Gaza: A república do misticismo

OPINIÃO
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Arão Valoi

Na Província de Gaza, no sul de Moçambique, uma tragédia silenciosa se desenrola a céu aberto. Não se trata de um fenómeno isolado ou de rumores infundados. Trata-se de uma teia complexa e persistente de práticas ocultas que envolvem curandeirismo, feitiçaria, manipulação espiritual e, em casos mais grotescos, sacrifícios humanos — tudo isso ao serviço da luta pelo poder político e da ambição por enriquecimento ilícito. É a institucionalização do irracional, do obscurantismo e do terror. Curandeiros são vistos, vezes sem conta, a passear a classe nas redes sociais, exibindo cobras e outros meios ou instrumentos que, supostamente, ajudam no seu trabalho, facilitando a vida dos que procuram os seus serviços.

Mais preocupante, porém, é a resposta do Estado: o silêncio. Um silêncio que não é apenas ensurdecedor — é vergonhosamente cúmplice.

O que se vive em Gaza é um colapso moral com contornos de tragédia nacional. A infiltração do curandeirismo no tecido político, económico e social atingiu níveis absolutamente alarmantes. Não falamos aqui de práticas tradicionais inofensivas ou crenças espirituais privadas — falamos de uma estrutura organizada, activa, e perigosamente eficaz, onde políticos, empresários, funcionários públicos e até líderes escolares fazem pactos com forças ocultas, não apenas por superstição, mas como estratégia de ascensão e manutenção no poder.

Jovens ambiciosos, atolados em desespero e numa sociedade que glorifica o sucesso instantâneo, são atraídos por falsas e promessas efémeras de riqueza. Alguns chegam ao ponto de sacrificar os próprios filhos ou familiares, oferecendo vidas humanas como moeda de troca para entidades espirituais. A vida perdeu valor. A morte tornou-se ferramenta de carreira. O sucesso deixou de ser fruto de mérito ou trabalho — é hoje, em certos círculos, a recompensa de rituais hediondos.

Essa lógica, profundamente perversa, infiltra-se até mesmo nas escolas, locais que deveriam ser santuários de saber e de esperança. Em várias instituições de ensino, em Gaza e em outras províncias do nosso País, tem-se reportado surtos inexplicáveis de desmaios em massa entre alunos e professores, qual histeria colectiva. Fala-se, com insistência, da presença de espíritos malignos que se manifestam em crianças inocentes, muitas vezes como reflexo directo da invocação feita por directores escolares ou líderes comunitários que buscam “fortalecimento espiritual” para manter autoridade e respeito. O ambiente escolar transforma-se, assim, num campo de batalha espiritual, com consequências imprevisíveis para a saúde mental e física das crianças.

Neste contexto sombrio, surge agora a figura de um jovem, de nacionalidade zimbabweana, supostamente pertencente à Igreja Zione e dotado de dons espirituais. Este indivíduo tem se tornado protagonista de uma série de exorcismos populares no Posto Administrativo de Ndindiza, no Distrito de Chigubo. Acompanhado por multidões, ele percorre residências, escolas e instituições públicas, “desmantelando” supostos altares de feitiçaria, queimando objectos associados ao ocultismo e expulsando entidades malignas.

Independentemente da validade espiritual, sócio antropológica ou psicológica dos seus actos, a sua actuação revela algo ainda mais perturbador: é um civil — estrangeiro — que está a fazer aquilo que as autoridades moçambicanas se recusam a fazer (se é que podem).

A questão central não é religiosa. É política. É ética. É institucional. Onde está o Estado? Onde está o Governo Distrital e Provincial? Onde está o Ministério da Educação, o Ministério do Interior, os serviços de Investigação Criminal? O Ministério da Justiça, a Procuradoria-Geral da República, por onde andam? O que se passa em Gaza não pode mais ser tratado como anedota de aldeia nem como boato popular — é uma crise social, uma crise espiritual e, acima de tudo, uma crise de Estado.

A Constituição da República de Moçambique estabelece com clareza, no eu artigo 12, que o Estado é laico, mas defensor da dignidade humana. Permitir que cidadãos sejam sacrificados em rituais clandestinos, que escolas sejam contaminadas por práticas ocultas, e que o poder público se transforme em refém do misticismo, é não apenas um fracasso institucional — é uma traição constitucional.

Ao calar-se, o Estado torna-se cúmplice. Ao não investigar, legitima. Ao não agir, abdica. Gaza tornou-se um espelho obscuro do que acontece quando o Estado recua e entrega à superstição o lugar da razão. O que esse jovem zione está a fazer, ainda que envolto em controvérsias, é uma denúncia viva da ausência de autoridade. É o reflexo directo de um Estado que já não impõe ordem, não protege os vulneráveis e não combate os que comercializam a morte. Quando curandeiros se exibem nas redes sociais – atraindo jovens – supostamente para alcançarem riqueza fácil, porém, efémera, significa que algo não está bem no País.

É urgente romper com esse ciclo. É urgente que se convoque uma resposta firme, institucional e integrada. O Ministério da Educação precisa de lançar uma investigação urgente sobre o impacto dessas práticas nas escolas. O Ministério da Justiça deve, em coordenação com os órgãos policiais, desmantelar redes de curandeiros que operam como máfias. A Assembleia da República não pode mais ignorar este fenómeno: é necessário debater seriamente mecanismos legais para criminalizar práticas que atentem contra a vida humana sob o disfarce de “tradição”. O silêncio deixou de ser neutro — tornou-se criminoso.

Nota: Os curandeiros dos demais distritos da Província de Gaza estão em estado de alerta. Corre a informação de que o jovem Mazione tem planos ambiciosos: pretende desmascarar e confrontar todos eles, um por um. Depois de sua passagem por Chigubo, onde já causou alvoroço, rumores indicam que seu próximo destino será Chókwe, seguido por Macia e, posteriormente, Xai-Xai. Esses locais são, frequentemente, mencionados em conversas populares como centros de um fenômeno intrigante: jovens que enriquecem de forma repentina e misteriosa, muitas vezes sem que se saiba a origem dos seus bens. Paralelamente, há um crescente protagonismo de curandeiros locais, que se promovem em programas de televisão e redes sociais, exibindo supostos poderes e promessas de sucesso rápido. Diante desse cenário, a chegada de Zione promete abalar estruturas e expor verdades que muitos prefeririam manter ocultas. Há aqui muita matéria para antropólogos e sociólogos.

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