como homem, tudo ia correr bem. Meu pai não hesitou porque desde 13 horas até às 19 horas ainda não havia sio atendido”, disse, revelando que para furar a fila e entrar na sala de operação foram-lhe cobrados oito mil meticais e outros três mil foram gastos em subornos de enfermeiras durante o período em que esteve internado.

 “Com 10 mil meticais, o médico pode resolver tudo

Chama-se Sónia, 49 anos de idade, residente no bairro de Laulane, na capital do país. Faz parte das estatísticas de quem pagou dinheiro para garantir o bem precioso: vida. Hoje, é deficiente, porque o tratamento de uma ferida, causada pela diabete, lhe levou mais tempo e, consequentemente agravou o seu quadro clínico.

Tudo começou em Março de 2024, quando após uma ligeira ferida surgir no dedo seu pé, descobriu que tinha diabetes. Não tinha a mínima ideia de que sua vida seria um terror na sala de operações, naquela que é a maior unidade hospitalar do país.

“Fiquei de baixa e fiz todos os exames para entrar na sala de operações. Quando entrei, o médico disse que minha operação seria amanhã, na hora X. Mas chegava o dia e não acontecia nada. Depois de conversar com uma enfermeira, ela disse que só ia acontecer a cirurgia, se eu fizesse alguma coisa. Fiquei lá não sei quanto tempo. Como não tinha tirado nenhum dinheiro, só ficava a assistir aos outros lá dentro, enquanto eu morria de dores”, lembra.

A sua humilde família teve que se endividar para juntar 10 mil meticais para salvar a sua vida. Após o pagamento, “por volta das 14, o médico disse para não comer nada porque amanhã vou ser operada”. Dito e feito: a cirurgia aconteceu no dia seguinte. Hoje, é deficiente, perdeu o seu membro inferior e ainda continua a fazer “check-in” no HCM.

Teresa, irmã de Sónia, quem ficou por meses a cuidar dela no hospital, lembra que a família já tinha perdido a esperança em relação à saúde da irmã.

“Queriam quase trinta mil para me operar… mas graças a Deus não paguei”

Abílio João (nome fictício), senhor dos seus 53 anos, faz parte das estatísticas dos que viram o slogan “O Nosso Maior Valor é a Vida” a ser rasgado à sua frente pelos profissionais de saúde. Em 2023 foi diagnosticado com hérnia, em estado avançado, e para ser operado de forma urgente no Hospital Central de Maputo, foram-lhe exigidos 30 mil meticais.

Abílio não tinha dinheiro, mas precisava de ser operado. Sempre que fosse ao Hospital era impostas dificuldades como forma de o pressionar a pagar. Enquanto isso, o seu estado se saúde ia se debilitando ainda mais.

Por sorte num desses dias, cruzou o caminho de um médico estrangeiro que, sensibilizado por ver a sua agonia, marcou imediatamente a sua cirurgia e não cobrou nenhum tostão.

“Não sei o que aconteceu. Naquele dia estava com Deus, digo graças a Deus mesmo. Me atenderam porque estava um médico que não é dali e viu como eu estava. Disse que era para ser operado de imediato porque aquilo não podia acontecer, era grave”, desabafou.

HCM confirma cobranças ilegais, mas desdramatiza, enquanto HCN nega

 

Atílio Morais, cirurgião e director do Departamento de Cirurgias, no Hospital Central de Maputo, nega que haja uma corrupção institucionalizada, mas admite que alguns profissionais desonestos possam estar envolvidos em cobranças ilícitas. Aliás, desdramatiza a situação e diz que estas cobranças são mais comuns nas unidades das zonas periféricas que são as menos equipadas, com fraca vigilância para além de fraca inspecção.

“Se há cobranças ilegais, ninguém diz que não. Há cobranças ilegais, sim, mas, aqui, é o mínimo. O Hospital Central tem outro grau de consciencialização, mas não recuso que haja isso. Nós vemos sempre que se critica a área de saúde e outras. Elas existem, mas são muito reduzidas. E temos outros sítios onde não há grande controlo, que são as unidades sanitárias periféricas, e está claro que os refrescos (cobranças ilegais) funcionam”, explicou Morais.

Adicionalmente, disse que não são cobranças “extras” que mais preocupam o HCM, mas, sim, o nível de desvio ou furto de insumos, o que pouco se faz sentir nas periferias devido à falta de alguns serviços ou equipamentos.

“A insatisfação dos funcionários é um problema, o salário não é dos melhores, as horas extras não são pagas, a progressão na carreira (…)”, disse Morais, admitindo que estes problemas podem estar por trás da fraca motivação e insatisfação dos profissionais, que acaba propiciando cobranças ilícitas.

E sobre a questão da morosidade ou cancelamento das operações, que pressiona os pacientes a pagarem dinheiro para evitar longas filas ou para atendimento imediato, o cirurgião explica que o processo em si leva tempo até seis meses ou mais, dependendo da doença.

“Na maior parte desses serviços que fazem cirurgia o tempo de espera para um procedimento cirúrgico rondam por aí três meses, mas existem extremos. Existe a oftalmologia, que não tem tempo, e existe o serviço de urologia que tem um longo ano de espera. O grande problema não são as equipas que aqui estão, são as salas operatórias e os dias operatórios e os consumíveis cirúrgicos”, justificou.

Por sua vez, o director clínico do Hospital Central de Nampula, Anselmo Vilanculos, distanciou-se da prática de cobranças ilegais.

“A Direcção Clínica do Hospital Central de Nampula desconhece a cobrança de qualquer taxa para a cirurgia pela via normal”, disse.

Refira-se que, segundo dados do sector, associado às cobranças ilícitas e adicionalmente ao mau atendimento, em 2022, 44 funcionários da maior unidade sanitária da província de Nampula, Hospital Central com mesmo nome (HCN), foram expulsos. Constavam na lista dos que perigavam e manchavam o estabelecimento enfermeiros, auxiliares de serviços, guardas e técnicos administrativos, nomeadamente.

Segundo a directora dos Serviços Provinciais de Saúde de Nampula, Munira Abdula, foram 10 funcionários e enfermeiros expulsos e demitidos da função pública, que estavam afectos nos serviços da maternidade e banco de sangue e diversos departamentos.

A tomada de medidas “severas” contra funcionários e profissionais de saúde é fruto de trabalho colaborativo, entre a instituição e população. O Hospital recebeu um maior número de denúncias por parte pacientes e dos demais que culminaram com estas medidas.

Na mesma senda, em Maputo, de acordo com o relatório publicado pelo Departamento Jurídico do HCM, durante o primeiro semestre de 2024, 11 funcionários foram expulsos, 07 demitidos, 06 em processos disciplinares e 03 com contratos suspensos. As demissões e expulsões são resultantes de práticas cobranças ilícitas, furtos de bens do Estado, morosidade.

  *Reportagem financiada pelo Centro de Integridade Pública (CIP) no âmbito de Programa de Combate à Corrupção na Justiça

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