Ressuscitando o conflito de interesses

OPINIÃO

Luca Bussotti

Ao longo dos últimos dias o conflito de interesses mereceu uma certa atenção do debate nacional. Isso foi feito em duas vertentes: por um lado, a respeito da eleição de Daniel Chapo, actual Presidente da República, a presidente do partido Frelimo; e, por outro, quanto a algumas nomeações ministeriais de sujeitos cujo papel institucional estaria a colidir com os seus interesses privados. As duas questões são relevantes e merecem uma atenta reflexão.

Uma primeira polémica foi levantada a propósito da suposta incompatibilidade (constitucional) entre os papéis de presidente da república e presidente de um partido político, por sinal o partido de maioria. Com efeito, o art. 148 da Constituição da República de Moçambique esclarece que o chefe de estado não pode exercer funções de foro privado; admitindo que cobrir o cargo de presidente de um partido represente uma das tipologias previstas no art. 148 da CRM, isso significaria que a eleição de Daniel Chapo à presidência da Frelimo deveria ser considerada como improcedente. Foram estas as bases que induziram o CIP a apresentar uma providência cautelar junto ao Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, de forma a anular esta eleição.

Em ponta de Direito, é provável que o CIP tenha razão; entretanto, a pergunta que se coloca, do ponto de vista da análise política, é se a duplicidade de funções (PR e presidente da Frelimo) seja realmente relevante para os cenários políticos moçambicanos, pelo menos fora do mundo da Frelimo. Antes de responder, é preciso algumas breves considerações contextuais: a primeira que tem a ver com questões internas, a segunda de cunho internacional.

Frente interna: em Moçambique, sempre houve sobreposição entre a figura do PR e do presidente da Frelimo. Em Direito, muitas vezes, quando as leis não se ajustam à realidade de um certo país, embora vigentes, elas perdem grande parte do seu efeito. Temos outro exemplo ainda de cunho político: quando se diz que, em Moçambique, o voto é um direito-dever, resulta evidente que só ficou a parte do direito, pois as muitas pessoas que não costumam votar não sofrem sanções, de forma a provocar a anulação de facto do voto como dever. No caso da sobreposição de cargos entre PR e presidente da Frelimo estamos, mais ou menos, na mesma tipologia jurídica: houve, desde o início da Segunda República, uma “praticização” do Direito, ou seja, o costume ultrapassou os ditames constitucionais. Em boa verdade, temos de perceber porque esta norma foi introduzida: ela dizia respeito a questões de incompatibilidade entre funções públicas e funções privadas, e à necessidade de garantir, depois de 15 anos de regime a partido único, uma divisão dos poderes que limitasse, inclusivamente, as prerrogativas do PR. Se é possível pensar que exercer a função de presidente de um partido político constitua incompatibilidade constitucional com tais princípios, também é preciso perceber o que é que isso implica em termos da prática política. Moçambique é um sistema presidencial, onde o partido no poder sempre teve uma palavra a dizer nos momentos principais da história do país. E Moçambique nunca foi – como no caso da Angola com José Eduardo dos Santos – uma monarquia dominada por apenas um sujeito, embora muito poderoso, da Frelimo. Todos os presidentes, incluindo Samora Machel, tiveram que prestar as contas ao partido e nenhum deles conseguiu um domínio absoluto, como demonstra o facto de que quase todos os PR da Segunda República tentaram, mais ou menos explicitamente, modificar a Constituição para fazer um terceiro mandato, mas ninguém conseguiu. A sobreposição de cargos entre PR e presidente da Frelimo é, portanto, uma questão de oportunidade política, um assunto interno à Frelimo, que este partido vai gerir consoante as suas decisões. Do ponto de vista dos moçambicanos, esta coincidência de cargos resulta quase que insignificante, em termos de impacto na gestão pública do país. Se tiver outra figura a liderar a Frelimo, diferente da do PR, teremos a certeza de que a governação ia melhorar, quanto à sua qualidade? E teremos a certeza de que o partido-Frelimo ia conseguir fiscalizar melhor as iniciativas ou as falhas do PR? Não temos a contraprova, mas a resposta seria, mais uma vez, muito provavelmente, negativa, pois o grande problema que Moçambique está a enfrentar já há muitos anos é que a Frelimo, como partido político, perdeu a sua essência, deixando de fazer propostas e de ter uma agenda para o país. Isto significa que a distribuição de seus cargos entre seus expoentes não é de modo nenhum relevante para os interesses do povo moçambicano, ficando apenas uma questão interna.

Frente internacional: a questão da coincidência entre chefe do executivo e líder do maior partido do país não é exclusiva de Moçambique. Em muitos países com democracias avançadas, existe esta coincidência. A razão de quem defende a oportunidade desta sobreposição seria de que quem está a liderar o governo deve ter o controlo do maior partido que o apoia, para melhor desempenhar a sua acção no executivo, em prol dos interesses dos cidadãos. Trata-se de uma explicação que pode fazer sentido, mas que, mais uma vez, resulta da exclusiva competência interna de um certo partido político. Exemplos contrários também demonstram que temos presidentes da república que não são presidentes dos seus partidos, mas que dominam o cenário político nacional (e internacional): o caso de Trump nos Estados Unidos é sintomático desta tipologia.

Se, portanto, o tema da sobreposição de cargos entre PR e presidente do partido não representa um aspecto particularmente relevante no debate político nacional, convinha retomar o espírito daquele artigo 148 da CRM para reflectirmos sobre outro, muito mais grave conflito de interesses: o princípio é o mesmo, mas a prática é diferente. Como em muitas circunstâncias aconteceu em Moçambique (veja o caso do referendo), existe o princípio constitucional, mas não tem nenhuma aplicação legislativa deste princípio (o conflito de interesses, neste caso) que, portanto, acaba perdendo os seus efeitos. Um dos maiores problemas que Moçambique sempre teve, desde a fundação da Segunda República, foi a modalidade com que as pessoas podem alcançar níveis elevados de riqueza. Com efeito, se em Moçambique o credo do neoliberalismo se difundiu como a velocidade da luz, o mesmo não aconteceu no que diz respeito aos princípios que deveriam ter acompanhado esta nova época. Desde a vaga de privatizações que começou no fim da década de 1980, ficou claro que quem detinha o poder político, ou estava ligado a ele, teria mais oportunidades para acumular riquezas, desfrutando da sua proximidade com este mesmo poder, determinando uma sobreposição, essa, sim, tóxica, entre política e economia. Assim, aconteceu que, em Moçambique, os membros mais influentes da Frelimo se tornaram os indivíduos mais ricos do país, ao mesmo tempo restringindo as possibilidades efectivas, para os cidadãos “normais”, de ter as mesmas oportunidades. Em suma, o “mercado” foi sempre controlado, nunca verdadeiramente “livre”, e o acesso privilegiado a ele se deu graças às ligações com o partido no poder, ainda mais exercendo cargos públicos. Este seria o conflito de interesses que deveria ser combatido: muitos países, a partir dos Estados Unidos, têm leis rigorosas que procuram regulamentar esta matéria escorregadia, tais como blind trust, venda de sociedades a sujeitos não familiares, uma vez que o seu proprietário tem assumido um cargo público, até inelegibilidade de certos sujeitos economicamente dominantes, etc. Em quase todos os países democráticos, o princípio fundamental é o seguinte: quem estiver a exercer cargos públicos está proibido de ter negócios privados. É neste sentido, provavelmente, que devem ser enquadradas as nomeações contestadas de ministros com supostos conflitos de interesses. Mas não é só isso: no contexto moçambicano, mesmo quem nunca desenvolveu negócios, quando assume cargos institucionais inicia a fazer isso, em vez de pensar nos interesses públicos.

Talvez possa ser o caso de introduzir, na agenda das reformas do actual governo e do diálogo que este está a ter com outros parceiros políticos, uma série de normativas que limitem ou até impeçam a quem estiver a exercer cargos públicos de manter ou criar seus negócios privados. Seria um sinal excelente para demonstrar que, de facto, uma parte dos privilégios habituais está sendo desafiado, e que o país, mesmo com os enormes problemas que tem, está a olhar para uma perspectiva diferente em relação ao seu passado mais próximo.

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