Luís Nhachote discute escândalos de corrupção em Moçambique com crónicas “Do Alto da Colina”

CULTURA SOCIEDADE
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Elisio Nuvunga

  •  Nova obra é lançada esta semana

Jornalista moçambicano, Luís Nhachote, lança na quinta-feira, 17 de Abril, em Maputo, a sua terceira obra literária, intitulada “Do Alto da Colina”, sob a chancela da Gala-Gala Edições. Em uma entrevista ao Evidências, o autor explica que “Do Alto da Colina” é fruto de crónicas inicialmente difundidas nos anos 2000, 2002 e 2005 na coluna do Jornal Savana, onde deu os seus primeiros passos jornalísticos por volta dos anos 2000. Nhachote traz “estórias” do seu tempo de júnior, mas que ainda espelham a sociedade moçambicana nos anos que correm, sobretudo a questão da corrupção e dos seus desafios.

 O que lhe fez revisitar a sua coluna do Savana e decidir reunir as suas crónicas em um livro?

Os jornalistas e cronistas não têm o hábito de fazer arquivo. Se calhar, se tivesse um arquivo mais organizado, datado, guardado em ficheiros, em um ano ou dois, poderia ter publicado. Encontrei alguém que tinha interesse em publicar umas transições literárias, depois lembrei-me de que tinha escrito tanta coisa num período específico, que é esse de 2003 a 2005 e pedi a essa pessoa, que era um estudante de literatura, que fosse ao Arquivo de “Savana” (Jornal) e ao Arquivo Histórico, recolhesse-me esse material e que eu haveria de pagar por esse trabalho. Na altura estava como editor associado do Semanário “Ponto por Ponto” e ele estava à procura de uma oportunidade, queria publicar uns textos culturais, mas o jornal não ia pagar, era um jornal novo. Chegámos ao acordo de que eu havia de pagar a ele por ir ao Arquivo durante dois meses e recolhesse o material. Teve muita paciência, por acaso; recolheu e trouxe-me o material e, é quando revisito os textos, em primeira instância, depois de 20 anos. Fiquei impressionado.

Olhei para eles e disse: há muitas coisas do dia-a-dia. Eu tinha tocado nesses assuntos em forma de ficção, crónica e tal, e eu entreguei ao editor da Gala-Gala, que ele achou estupendo, achou fenomenal, achou uma coisa rara e ele disse: vamos publicar.

O título da obra sugere uma observação crítica. Por que motivo Do Alto da Colina?

  Eu estava no Jornal Savana, como se sabe é uma vegetação densa e eu achava que dentro da savana, tinha encontrado uma colina onde eu pudesse estar por cima. E, estando por cima, era o sítio mais interessante para ver esta savana, que era o País. Então, fiquei por cima da colina e era do alto da colina onde eu notava a nação, os seus espaços, os seus tempos, os seus personagens. E era a partir dali onde eu fazia este exercício de cronicar, ficcionando as coisas que iam acontecendo no dia-a-dia.

Nhachote, as crónicas “Do Alto da Colina” convergem com o actual cenário do País?

 Eu penso que sim. Há muita coisa. Eu tinha coisas um pouco veladas. Por exemplo, estas crónicas são escritas no momento em que o presidente Chissano estava saindo do poder e estava a entrar o presidente Guebuza. Fiz algumas das crónicas, se calhar, mais de quatro ou cinco, em que indagava, de forma irónica, como é que alguém ficou rico a criar patos, em que mercado esses patos tinham sido colocados? Quem eram os clientes? Porque nós tínhamos, por exemplo, o “Takdir”, na feira popular, que vendia frangos 24 horas por dia, mas nunca se tinha autoproclamado uma pessoa que tinha ficado rico a partir da criação do pato. Lembro-me de que algumas pessoas no meio literário disseram que essas crónicas são muito incisivas e que estavam deliberadamente a apontar a figura do secretário-geral do partido e que essa figura chegaria à presidência e eu poderia ser ostracizado por causa da ironia que estava a fazer. Acho que até hoje continua actual essa questão.

Não é possível enriquecer com este negócio ou nem por isso?

 Acho que há muita gente que está na agricultura que gostava de ser bem-sucedida, mas para ser bem-sucedido é importante que aqueles que são bem-sucedidos também partilhem um pouco da fórmula pela qual eles ficaram ricos. E nós hoje temos uma riqueza neste País abundante, densa, que não é explicada.

As pessoas costumam arranjar ofícios de criar a sua riqueza na base de um trabalho lícito, honesto, mas é preciso que haja um balanço, haja um equilíbrio para que essas riquezas sejam explicadas e que não haja dúvidas de que é uma forma de esconder a forma pouco lícita com que a gente cria riqueza.

Está a sugerir que figuras politicamente expostas podem estar a enriquecer com recurso a meios pouco lícitos?

  Vimos no caso das dívidas ocultas como é que algumas pessoas das nossas elites endinheiraram-se à custas do erário público, à custa do nome dos moçambicanos e à custa do nome de uma agenda de segurança dos moçambicanos. Então eu discorro muito nas minhas crónicas à volta dos problemas que hoje emergiram: é a corrupção, é a promiscuidade do sistema e esta coisa dos mafiosos, por exemplo, chegarem aos círculos das famílias presidenciais.

Nas suas crónicas fala também da alegada “morte da literatura”. O que pretende transmitir?

Há um momento em que as páginas culturais do Savana foram palco de um debate que durou dois meses e teve vários actores, inclusive renomadas figuras do meio académico, literário, quando um jovem de Xai-Xai escreveu um texto a proclamar a morte da literatura moçambicana, era um texto provocativo ao académico Francisco Noa que repostou na semana seguinte, veio dar a sua contratese. Depois uma série de escritores emergentes na altura, incluindo o professor Lourenço de Rosário deram corpo a um debate que foi muito polémico na altura porque se colocava em causa o facto de alguns escritores da nova geração não estarem a conseguir publicar um pouco por causa do “lobby” que anda no meio literário em que é preciso ter os pontos cardeais e conhecer os caminhos. Então, eu também, na altura, dei corpo a isso e é um dos textos dessas crónicas. Acho que foi um momento histórico em que se pôs em causa um pouco do lobby do meio literário. Isso mexeu com muitas sensibilidades e eu era visto como o principal artefacto que dava voz a este grupo de jovens emergentes pelo facto de também fazer um pouco parte deste movimento.

Diz que não se considera escritor. Que influências literárias ou jornalísticas moldaram a sua escrita?

 No jornalismo, havia alguns jornalistas que eram simultaneamente escritores ou tinham sido jornalistas e escritores ao mesmo tempo, começando por Mia Couto que foi director de Jornal Notícias e passou pela Revista Tempo, pela AIM e havia outros como Heliodoro Baptista, na Beira, já falecido, um dos maiores poetas que eu conheci que também era jornalista. Temos também o Adelino Timóteo, ainda no activo, que foi meu sócio quando fundámos o Canal de Moçambique, ambos saídos do Savana. Conheci também o Albino Magaia.  Então a fronteira entre o jornalismo e a literatura é muito ténue. São duas áreas que são praticamente vizinhas, uma é porta para outra. No tempo em que comecei o jornalismo, eu fazia jornalismo cultural e também fazia parte da última fase do movimento Oásis e tinha o sonho de querer ser escritor, o sonho de querer ser publicado e no meio disto há uma influência enorme nestes meios das leituras em que fazia. Então, eu digo neste livro, na minha nota de autor, que não me considero necessariamente um escritor, porque acho que o papel de escritor é um papel muito alto em qualquer sociedade e o escritor é uma figura que se afirma no seu silêncio.

 “A corrupção tornou-se uma instituição em Moçambique”

 As suas crónicas tocam em temas muito fortes como é o caso BCM. Como foi lidar com estes assuntos tão sensíveis?

 Estar a ficcionar permite-te ter espaço de sobrevoar-se e galgar. Eu fiz a cobertura do caso BCM. Nós, os Jornalistas desse tempo, todos temos memória dos lobbies, daqueles que defraudaram o banco e daqueles que não queriam que fossem associados a isso. Esses grupos eram os mais fortes, porque tendo eles um poderio financeiro, várias vezes iam ter com os nossos editores para dizerem que nós estávamos não só a fazer uma cobertura factual, mas que estávamos a reproduzir a tese de que eles eram responsáveis, quando alegadamente não eram. E eram indicados mais ou menos os ângulos de onde os jornalistas estavam a ser alimentados pelas fontes e que era preciso cortar essas fontes, porque eram consideradas fontes nocivas e perigosas para o trabalho que a gente estava a fazer.

Então, foram momentos que merecem outras reflexões. Eu penso que há uma geração do meu tempo, outros um bocado mais velhos, que, se tiverem interesse e honestidade, podem apontar mais ou menos o que houve. Nós ouvimos o julgamento das dívidas ocultas, um pouco também daquilo que acontecia.

Havia narrativas que até o próprio tribunal não tinha muito interesse que o Israel, por exemplo, contasse. O caso BCM tem muitas coisas parecidas com essas.

De lá para cá, como é que olha para o fenómeno corrupção?

 A corrupção tornou-se uma instituição em Moçambique. Ela começou como um pequeno pinto numa capoeira, depois foi reproduzindo-se, depois apareceram mais pintos, os pintos tornaram-se galinhas e galos. Então, chegou a um nível em que eu considero que ela tornou-se incapturável e que precisa de uma mão do Estado.

É preciso que o Estado levante a sua mão para cortar todas as fontes de reprodução, para que se possa moralizar a sociedade. Mas não vejo isso como um processo que tem que começar no nosso processo educacional.

Como é que isso seria?

 Eu penso que temos que meter conteúdos nos currículos escolares sobre os malefícios da corrupção, explicar às gerações dos mais novos, a partir do ensino primário, para que se molde a mentalidade deles sobre os malefícios da corrupção.

De outra maneira, vai ser sempre uma luta inglória em que as fontes de reprodução vão continuar intactas e vão se reproduzindo e o Estado capturado não vai conseguir com um ou dois ou três agentes honestos. Então, é preciso reformular uma série de coisas no nosso sistema de educação, a nossa maneira de gerir as instituições. As instituições não podem ser pertença ou apropriadas por funcionários que estão há muito tempo e usam-nas para o seu benefício próprio. Então, cortar esta pedra de reprodução vai ser um exercício gigantesco. Vai precisar de coragem, coragem do Estado e de todos nós para que se reduza esse malefício.

Só para terminar, qual é a mensagem que pretende transmitir aos leitores e à sociedade no geral?

Temos que continuar a escrutinar a sociedade em várias formas de arte. E, se calhar, as escolas superiores de Jornalismo, Artes e Cultura comecem a produzir um pouco de audiovisual, porque a imagem tem um outro poder. Podíamos ter seriados com um pouco dessas crónicas. Existem outros pioneiros, falo, por exemplo, de Fernando Manuel, que está cego hoje, que é, para mim, o melhor cronista do mundo. Podíamos ter documentários na televisão, tal como passamos novelas em 25 ou 30 minutos, a fazermos o retrato do cosmo moçambicano, em que as pessoas possam ver, sobretudo as gerações mais novas, um pouco da ironia desta grande mentira que é Moçambique. Esses conteúdos têm que ter imagem, movimento e voz.

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