SdE desafiam lógica da descentralização e assumem protagonismo onde não deviam

DESTAQUE POLÍTICA
Share this
  • Nampula e Niassa entre os maiores exemplos
  • Confusão continua e ainda não se efectivou a devolução de administradores ao governador
  • Mas “há uma linha de orientação que vai culminar com alinhamento do governador”, afirma um administrador, mas ainda não está concluída

 Prometida como um novo capítulo para a “nossa” governação, a descentralização chegou com pompa constitucional e ares de viragem em 2019, quando o país elegeu, pela primeira vez, os seus Governadores Provinciais. A promessa era clara: aproximar o poder dos cidadãos, dar rosto local às decisões e fortalecer a autonomia regional. Mas, seis anos depois, a narrativa começa a ganhar contornos de farsa institucional. Ainda na tomada da posse, o Presidente da República, Daniel Chapo, que muito bem sentiu na pele os efeitos de confluência do poder entre os Secretários do Estado das Províncias e Administradores, prometeu tornar mais claros os papéis de cada um e mais do que promessa, deixou a recomendação de que os eventos públicos, que incluem a apresentação dos administradores, são de alçada do governador. No entanto, em províncias como Niassa e Nampula, o guião parece ter sido reescrito e os Secretários de Estado surgem como protagonistas de facto, enquanto os Governadores eleitos são empurrados para os bastidores do palco político, numa espécie de descentralização às avessas.

 Evidências

 Longe do labirinto jurídico que envolve o modelo de governação provincial, foi com palavras cuidadosamente escolhidas que o Presidente da República, Daniel Chapo, traçou novas linhas de autoridade no dia 22 de Janeiro. Na cerimónia de empossamento dos Governadores Provinciais, curiosamente realizada quase uma semana após a sua investidura formal, Chapo devolveu, simbolicamente, o microfone e o protagonismo político aos governadores eleitos. “Cabe a eles”, disse, a tarefa de convocar o povo, de realizar comícios, de apresentar os administradores distritais. Aos Secretários de Estado, nomeados por si, o Presidente reservou um papel mais discreto: o de supervisores e avaliadores, não de actores principais no palco provincial.

Mas debalde! Não foi assim em Nipepe, onde Livone da Silva, SdE em Niassa, apresentou publicamente o novo administrador distrital perante uma multidão, como se fosse sua competência constitucional. E repetiu-se em Monapo, no passado dia 21 de Junho, quando Nerino Pereira, SdE de Nampula, liderou a cerimónia de passagem de pastas entre a administradora cessante e o recém-nomeado Emanuel Impissa. “Movimentações de dirigentes do Estado… uma prática comum na função pública”, justificou-se Pereira. Mas é precisamente aí que mora o problema.

Ao assumirem a condução de cerimónias simbólicas que deveriam estar sob responsabilidade do Governador Provincial, os SdE não apenas transgridem a Lei n.º 3/2019, que atribui ao Governador eleito a autoridade sobre a administração pública provincial, como também desafiam o espírito da descentralização. Trata-se de uma usurpação de competências que mina a lógica democrática do novo modelo. Os administradores, que também se mostram confusos, têm uma linha de “orientação que vai culminar com alinhamento do governador”, disse um dos administradores abordados pelo Evidências, clarificando, no entanto, que o processo está em restruturação porque também não sabem para quem presta contas. “O que temos feito é reencaminhar ao Governador aquilo que é da sua competência e ide ao SdE, mas há vezes onde nem isso é claro, pelo que o processo de reestruturação de responsabilidade está em curso”, disse, sem se pronunciar para casos óbvios que não deixam de denunciar problemas de competências administrativas.

O que está em causa não é apenas a coreografia de uma cerimónia, mas a estrutura de poder. Quem é, afinal, a autoridade máxima na província? A resposta, que nem os administradores conseguem dar, deveria ser inequívoca: o Governador, eleito pelo povo. Mas quando os SdE lideram comícios e apresentam novos dirigentes, a cadeia de comando embaralha-se e a descentralização transforma-se numa fachada, onde a retórica oficial se dissolve em práticas herdadas do centralismo.

O argumento da “prática comum”, apresentado por Nerino Pereira, é revelador e preocupante. Admitir que tais atitudes são recorrentes é confessar que a cultura política ainda não assimilou as mudanças legais. Mais, pior que isso, é normalizar a violação da descentralização, tornando-a letra morta no quotidiano da administração pública.

Esta situação, longe de ser um episódio isolado, reflecte uma resistência profunda, institucionalizada e persistente à transferência de poder para os níveis locais. Os Governadores, escolhidos pelo voto popular, continuam a ser ignorados em momentos-chave de governação, o que compromete a sua autoridade e fragiliza a legitimidade democrática do cargo.

A gestão política nas províncias, que já enfrentava ambiguidades no anterior mandato, volta agora a ser palco de sobreposição de funções. Os episódios de Niassa e Nampula confirmam que o conflito entre Governadores e Secretários de Estado permanece, e, em certos casos, aprofunda-se. O resultado é um triplo prejuízo: deslegitimação dos Governadores eleitos, confusão funcional nas províncias e descredibilização do projecto descentralizador.

Discursos proferidos em Monapo sobre desenvolvimento local, educação e violência baseada no género podem soar inspiradores. Mas o enquadramento institucional do próprio evento traía essas intenções. Ao deslocarem o foco de autoridade para si, os SdE desvirtuam a lógica democrática que deveria guiar os processos de transição e representação local. Falam em nome do Estado, mas usurpam o espaço da representação política legítima.

Mais do que protagonismo individual, o padrão que se repete sugere uma estratégia silenciosa de reafirmação do poder face à indiferença a nível central, uma espécie de contra-reforma informal, operada à margem da lei e da vontade política expressa nas urnas. Trata-se de uma tensão não resolvida entre o velho e o novo, entre a cultura de controlo vertical e a promessa de empoderamento horizontal.

Promo������o
Share this

Facebook Comments