- Dinheiro subornou autoridades policiais, guardas e políticos com poder de influência
- O telefone foi introduzido via vizinho da cela de Fuminho, para contornar a DEA
- A rota de informação para destruição de provas saiu da cela para advogado, que reencaminhou para o então cônsul de Moçambique no Brasil e de lá para o PCC. Advogado confirma o repasse das informações
- Investigação brasileira cita uma antiga ministra da Justiça e um primeiro-ministro. Ambos foram contactados pelo Evidências
- Membros do PCC pretendiam criar a sua base em Moçambique e compravam títulos de imunidade a dois milhões de reais no consulado, transformado numa espécie de quartel-general
No dia 13 de abril de 2020, a Polícia da República de Moçambique (PRM), num trabalho conjunto com a DEA (Drugs Enforcement Administration), disfarçada de hóspede no hotel em Indy Village, prendia Gilberto Aparecido dos Santos, conhecido por Fuminho, que andava fugitivo da justiça brasileira havia mais de 20 anos. Começava daí uma corrida entre mocinhos e bandidos de uma das mais poderosas facções criminosas do Brasil, o Primeiro Comando da Capital (PCC). De um lado, a pressa da Polícia Federal (PF) do Brasil de retirar o traficante de Maputo, por temer sua fuga. Do outro, William Agati, um milionário com vínculo contratual com o consulado de Moçambique em Minas Gerais (Brasil) e o croata Kristijan Palić (preso na Turquia em 2023) engendravam um consórcio de traficantes do Brasil e dos Bálcãs para tirar Fuminho da cadeia, com o auxílio do antigo cônsul de Moçambique, Deusdete Gonçalves, que além de ter transformado as instalações do consulado em quartel general dos criminosos, intermediava a conversa com advogados e ministros em Moçambique. Em 24 horas após a detenção, estavam já consolidadas as três saídas, que compreendiam retardar a extradição, para se executar sua libertação via batalha judicial ou outra, via fuga. Para isso, precisavam de manter Fuminho em comunicação: a introdução de um celular na sua cela na B.O viria a custar 2.5 milhões de dólares em suposto suborno às autoridades policiais, guardas penitenciários e figuras politicamente expostas envolvidas no tráfico de influência.
Nelson Mucandze
Era uma segunda-feira comum, quando começaram a circular informações da detenção de um narcotraficante que desde 1999 vivia nas sombras e longe de radares de justiça. Fixado na África do Sul; em Maputo ele hospedava-se num dos melhores hotéis de Grupo Visabeira, onde veio a ser surpreendido pela polícia disfarçada em funcionários do hotel. No dia seguinte, 14 de Abril de 2020, com a detenção já confirmada, começava uma corrida que viria a colocar o Governo, também pressionado pela DEA, um pouco à frente dos traficantes, ao optar por uma medida administrativa: expulsar Fuminho.
O arranjo não teve qualquer conforto legal, rasgando, assim, qualquer possibilidade de fazer chegar o processo ao Tribunal Supremo, órgão competente para apreciar e decidir pela extradição. No entanto, esta saída levaria no mínimo 40 dias. E Fuminho só ficou seis dias nas celas da Penitenciária de Máxima Segurança, vulgo B.O., depois disso foi deportado para o Brasil, através de uma ordem administrativa assinada pelo então ministro de Interior, Amade Miquidade.
Foram cinco dias de circulação de dinheiro de suborno, de contactos com advogados e de “compra” de tráfico de influências a membros do Governo. Enquanto a nível político eram engendradas medidas para se livrar do narcotraficante, uma investigação da Polícia Federal do Brasil, denominada Operação Mafiusi, traça o plano de fuga de Fuminho em Maputo.
A mediação em Maputo esteve na responsabilidade do então cônsul de Moçambique de Minas Gerais, Deusdete Januário Gonçalves, que informa ao grupo que tem à sua disposição ministros e advogados prontos a cooperar num plano que, caso fosse bem sucedido, nas contas do Evidências, iria custar aos membros da facção criminosa mais de 3,5 milhões de dólares só em subornos. De acordo com a investigação da PF, Gonçalves devia receber um milhão, caso tivesse êxito, mas ele pediu 1.5 milhão de dólares supostamente para um membro do governo de topo que se comprometeu a “atrasar a extradição”.
O plano de fuga
Em Maputo, era segundo dia da detenção do Fuminho. Nenhum processo até aquele dia tinha sido aberto contra ele. Informações não confirmadas ao Evidências apontavam que ele teria declarado que estava a caminho de Cabo Delgado, onde pretendia negociar o livre trânsito da sua droga, depois de detectada uma suposta ameaça devido ao terrorismo. Para a DEA, polícia antidrogas norte-americana, pesava sobre ele a introdução de pelo menos dez toneladas de cocaína na terra do Tio Sam. No Brasil, onde havia dois mandatos de captura, os seus colegas de crime engendravam a sua fuga em Maputo, com o apoio de autoridades corruptas.
O plano de fuga, detalhado na investigação da Polícia Federal do Brasil, num trabalho conjunto com a congénere da Itália, responsável por rastrear a comunicação na plataforma Sky ECC – um aplicativo utilizado por criminosos do mundo todo por conta da forte criptografia – em operação voltada para o combate ao tráfico internacional de drogas, começa com a mobilização dos membros por William Agate, funcionário do consulado de Moçambique em Minas Gerais, com codinome de Boxeador.
Agati é um milionário com três aviões particulares, contas bancárias nos Estados Unidos de América, uma rede de empresas de fachadas do Brasil à Dubai, conexões com o PCC e com a máfia italiana que se entregou em janeiro à PF, sob acusação de lavar até dois bilhões de reais do tráfico de cocaína entre 2017 e 2024. Mesmo com essa fortuna toda, tinha um vínculo contratual com o consulado de Moçambique em Minas Gerais. Ele recebia dois mil dólares de salário referente à sua representação diplomática. Após receber mensalmente valores a título de salário como funcionário do consulado, devolvia esses montantes, o que reforça a simulação de sua contratação. Além dele, eram, igualmente, membros do consulado Marcos Roberto de Almeida, Marinel Bozhanaj e Regis Carneiro, todos com histórico de crime.
Para execução do plano, Agati introduziu no grupo criado na plataforma de Sky ECC, vários membros da facção do PCC, interessados na fuga ou libertação de Fuminho. De acordo com o documento do Ministério Publico Federal do Brasil com nr nº 5044209-29.2024.4.04.7000, os participantes deste grupo estavam planejando a libertação do traficante através de dois planos distintos: “Linha lícita (…) linha ilícita”.
Um resgate com duas opções
O caminho legal seria por batalha jurídica impetrada por advogados ligados à facção, e outro, ilegal, seria o resgate à força de Fuminho da cela dentro da B.O, por meio do cooptação de autoridades policiais, guarda penitenciária e poder político.
Para efeito, o croata Kristijan Palic, líder do clã balcã – a região dos Balcãs constava como destino de Fuminho, caso conseguisse escapar de Moçambique – preso na Turquia em 2023, informa ao grupo que um membro da PRM estava disposto a entregar um “telefone celular para Fuminho dentro da cela da delegacia em Maputo em troca de 2,5 milhões de dólares”.
Agati anuiu o pedido de Palic, com codinome Indigo nas conversas, e autoriza o pagamento e um celular foi entregue a um detido de uma cela vizinha à de Fuminho. Da cela, foram enviadas mensagens para o cônsul Gonçalves com ordens para destruir documentos no Brasil que pudessem incriminá-lo ainda mais.
“O negro comédia encontrar com o batista / e resolver o trabalho com o carcamano / O machucado cuidar das contas com o peruca / Mikel deve ir a casa ou escritório destruir tudo”, escreveu Fuminho. Gonçalves repassou os recados com Agati, Palić e os demais, mas em troca pediu um “agrado” por parte dos traficantes. “Eu espero um pequeno agrado. Eu não quero muita coisa, meu negócio é ajudar. Um pequeno agrado pra mim. […] A gente queima muito cartucho, a gente é dedicado”, disse a um advogado contratado que mantinha contacto directo com o cônsul. As fotos de captura, em mensagens curtas, outras codificadas, ilustram a urgência das instruções.
As mensagens foram enviadas da cela para o advogado, que segundo a transcrição das conversas do documento do Ministério Publico do Brasil, foi chamado pelo Cônsul por indicação da então ministra de Justiça e Assuntos Constitucionais em Moçambique. Em conversa com o Evidências, o advogado disse desconhecer qualquer contacto com a governante nesse sentido, no entanto, confirmou a relação de amizade existente entre a sua esposa e a então ministra.
Ainda em declarações ao Evidências, numa conversa que teria começado num tom de intimidação, até abrandar quando foram apresentadas as provas da sua comunicação com o cônsul, onde reencaminhava as instruções para a queima de provas, negou que tivesse excedido o seu papel de mera prestação de serviços jurídicos para assumir o papel de mediação das comunicações da facção criminosa.
“Eles me contactaram na sexta-feira às 15h, porque diziam que tinham dificuldades de manter comunicação com ele (Fuminho), mas também tive as mesmas dificuldades porque já era final de semana. Apenas surpreendi-me quando recebi mensagens no meu telefone e reencaminhei ao cônsul”, disse o causídico, cujo nome decidimos omitir, argumentando que não teve tempo de fazer qualquer procuração, porque o Fuminho foi deportado nos dois dias que se seguiram.
O Evidências entrou em contacto com a então ministra da Justiça, Assuntos Religiosos e Constitucionais, tendo respondido que desconhece “os contornos da constituição do advogado como patrono do arguido Fuminho. Aliás, em momento algum da minha passagem pelo MJCR, como dirigente, me ocupei de indicar ou constituir advogados para quem quer que fosse. Vejo a citação do Cônsul honorário de Moçambique em Minas Gerais e que tomo conhecimento do nome e da posição através da peça partilhada”.
Mobilização de mais dinheiro para subornar os que tivessem poder de influência
Na plataforma Sky ECC, as conversas prosseguem com os interlocutores falando sobre vários pontos da estratégia adoptada para libertar Fuminho, “em especial quanto ao pagamento de propina a polícias e agentes públicos do Governo de Moçambique, deixando claro que estavam colocando em prática a ‘linha ilícita’ para resgatá-lo”, lê-se na investigação da PF que deixa expressa e de forma reiterada que, “conforme informado anteriormente, os crimes relacionados ao plano de resgate de ‘Fuminho’ não são objecto do presente inquérito policial, razão pela qual é desnecessário expor nesta representação toda a análise dos diálogos travados entre os interlocutores nesses chats que versam sobre a tentativa de resgate do líder do PCC após ter sido preso em Moçambique”. Ora, essa anotação do resgate de Fuminho sugere que existem informações relevantes que podem não ter sido incluídas por não ter qualquer relação com a acusação feita a Agati, que por coincidência ou não, é o responsável do plano de resgate.
A partir da análise das conversas travadas neste grupo, a investigação da PF traça o papel de cônsul no crime, aclarando que foi “possível compreender de forma mais detalhada a participação do cônsul de Moçambique no plano de resgate, que estava cobrando vultosos valores da ORCRIM (Organização Criminosa) para interceder junto às autoridades de Moçambique, seja para conseguir disponibilizar celulares e outras facilidades a ‘Fuminho’ no cárcere, repassar ordens dele, conseguir informações privilegiadas acerca da sua transferência e, principalmente, para tentar executar o plano de resgate mediante pagamento de propina às autoridades daquele país”.
Na sua intermediação, o cônsul ainda solicitou a Agati 1,5 milhão de dólares que, segundo ele, seriam entregues ao primeiro-ministro de Moçambique. Em troca, o então PM actuaria pela libertação de Fuminho. Na conversa com máfia, o cônsul deixa claro que falou com muitos ministros, mas apenas o PM teria manifestado abertura.
“Liguei para vários ministros, embaixadores e tudo. Eu achei uma abertura maior com o primeiro-ministro e ele falou: ‘não, a gente pode tentar resolver’. […] Que eu falei que o rapaz [Fuminho] não é tudo aquilo que tá saindo na internet, que o rapaz é empresário aqui, é gente boa”, disse Gonçalves aos advogados do PCC. Ainda segundo o cônsul, o primeiro-ministro prometeu retardar a extradição do traficante. “Ele disse […] ‘eu seguro pra você, mas eu seguro até certo ponto”, informou o cônsul em mensagem enviada a Agati.
Não se sabe se o suborno foi efectivamente pago pelo consórcio criminoso. Facto é que, no dia 19 de Abril, em uma operação sigilosa, o traficante foi entregue pela polícia local aos agentes da PF na pista do Aeroporto de Mavalane. Após uma rápida escala em Guarulhos, o avião da FAB pousou em Cascavel, Oeste do Paraná, de onde um helicóptero da PF levou Fuminho para a penitenciária federal de Catanduvas, onde se mantém preso até hoje.
Em conversa com o Evidências, o então PM disse que não manteve nenhum contacto com o grupo e que nem conhece o tal cônsul que fez referência ao seu nome, que de investigação da PF, passou para Ministério Público Federal. A suspeita que tem é de que se tenha usado o seu nome para extorquir o grupo. “Lamento que alguém, que não conheço, tenha usado o meu nome para pedir dinheiro para fins criminosos; pelo que me distancio desse comportamento e condeno-o veementemente. Importa destacar que, em determinados momentos do exercício das minhas funções como primeiro-ministro, me foram reportadas situações em que pessoas andavam a fazer em meu nome, a diversas instituições ou pessoas públicas e privadas, pedidos de toda a ordem, com destaque para dinheiros e diversas autorizações supostamente por mim mandatadas ou autorizadas”, disse o antigo governante.
Consulado de Moçambique vendia imunidade por dois milhões de reais a membros da facção criminosa
O Consulado de Moçambique em Minas Gerais não se limitava a acolher os membros da facção, era ainda utilizado para um esquema de venda de títulos consulares a criminosos. A promessa dos envolvidos era que esses documentos poderiam garantir imunidade aos seus portadores, em casos da fiscalização da polícia local.
Foi neste contexto de oferta de produtos e serviços para o crime organizado, “que Agati ofereceu a um colaborador seu uma ‘carteira de cônsul’, ou seja, título de imunidade enquanto funcionário do Consulado da República de Moçambique, alegando que estaria “montando uma operação em Moçambique a pedido de ‘Fuminho (…). Esta oferta teria acontecido inclusive na presença do cônsul honorário de Moçambique, Deusdete Gonçalves, também investigado neste procedimento”, – lê-se no documento da investigação.
Os títulos do Consulado de Moçambique eram comercializados pelo valor de dois milhões de reais. Gonçalves justificava esse valor com as promessas de certos privilégios e imunidades inerentes à actividade consular, principalmente a inviolabilidade dos escritórios de representação consular, nos quais a Polícia não poderia adentrar.
Além de planos de expandir os serviços consulares pelo resto do Brasil, consta que o grupo estava em vias de estabelecer bases de narcotráfico em Moçambique. Marcos Roberto de Almeida, com codinome Tuta, um dos líderes da facção, que trabalhou na representação diplomática entre julho de 2018 e julho de 2019, e preso em 2024. disse, em delação, que Agati planeava criar várias representações parecidas em Moçambique, que serviriam de base para o PCC, uma vez que, por lei, representações diplomáticas são invioláveis.
“Agati desempenhou um papel crucial na entrada da organização criminosa em Moçambique, onde Gilberto Aparecido dos Santos, o “Fuminho” — figura importante ligada a “Marcola” — estava vivendo para evitar a justiça brasileira, da qual estava foragido há mais de 20 anos, antes de ser preso em Maputo, no dia 13/04/2020”, lê-se no documento do Ministério Publico daquele país.
Em uma entrevista a um órgão de imprensa no Brasil ( Revista de Piauí), Gonçalves disse que as nomeações de Tuta e Agati foram impostas pela Embaixada de Moçambique na Brasilia. “Passados alguns meses, quando eu demiti os dois, comecei a ser perseguido pelo governo moçambicano e perdi o posto de cônsul”, afirmou. Gonçalves, brasileiro com cidadania moçambicana, negou que tenha conversado com advogados do PCC a respeito de Fuminho, apesar dos registros de áudio obtidos pela PF.

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