A difícil missão de informar

OPINIÃO
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 “O Standard Bank está a arder. Vai agora para lá trazer-me a notícia”, ordenava o meu delegado, em Maputo, Ezequiel Ambrósio. Foi uma vergonha para mim. Não havia nenhum incêndio. O gerente do balcão riu-se ao abordá-lo sobre o assunto e perguntou-me: “onde está esse incêndio? Por acaso estás a ver algum fumo ou algo queimado por aqui?” – Nada, respondi.

… A Organização Nacional dos Professores (ONP) estava reunida em conferência, na capital do país. Eu era repórter acompanhante. Na parte de tarde, já na Redacção, o repórter sénior com quem fui ao terreno não voltou do almoço e as minhas notas não davam para construir uma história.

… Era hora do almoço no centro social do SNJ (arroz com carapau aguado), refeição que não chegava para todas as pessoas, quando um colega do “Notícias” perguntou-me o que eu iria escrever. Revelei-lhe o tema e ele foi sacar a notícia da minha fonte e publicou antes de mim. O Diário de Moçambique, onde trabalhava, não saiu à rua no dia seguinte por falta de energia e perdi a concorrência.

… O pai do Presidente Samora Machel, Malengane Machel, morre em Chilembene e sou destacado a cobrir o seu enterro. Abel Faife, um jornalista que tanto respeitava pela sua capacidade de produzir uma reportagem descritiva, estava na equipa em representação do “Notícias”. O que temia aconteceu. No dia seguinte, todos os pormenores sobre a cerimónia estavam nas páginas do jornal. Não sobrou nada para mim porque, infelizmente, não consegui enviar a história por falta de energia na Beira.

Foi com estes choques que comecei a minha carreira profissional no “Diário de Moçambique”. Quando as linhas de transporte de energia eléctrica fossem sabotadas pela Renamo, durante a guerra dos 16 anos, ficávamos sem jornal durante uma ou duas semanas seguidas.

Percebi que quando o meu chefe me mandou trazer uma notícia sobre o incêndio que não existia estava a transmitir a mensagem de que o lugar de um jornalista é a rua, pois é lá onde rolam as notícias: nas paragens de autocarros, nos machimbombos, nos mercados, em suma, à nossa volta, nos bairros onde vivemos.

Quando, naquela tarde, o repórter a quem acompanhei e que tinha a responsabilidade de cobrir a reunião da ONP não regressou à redacção era um aviso de que tenho que caminhar com os meus próprios pés, gatinhar à minha maneira. Cometer erros e saber superá-los.

Aprendi, através da história com o meu colega do jornal Notícias que me roubou a minha história do dia, que o jornalista tem que ter sigilo e deontologia profissional.

Com o episódio de Chilembene, fiquei triste por perder a oportunidade de desafiar Abel Faife com os meus pouquíssimos anos de carreira profissional, mas foi uma oportunidade para aprender, uma vez mais, com o meu mestre como se faz uma reportagem descritiva de acordo com as regras de jornalismo.

Foi com desafios como o da minha indicação para a cobertura da Assembleia Popular, hoje Assembleia da República, fruto de multipartidarismo, quando eu achava que não estava ainda preparado para isso, que mais cedo superei as dificuldades básicas de quem está a iniciar a profissão: descobrir notícia, identificar fontes de informação, registar dados com segurança e dominar as técnicas de notícia.

Se hoje é difícil “furar” para conseguir uma informação de utilidade pública com o papel que a comunicação social tem de contribuir para o desenvolvimento da democracia no país, imaginem em 1982, no sistema monopartidário, em que a informação era controlada pelo poder político.

Comecei a carreira numa altura em que era obrigatório as direcções dos órgãos de informação apresentarem planos temáticos para três ou seis meses ao Departamento do Trabalho Ideológico do partido Frelimo, na pessoa do secretário Jorge Rebelo, que se sobrepunha ao Ministério da Informação e o nosso trabalho tinha que ser feito dentro dessas balizas.

Para o meu caso,  as notícias eram ditadas ao telefone para a sede do DM na Beira, a partir da delegação de Maputo onde trabalhava, com um copo de água ao lado, pois era aos gritos. Pouco se ouvia. As comunicações eram deficitárias. O país estava atrasado em termos de telecomunicações.

A outra alternativa para enviar os textos era o avião, mas nem sempre havia voos para a cidade da Beira. Às vezes tomávamos conhecimento do cancelamento do único voo do dia já no aeroporto, com o envelope das notícias na mão na tentativa de encontrar um portador.

Eram frustrações atrás de frustrações quando escrevíamos e as notícias não saíam no dia seguinte no jornal. As circunstâncias obrigavam-nos a apostar, como saída, em histórias exclusivas ou que não perdiam a actualidade, tendo em conta que nem sempre conseguíamos enviar os trabalhos no mesmo dia.

Mais tarde, recebemos das Telecomunicações de Moçambique uma máquina para a redacção chamada telex, através da qual passámos a enviar as notícias para a sede do Diário de Moçambique na Beira. Compunha-se o texto e este ficava gravado numa fita amarela, picotada e fina que depois era montada na cabeça do equipamento e posta a rodar, assim que conseguisse a linha.

A notícia era recebida do outro lado numa máquina idêntica, numa operação difícil, pois não era fácil conseguir a ligação.

As gráficas dos dois jornais que existiam até então, o “Notícias” e o “Diário de Moçambique”, e da “revista Tempo”, usavam um equipamento muito atrasado, correspondente a essa época. Depois de batidos na máquina de escrever, os textos passavam para um compositor que os batia novamente.

As frases, que ficavam gravadas em barrinhas de chumbo, iam caindo num recipiente agregado à máquina de onde eram, depois, recolhidas e arrumadas em caixas de chapa próprias formando uma página do jornal.

Resolvi escrever este artigo como uma homenagem a todos os jornalistas desse tempo, incluindo a mim próprio, e para mostrar aos jornalistas mais novos como trabalhávamos no passado, por ocasião da passagem de 11 de Abril, Dia do Jornalista, que com dificuldades de comunicação e acesso às fontes, fazíamos o nosso melhor para manter a população informada sobre o movimento revolucionário iniciado com a proclamação da independência nacional em 1975.

Os jornalistas faziam omeletas sem ovos no seu papel de educar e informar numa altura em que 97 por cento da população moçambicana era constituída por analfabetos e decorria um programa nacional de educação de adultos nas empresas e nos bairros para reverter a situação. Mesmo sem condições, muitos se tornaram grandes jornalistas, como é o caso de Narciso Castanheira, António Sefane, Abel Faife, Mário Ferro e outros.

O artigo é também uma homenagem aos mais novos que resolveram abraçar esta carreira, mesmo cientes de que é uma profissão ingrata e de grande risco. Dizia meu professor de jornalismo que se quer ficar rico, não segue o jornalismo. Ao longo dos meus 44 anos de profissão não fiquei rico, mas conquistei prestígio na sociedade. Viajei pelo mundo. Conheço muito bem o meu país, desde a localidade, passando pelo posto administrativo e distrito até às capitais provinciais.

Privei com altos signatários, nomeadamente presidentes da República, ministros, embaixadores e diferentes figuras estrangeiras. Isso é um grande capital. É mais do que dinheiro.

Aqui fica uma mensagem de encorajamento a todos os que estão a seguir o jornalismo porque gostam e não por uma questão do emprego. Ter vocação nesta profissão é um bom começo e quase uma garantia de sucesso nesta difícil missão de informar com isenção e imparcialidade e em respeito a questões éticas.

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